Judiciário
Flexibilização da Lei Anticorrupção, a teoria da graxa e os riscos para o Brasil

A decisão de flexibilizar a aplicação da Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) nos Estados Unidos, anunciada por Donald Trump nesta semana, representa um grave retrocesso no combate à corrupção global, com reflexos particularmente preocupantes para o Brasil. É alarmante que a justificativa para essa medida resida na alegação de que empresas norte-americanas estariam em desvantagem competitiva por serem proibidas de adotar práticas corruptas comuns entre concorrentes internacionais, criando um suposto campo de jogo desigual.
Promulgada em 1977, a FCPA marcou um ponto de inflexão na repressão ao suborno de autoridades estrangeiras por empresas norte-americanas, tendo sido fundamental para a responsabilização de corporações multinacionais por práticas ilícitas. Sua aplicação rigorosa não apenas reforçou o compromisso dos Estados Unidos com a ética nos negócios, mas também impulsionou a adoção de padrões mais elevados de compliance e governança corporativa ao redor do mundo.
O grande paradoxo dessa flexibilização é que a FCPA serviu justamente de inspiração para a Convenção Antissuborno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), criada para equilibrar os efeitos da aplicação unilateral da lei norte-americana. O objetivo era evitar que empresas estrangeiras, ainda não submetidas a normas tão rígidas, levassem vantagem sobre as americanas, já dissuadidas de pagar subornos.
Esse esforço foi essencial para promover um ambiente de concorrência mais justa no mercado internacional, assegurando que todas as empresas operassem sob padrões semelhantes de integridade. Agora, ao invés de reforçar essa estrutura global de combate à corrupção, a flexibilização da FCPA sinaliza um perigoso retrocesso, com potencial para enfraquecer os avanços conquistados ao longo das últimas décadas.
O indesejado abrandamento da lei produzirá, inevitavelmente, alguns efeitos nocivos na pauta global de enfrentamento à corrupção e também no Brasil porque pode enfraquecer práticas empresariais éticas ao desestimular programas rigorosos de compliance e criar um ambiente mais permissivo para o suborno, especialmente em países com instituições frágeis. Além disso, essa flexibilização favorece a concorrência desleal, beneficiando empresas que adotam práticas corruptas em detrimento daquelas que seguem normas éticas.
Risco de enfraquecer investigações no Brasil
No Brasil, a medida pode comprometer a cooperação internacional e enfraquecer investigações de corrupção transnacional, além de servir de pretexto para a flexibilização de leis como a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013). O desestímulo a programas de integridade também é um risco, pois, sem a imposição de normas rígidas e penalidades severas, muitas empresas podem reduzir investimentos em governança e transparência, tornando-se mais vulneráveis a escândalos e perdendo credibilidade perante investidores e consumidores.
É surpreendente que o enfraquecimento do combate à corrupção e a tolerância a práticas de suborno sejam defendidos como mecanismos para a dinamização de determinados negócios. Essa perspectiva remete à controversa e pseudocientífica teoria da graxa (grease-the-wheels theory), que sugere que pequenos atos de corrupção poderiam, paradoxalmente, contribuir para a eficiência econômica, especialmente em países marcados por uma burocracia excessiva. Segundo essa concepção, subornos de menor escala funcionariam como um lubrificante para os entraves negociais, com potencial de reduzir barreiras administrativas e acelerar processos decisórios.
Contudo, essa teoria é profundamente falaciosa e apresenta falhas estruturais graves. A corrupção sistêmica, em vez de facilitar negociações, eleva os custos de transação, criando um ambiente artificial que premia não os melhores negócios, mas aqueles que se submetem a práticas ilícitas. Esse mecanismo gera um ciclo vicioso, no qual o suborno se torna uma exigência recorrente para a concretização de transações empresariais.
Além disso, seus efeitos sobre a economia e a governança são amplamente negativos. Estudos demonstram que países com elevados índices de corrupção tendem a apresentar menor crescimento econômico, pior distribuição de renda e serviços públicos de baixa qualidade. A corrupção não apenas enfraquece as instituições democráticas, mas também mina a confiança da população no Estado, comprometendo a estabilidade e o desenvolvimento sustentável das nações.
Corrupção global
A flexibilização da FCPA pode ser exatamente a “graxa” que faltava para tornar ainda mais escorregadia a engrenagem da corrupção global, além de incentivar uma mentalidade que favorece práticas ilícitas sob o pretexto de “facilitar os negócios”.
Ao invés de flexibilizar a FCPA, o caminho mais lógico e eficaz seria o fortalecimento da convenção da OCDE e o avanço da edição de leis anticorrupção ao nível global. Medidas nesse sentido promoveriam um nivelamento nas práticas empresariais em todo o mundo, evitando que países com normas mais brandas se tornem refúgios para práticas corruptas.
Diante desse cenário, é fundamental que o Brasil não siga este tipo de sugestão, especialmente considerando que nossos índices de corrupção são significativamente mais elevados. Segundo a Transparência Internacional, o país atingiu, neste ano, a pior posição já registrada no Índice de Percepção da Corrupção, ocupando o 107º lugar entre 180 nações — uma queda de 34 posições em relação à última publicação.
Nesse contexto, qualquer iniciativa voltada ao abrandamento da legislação anticorrupção não representaria apenas um retrocesso, mas um grave risco institucional, aprofundando as fragilidades já existentes e comprometendo a confiança na integridade das relações público-privadas. Ao invés de flexibilizar normas e reduzir mecanismos de fiscalização, o Brasil deve reforçar sua estrutura de combate à corrupção, consolidando avanços na governança pública no setor empresarial que garanta um desenvolvimento econômico sustentável e equitativo para todos.