Judiciário
Penas alternativas nos casos de homicídio e lesão culposos qualificados pela embriaguez no CTB
Originalmente as chamadas “Penas Alternativas ou Substitutivas”, de acordo com o disposto no artigo 44, I, “in fine”, CP seriam cabíveis em todos os crimes culposos, independentemente de onde fossem previstos ou mesmo da quantidade de pena privativa de liberdade aplicada.
Enquanto para os crimes dolosos a pena aplicada não pode ultrapassar 4 anos, para os crimes culposos o legislador abre a possibilidade de substituição sem maiores exigências. Conforme ensina Greco:
A primeira exigência contida no inc. I diz respeito à quantidade da pena. A substituição somente se viabiliza se a pena aplicada não for superior a quatro anos, nos casos de infrações dolosas, uma vez que para os delitos culposos a lei não fez qualquer ressalva com relação ao limite de pena aplicada (grifo nosso). [1]
Assim sendo, até o advento da Lei 14.071/20, cujo início de vigor se dá em 12 de abril de 2021, as penas alternativas poderiam ser aplicadas a todos os crimes culposos, fossem eles previstos no Código Penal ou no Código de Trânsito Brasileiro, fossem eles cometidos sob quaisquer circunstâncias, não havia limitações legais para a aplicação das penas alternativas em crimes culposos, salvo os requisitos normais previstos no artigo 44, CP, especialmente em seu inciso III (requisitos subjetivos que seriam exigíveis mesmo no caso de crimes culposos).
Entretanto, a Lei 14.072/20 inseriu um artigo 312 – B no CTB, passando doravante a proibir a substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direito nos casos de Homicídio Culposo e Lesão Corporal Culposa qualificados pela embriaguez. E mais, no caso das Lesões Corporais Culposas, para aqueles que entendem que a penalidade mais gravosa prevista no artigo 303, § 2º., CTB se dá pela embriaguez ou pela ocorrência de lesões de natureza grave ou gravíssima, também haveria o impedimento acaso esse resultado mais grave ocorra, independentemente da embriaguez.
Em resumo:
A Lei 14.071/20 impede penas alternativas nos Homicídios Culposos e Lesões culposas do CTB, nos seguintes termos:
a) No Homicídio Culposo, conforme previsto no artigo 302, § 3º., CTB, ou seja, se o agente estiver embriagado quando ocorre o acidente. Aqui não há espaço para maiores indagações.
b) Nas Lesões Corporais Culposas, conforme previsto no artigo 303, § 2º., CTB. A princípio ali se exige que o agente esteja embriagado e resultem lesões graves ou gravíssimas. [2] Sendo a conjunção aditiva (e) não haveria maiores dúvidas e, portanto, as penas alternativas seriam vedadas quando o agente estivesse embriagado e houvesse lesões graves ou gravíssimas. Estando apenas embriagado, mas sem lesões graves ou gravíssimas causadas à vítima ou não estando embriagado, mas havendo lesões graves ou gravíssimas, não estaria configurada a qualificadora do artigo 303, § 2º. e, portanto, não haveria a vedação do artigo 312 – B, CTB. Isso porque esse artigo 312 – B se refere expressamente ao § 2º. do artigo 303, CTB e não a um ou outro resultado ou condição.
Não obstante, há dúvidas ainda sobre essa questão, pois pode parte da doutrina entender que, embora usando o legislador a conjunção aditiva “e” no § 2º. do artigo 303, CTB, o crime se qualificaria ocorrendo um dos dois casos ali previstos, quais sejam a condição ébria do condutor ou os resultados mais gravosos para a vítima (lesões graves ou gravíssimas). Nesse quadro de pensamento, as penas alternativas seriam então vedadas tanto no caso de embriaguez, mesmo sem lesões graves ou gravíssimas, como no caso de lesões graves ou gravíssimas, mesmo sem embriaguez.
Entende-se, porém, que deve prevalecer o primeiro entendimento, segundo o qual haverá vedação no caso de embriaguez no Homicídio Culposo do CTB e na Lesão Culposa do CTB, apenas quando houver a embriaguez e o resultado mais gravoso das lesões graves ou gravíssimas.
É evidente que nos casos de Homicídio ou Lesões Culposas do Código Penal, nada se altera com relação à possibilidade de penas alternativas nos estritos termos do artigo 44, CP, eis que o artigo 312 –B, CTB somente se aplica aos casos do trânsito. Também nada se altera quanto à ampla possibilidade de aplicação da substituição nos casos de crimes de trânsito de homicídio ou lesão culposos nos quais não haja qualificação pela embriaguez, nos termos dos artigos 302, § 3º. ou 303, § 2º., CTB (lembrando que nas lesões, ao menos como entendimento predominante, a vedação se dará com a ebriedade mais o resultado lesões graves ou gravíssimas, não bastando somente a condição ébria ou somente o resultado mais grave para gerar a vedação legal).
Essas proibições de penas alternativas não podem retroagir, pois que se trata de “novatio legis in pejus”. Sua aplicação será apenas para os casos ocorridos do dia 12 de abril de 2021 em diante. Antes disso, as penas alternativas podem perfeitamente ser aplicadas, mesmo nos casos qualificados do artigo 302, § 3º. ou 303, § 2º., CTB. A única exigência será aquela genérica de que o autor do fato se adeque aos requisitos subjetivos para a concessão do benefício, conforme consta do artigo 44, III, CP.
É ainda interessante mencionar uma interpretação bastante inusitada veiculada pelo autor Márcio André Lopes Cavalcanti. Ele afirma que a Lei 14.071/20, na verdade, de acordo com a interpretação gramatical do artigo 312 – B, CTB, não teria efetivamente vedado penas alternativas aos casos ali elencados, mas, ao reverso, reduzido os requisitos para a aplicação da benesse. Alega o autor que o legislador, ao fazer menção expressa direta ao inciso I do artigo 44 CP, não teria proibido as penas alternativas nos casos estudados, eis que não teria atuado sobre o “caput” do artigo 44, CP. Assim sendo, segundo Cavalcanti, apenas não haveria para os crimes do CTB de homicídio e lesão culposos as exigências previstas no inciso I do artigo 44, CP, mas somente as dos incisos II e III. Dessa forma, ao contrário de proibir penas alternativas, teria o legislador possibilitado mais amplamente sua aplicação, mesmo nos casos de crimes qualificados do CTB. [3]
A interpretação dada por Cavalcante, centrada no aspecto meramente gramatical, é criativa, mas não se sustenta.
Em seu próprio texto o autor expõe que a intenção da criação da lei foi a de restringir as penas alternativas nos casos enfocados. Em suas palavras:
A Lei nº 14.071/2020 inseriu o art. 312-B do CTB com o objetivo de proibir a aplicação de penas restritivas de direitos para os crimes do art. 302, § 3º e do art. 303, § 2º do CTB. Essa foi a intenção do legislador conforme se observa pelas notícias divulgadas pelos sites oficiais do Senado Federal e da Presidência da República:
“O presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.071, que promove uma série de alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB). A norma, que foi publicada com vetos na edição desta quarta-feira (13) do Diário Oficial da União, entra em vigor dentro de 180 dias. (…)
“A nova norma prevê também que, em casos de lesão corporal e homicídio causados por motorista embriagado, mesmo que sem intenção, a pena de reclusão não pode mais ser substituída por outra mais branda, restritiva de direitos.”
“O presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou a Lei 14.071/20, com mudanças na lei de trânsito aprovadas pelo Congresso Nacional. Dentre as principais alterações, destacam-se:
(…)
Proibir a conversão de pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos quando o motorista comete homicídio culposo ou lesão corporal sob efeito de álcool ou outro psicoativo;” (grifos nossos). [4]
Diante disso já se pode afirmar que a interpretação meramente gramatical jamais poderia ser o melhor caminho no caso em destaque. Como se sabe, já alertava São Paulo: “a letra mata, o espírito vivifica” (Corintios, 3:6).
Além do mais, nem mesmo a interpretação gramatical mais correta pode levar à conclusão de Cavalcanti. O inciso I do artigo 44 estabelece requisitos para as penas alternativas no caso de crimes dolosos. No caso de crimes culposos, não estabelece requisitos, não exige nada, apenas permite amplamente sua aplicação. Ou seja, não é uma norma restritiva, mas permissiva. E é exatamente essa permissão aberta e incontida que passa a ser proibida com o advento da Lei 14.071/20 e do novel artigo 312 – B, CTB. Fato é que Cavalcanti se equivoca ao interpretar o inciso I do artigo 44, CP como portador de exigências para a possibilidade de aplicação de penas alternativas para delitos culposos. Não há ali exigência alguma e sim o afastamento de exigências, o que é revogado pela Lei 14.071/20 e o advento do artigo 312 – B, CTB. Uma norma proibitiva advinda altera o quadro e invalida a permissividade antes reinante. Ocorre o exato oposto do que criativamente defende o autor em destaque.
Finalmente há que fazer uma observação acerca da futura efetividade dessa alteração legislativa. Vimos que ela promove uma restrição, uma proibição absoluta de substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direito em casos de crimes de Homicídio Culposo e Lesão Corporal Culposa de trânsito quando qualificados nos termos dos artigos 302, § 3º. e 303, §2º., CTB. Pois bem, essa restrição absoluta pela lei de individualização da pena pelo magistrado no caso concreto, já foi objeto de análise e decisões reiteradas pelo STF, concluindo o E. Tribunal que há violação do Princípio da Individualização da Pena, sendo, portanto, tais dispositivos inconstitucionais. E, diga-se mais, isso foi decidido pelo STF em casos envolvendo crimes hediondos ou equiparados. Paradigmática é a decisão do Tribunal Supremo quanto à possibilidade de penas alternativas em casos de Tráfico de Drogas, devendo cada caso concreto ser individualizado e negando-se legitimidade à proibição imposta pelos então artigos 33, § 4º. c/c 44 da Lei 11.343/06 (STF, ARE 663261 e HC 97256). [5]
Embora não se possa na seara jurídica pretender fazer previsões infalíveis, na maioria das vezes sequer seguras, pode-se afirmar que existe uma forte tendência a que o STF venha a declarar a vedação absoluta prevista pela Lei 14.071/20, conforme o novo artigo 312 – B, CTB inconstitucional. Ora, se no caso de Tráfico de Drogas e outros crimes hediondos vem a Corte se manifestando assim, [6] não seria em nada coerente que em meros crimes culposos tomasse outro caminho.
REFERÊNCIAS
ALVES, Verena Holanda de Mendonça. A situação dos crimes hediondos e equiparados frente à possibilidade de aplicação das penas restritivas de direito. Disponível em https://jus.com.br/artigos/23724/a-situacao-dos-crimes-hediondos-e-equiparados-frente-a-possibilidade-de-aplicacao-das-penas-restritivas-de-direitos#:~:text=O%20STF%20vem%20admitindo%20a,ou%20grave%20amea%C3%A7a%20%C3%A0%20pessoa. Acesso em 13.02.2021.
CAVALCANTI, Márcio André Lopes. A Lei 14.071/20 realmente proibiu as penas restritivas de direitos para os crimes do art. 302, § 3º. e do art. 303, § 2º. do Código de Trânsito? Disponível em https://www.dizerodireito.com.br/2020/10/a-lei-140712020-realmente-proibiu-as.html , acesso em 13.02.2021.
COLAÇO, Marcelo Ricardo. O Volátil Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/o-volatil-codigo-de-transito-brasileiro , acesso em 13.02.21.
CUNHA, Rogério Sanches. Lei 13.546/17: Altera disposições do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2017/12/20/lei-13-54617-altera-disposicoes-codigo-de-transito-brasileiro/ , acesso em 13.02.2021.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2018.
PLENÁRIO Virtual – Reafirmada jurisprudência sobre impedimento de pena alternativa previsto na Lei de Drogas. Disponível em https://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalNoticias&idConteudo=228602 , acesso em 13.02.2021.
NOTAS
[1] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2018, p. 184.
[2] Neste sentido: COLAÇO, Marcelo Ricardo. O Volátil Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/o-volatil-codigo-de-transito-brasileiro , acesso em 13.02.21. CUNHA, Rogério Sanches. Lei 13.546/17: Altera disposições do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2017/12/20/lei-13-54617-altera-disposicoes-codigo-de-transito-brasileiro/ , acesso em 13.02.2021.
[3] CAVALCANTI, Márcio André Lopes. A Lei 14.071/20 realmente proibiu as penas restritivas de direitos para os crimes do art. 302, § 3º. e do art. 303, § 2º. do Código de Trânsito? Disponível em https://www.dizerodireito.com.br/2020/10/a-lei-140712020-realmente-proibiu-as.html , acesso em 13.02.2021.
[4] Op. Cit.
[5] Cf. PLENÁRIO Virtual – Reafirmada jurisprudência sobre impedimento de pena alternativa previsto na Lei de Drogas. Disponível em https://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalNoticias&idConteudo=228602 , acesso em 13.02.2021. Ademais, o § 4º., do artigo 33 da Lei 11.343/06 foi suspenso na dicção “vedada a conversão em pena restritiva de direitos” pela Resolução número 5, de 15.02.2012 do Senado Federal, em acatamento ao entendimento exposto pelo STF.
[6] Alves deixa bem clara a posição do STF, admitindo penas alternativas em casos de crimes hediondos ou equiparados, desde que não marcados pela violência ou grave ameaça. ALVES, Verena Holanda de Mendonça. A situação dos crimes hediondos e equiparados frente à possibilidade de aplicação das penas restritivas de direito. Disponível em https://jus.com.br/artigos/23724/a-situacao-dos-crimes-hediondos-e-equiparados-frente-a-possibilidade-de-aplicacao-das-penas-restritivas-de-direitos#:~:text=O%20STF%20vem%20admitindo%20a,ou%20grave%20amea%C3%A7a%20%C3%A0%20pessoa. Acesso em 13.02.2021.
Autor
- Eduardo Luiz Santos Cabette – Delegado de Polícia em Guaratinguetá (SP). Mestre em Direito Social. Pós-graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós-graduação da Unisal. Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.