CIÊNCIA & TECNOLOGIA
Como redes sociais derrubam regulações e hedge funds
Facebook, YouTube e outras plataformas reduzem custo de ações de pressão sobre o poder público
Em questão de semanas, Melvin Capital, um hedge fund tradicional de Wall Street, foi levado às portas da falência. Dois outros fundos tiveram que injetar em torno de US$ 2,75 bilhões para salvar a empresa da bancarrota.
Melvin Capital havia apostado na baixa das ações da GameStop (GME), uma rede de lojas de video games que valia uns US$ 2 bilhões na bolsa de valores de NY. Mas como do nada, o preço das ações começou a subir de forma incontrolada, impondo perdas bilionárias ao fundo. Mas o que ou quem estava por trás desta subida de preço vertiginosa da GameStop (as ações chegaram a subir 1.700% no mês de janeiro)?
Não foi nenhuma reviravolta no negócio da GameStop, nem ações dos grandes players do mercado, como um concorrente ou mega banco de investimento, mas daytraders (que na sua maioria são pequenos investidores).
Num chat da Reddit chamado WallStreetBets, um pequeno grupo de daytraders irreverentes decidiu apostar na GameStop e algumas outras empresas, como a rede de cinema AMC, e comprar suas ações, forçando a subida na bolsa.
Mas como isso é possível? Como é que alguns daytraders têm a capacidade de jogar o preço de uma empresa lá em cima e derrubar um hedge fund? Da mesma maneira que ano passado, duas ONGs lançaram uma campanha online à qual outras rapidamente aderiram, fazendo com que a CONITEC – que decide quais medicamentos devem ser incorporados ao SUS – decidisse em meras duas semanas a finalmente abrir suas reuniões à sociedade.
Ou que uma petição na AVAAZ lançada em 2016 contra a franquia da banda larga fixa juntasse mais de 200.000 assinaturas (novamente) em duas semanas e em torno de 1 milhão em um mês. Ou que durante as discussões em torno da neutralidade da rede nos EUA, dezenas de milhares de pessoas atenderam ao pedido de John Oliver no seu programa na HBO, e enviaram comentários a agência que regula o setor de comunicação, a Federal Communications Commission (FCC), a favor da neutralidade da rede, derrubando o site. Isto é, daytraders jogaram o preço das ações da GameStop lá em cima devido à força conectiva das redes.
O caso Gamestop é só o exemplo mais recente desta força. E desta vez é até possível quantificá-la: US$ 22 bilhões. Foi quanto o valor da empresa chegou a subir na bolsa de valores de NY (dos US$ 2 para US$ 24 bilhões). Mas não bastam alguns daytraders coordenarem publicamente suas ações num grupo de chat.
É necessário um número muito maior de pessoas, e aí entra uma característica chave das redes sociais. A conexão.
De repente, um grande número de pessoas decide comprar as ações da GameStop, compartilhando tudo nas redes, incentivando uns aos outros. Cada um com sua motivação. Uns para mostrar aos poderosos de Wall Street que os pequenos, coletivamente, também tem força (suficiente para derrubar um hedge fund); outros para simplesmente lucrar; e mais uns outros que compraram só porque outros compraram, e por aí vai.
De vez em quando eu dou uma olhada no ranking das ações mais compradas e uns dias antes deste caso virar notícia notei uma tal de GME. Fui olhar do que se tratava e vi que era uma loja de video games. Pensei: “Quem são esses loucos que estão comprando ações de uma loja de video games?!”, e deixei pra lá. Mal sabia eu…
Naquele dia, as ações da GME já estavam subindo vertiginosamente, uns 40-50%. O sistema (de pessoas e instituições comprando e vendendo ações) já havia chegado ao seu ponto crítico, ou tipping point, em que ele passa a ter vida própria.
Isto é, o comportamento do sistema passou a refletir o comportamento coletivo, que traz o termo técnico de self organizing system. Não existe mais um player que influencia a tomada de decisão dos outros participantes, mas centenas ou milhares de pessoas que tomam decisões por que outras tomaram.
É como um bando de pássaros que voam na mesma direção, seguindo não a um líder, mas sendo influenciados por aqueles em seu entorno, que por volta, são influenciados pelo seu entorno, e assim por diante. É o tal efeito manada.
No caso da CONITEC, a Amigos Múltiplos pela Esclerose (AME) e a Crônicos do Dia a Dia (CDD) iniciaram a campanha #transparênciaéregra a favor da divulgação pública das decisões da Comissão, uma demanda antiga que já vinha sendo debatida com a CONITEC desde meados de 2019.
Em questões de dias outras associações de pacientes, como a Oncoguia e Biored Brasil, se juntaram à campanha criando uma massa crítica de organizações com força suficiente para levar a CONITEC a alterar sua prática.
No caso da franquia da banda larga fixa, a petição na AVAAZ, que chegou a 1.6 milhões de assinaturas, ajudou a reverter temporariamente a decisão da Anatel de criar uma franquia. São todos exemplos de ações viabilizadas pelas redes sociais.
Um dos fatores por trás da escalada de preços da GameStop foi a entrada em cena de um novo aplicativo, Robinhood, que popularizou (ou democratizou) a compra e venda de ações, inclusive de frações de ações, reduzindo o custo de operar na bolsa. Nada diferente da democratização do lobby através de plataformas como Facebook, Twitter e YouTube, que reduzem o custo das ações de pressão sobre o poder público.
Depois do susto, o sistema financeiro foi tentar entender o que se fala nestas tais plataformas sociais. Não querem mais ser pegos de surpresa. Entenderam que até em Wall Street o poder foi redistribuído, indo parar na mão do cidadão. Na bolsa de valores são os daytraders, no lobby, é o cidadão stakeholder.