Internacional
Proibição de burca ainda divide Holanda
Em agosto de 2019, Amsterdã baniu o uso de vestimentas que cobrem o rosto, alegando razões de segurança. Muçulmanas registram aumento de intolerância. E regras anti-coronavírus tornam a questão ainda mais controversa.
Atravessando depressa a praça Bos en Lommerplein, no oeste da Amsterdã, Emarah* chama a atenção. Gotas de chuva correm por sua burca preta abaixo, ensopando a bainha. Faz três anos que ela começou a trajar a peça de vestuário que cobre o corpo inteiro, inclusive o rosto.
“As pessoas pensam que eu tenho que usar burca porque o meu marido manda, mas é a minha própria escolha”, conta à DW. “Na verdade, eu nem tinha marido quando comecei.”
“É bem difícil usar burca. As pessoas veem você como o inimigo, o que faz você se sentir totalmente só, isolada num canto. É injusto”, queixa-se Emarah, com evidente frustração na voz. “Estou sendo discriminada só porque quero praticar minha religião, pela minha escolha.”
Em 1º de agosto completou-se um ano desde que o governo holandês aprovou uma polêmica lei proibindo roupas que “cubram completamente o rosto”, em transportes e edifícios públicos como escolas, hospitais e repartições. O país seguia o exemplo de leis semelhantes, embora mais rigorosas, da França e da Bélgica, onde a burca está radicalmente banida das ruas.
Essa interdição foi a culminação de um processo iniciado 14 anos atrás por Geert Wilders, líder do populista de direita Partido pela Liberdade (PVV). A principal razão dada por Amsterdã para adotar a medida foi a segurança pública.
Quem se recusa a remover a cobertura facial pode levar uma multa que varia entre 150 e 450 euros. Segundo porta-voz da polícia nacional, contudo, apenas “um punhado” de cidadãs foram multadas em 2019 por trajar a vestimenta islâmica. Cerca de 5% dos 17 milhões de cidadãos da Holanda são muçulmanos.
Emarah conta que “as reações em público ficaram mais agressivas do que nunca”, apesar de ainda ser legal vestir burca nas ruas do país. Ela já sofria violência antes da proibição: “Quando eu estava no supermercado, as pessoas batiam nas minhas pernas com o carrinho de compras para eu me afastar.” Recentemente, contudo, um homem chegou a tentar atropelá-la.
Saúde sim, religião não?
Anne e Truus Postma estão tomando chá na praça Lambertus de Zijlplein, num popular bairro de imigrantes no oeste de Amsterdã. Comerciantes vendem legumes frescos na feira de segunda-feira. Para elas, a praça não mudou muito desde a interdição: “Eu prefiro ver os rostos delas, mas quase não havia mulheres de rosto coberto, de qualquer modo”, afirma uma das irmãs.
Sentada num banco de madeira no outro extremo da praça, Leila se diz satisfeita com a proibição. “É simplesmente demais. Você está vivendo num país europeu, por que precisa se cobrir desse jeito? Uma echarpe como esta minha já basta.” Giulio Bonotti, funcionário ítalo-somaliano da prefeitura, também aprova a legislação. “Não gosto nem um pouco desses véus, é tortura. É como se a mulher não valesse nada. Eles estão certos em proibir a burca.”
Apesar de sua fama mundial de liberalismo, “a Holanda está ficado cada vez menos tolerante”, constata Emarah com um suspiro. Ela considera a lei “um ataque ao islã”, contrariando diretamente seu direito à liberdade de religião, consagrado tanto na Constituição holandesa quanto na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Se a obrigassem a remover a burca “seria humilhante”: foi sua escolha usá-la, e gostaria de só removê-la por decisão própria.
Safa*, de 30 anos, muçulmana praticante, sente que o banimento espalhou medo entre a sociedade islâmica mais ampla, apesar de apenas uma pequena minoria das mulheres, talvez 150, trajarem burca ou niqab na Holanda. Algumas de suas amigas mais religiosamente conservadoras emigraram para outros países, sobretudo o Reino Unido, e ela não se sente “mais bem-vinda aqui”.
Esse sentimento se exacerbou quando, em julho de 2019 o tabloide Algemeen Dagblad publicou um artigo conclamando à “prisão cidadã” das mulheres que infringissem a lei. Segundo Safa, “quando isso aconteceu, até mesmo muçulmanos jovens, moderados, começaram a ficar preocupados”.
Assim como outras que portam niqab ou burca, Emarah vê uma certa ironia nas novas normas para conter a pandemia de covid-19 na Holanda, que tornaram obrigatório o uso de máscaras protetoras nos transportes públicos. É como se as mulheres podem ser punidas tanto por usar quanto por não usar cobertura facial, dependendo da finalidade. “É totalmente contraditório”, critica Emarah, pois está errado considerar-se a saúde pública um motivo válido para cobrir o rosto, mas não a fé religiosa.
Ela não está só. Diversas organizações, encabeçadas pelo grupo Blijf van mijn Niqaab (Não toque o meu niqab) estão agora apelando ao Ministério do Exterior, a Casa dos Representantes e o Senado da Holanda para que revoguem a lei contra a cobertura do rosto, argumentando que, à luz dos recentes regulamentos anti-coronavírus, seus argumentos legais se tornaram nulos. “Vou lutar pelo meu direito”, promete Emarah.