CONCURSO E EMPREGO
Por que os concursos públicos das Universidades Federais estão indo parar na justiça?
Estabilidade profissional e bons salários. Esses são os dois principais motivos que levam milhares de brasileiros para o mundo dos concursos públicos.
O concurso público é uma forma democrática de avaliação, na qual os candidatos se preparam e disputam as vagas disponibilizadas pela Administração Pública.
Sobre esse assunto, gosto bastante da definição de concurso público dada pelo professor Hely Lopes Meirelles.
Segundo ele, “O concurso público é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da Constituição Federal.”
Continua o professor: “Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantêm no poder leiloando cargos e empregos públicos.”
Pois bem.
O que me faz gostar dessa definição do professor Hely é que ela diz, claramente, que o objetivo do concurso público é propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, afastando possíveis privilégios políticos.
E esse ponto, por incrível que pareça, é o problema que está levando os concursos públicos para docentes de Universidades Federais (e dos Institutos Federais, também) para a justiça.
Vou explicar melhor.
A avaliação de um concurso público normalmente é feita por uma prova objetiva, de múltipla escolha, e uma prova discursiva.
É um padrão que se repete na maioria dos processos seletivos no país.
No caso dos concursos públicos para o cargo de professor de universidade federal (ou mesmo de instituto federal), existem mudanças significativas na forma de avaliação e escolha do candidato para a vaga.
Por causa da autonomia universitária, que é prevista na Constituição Federal, existem algumas diferenças nos concursos públicos de cada instituição, mas todas seguem o mesmo “norte”.
Como se trata de um cargo para o qual a vida acadêmica e a produção científica são muito relevantes, esse tipo de certame é composto pelas seguintes fases:
1- Prova didática
A prova didática é uma aula que é ministrada pelos candidatos.
Tem uma duração média de 40 a 50 minutos e é através dela que a banca pode avaliar vários aspectos, que vão desde a fase de planejamento da aula até mesmo pontos importantes de sua execução.
Durante essa fase, observa-se a desenvoltura do professor, a sua didática, a utilização de recursos pedagógicos, a criatividade ao apresentar o tema, sua profundidade e o respeito ao tempo estipulado.
É importante destacar que os critérios de avaliação da aula devem ser previamente conhecidos por todos, para que não haja nenhuma surpresa na hora da prova.
Mesmo assim, não podemos negar que são aspectos bastante subjetivos a serem avaliados, e a percepção de cada avaliador pode impactar muito na nota do candidato (positiva ou negativamente).
Afinal, para alguns professores o aprofundamento do conteúdo é a parte mais importante; para outros, a aula só será boa se estiver no nível de graduação. Alguns gostam de tecnologia; outros nem tanto. São muitas variáveis.
Para diminuir a margem de subjetivismo na avaliação da aula, garantindo – ou pelo menos tentando – a lisura do concurso, a banca terá que motivar muito bem cada uma das notas, sob pena de incorrer em ilegalidade.
Não dá para motivar negativamente algum ponto da aula falando que, simplesmente, “não gostou” e ponto final, ou, então, apenas lançando uma nota qualquer, arbitrariamente.
O membro da banca tem que ser técnico, objetivo e motivar a sua justificativa de acordo com os critérios que foram previamente apresentados no edital do concurso e em normas complementares.
E aqui eu faço uma ressalva.
No final de 2018, houve uma alteração na LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) sobre a responsabilidade pessoal do servidor público. Veja o que diz a nova redação do art. 28 dessa lei:
Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
Ou seja, a avaliação do membro da banca não pode conter erro grosseiro ou mesmo alguma manifestação dolosa.
Se caso isso acontecer, esse membro pode – e deve – responder, pessoalmente, do ponto de vista disciplinar.
2- Prova teórica
A prova teórica é a que sofre mais variações entre instituições e as áreas dos concursos.
Contudo, raramente são provas de múltipla escolha, como ocorre em concursos tradicionais, o que significa também certa abertura à subjetividade.
Mas, sem dúvida, é a parte mais objetiva do concurso e, também, a que apresenta menos problemas.
3- Avaliação de títulos
A etapa de avaliação de títulos é bastante valorizada em concursos para o magistério superior.
E deveria, também, ser muito objetiva.
Só que é justamente nessa fase que está ocorrendo uma série de problemas, fazendo com que os candidatos busquem a justiça para resolvê-los.
O primeiro problema, e na minha opinião, o mais grave, é a falta de publicidade na divulgação de como foram calculados os pontos de cada candidato.
E não é só isso!
As bancas também não disponibilizam aos participantes do concurso quais foram os títulos apresentados pelos seus concorrentes, dando margem para uma série de erros, ilegalidades e favorecimentos.
E não adianta permitir a conferência apenas no momento da entrega dos títulos.
Normalmente, são centenas de documentos de cada candidato, o que torna impossível uma conferência detida por parte de todos, principalmente se considerarmos que cada um desses documentos tem uma nota específica que deve ser dada e motivada de acordo com o edital por cada membro da banca.
Essa permissão para conferir os títulos no momento da entrega é o famoso “para inglês ver…” cuja definição no dicionário Houaiss é “para efeito de aparência, sem validez”.
A lisura do concurso é garantida mediante a disponibilização dos comprovantes após estarem inseridos na planilha de pontuação, justificadamente, pois somente assim será possível conferir como cada título foi valorizado pela banca.
Só para você ter uma ideia de como isso é perigoso, em um caso aqui do nosso escritório a universidade estava negando acesso aos títulos de uma candidata.
O nosso cliente ficou desconfiado da pontuação que foi concedida pela banca à sua concorrente após analisar os títulos que estavam na plataforma lattes.
Com os cálculos que fizemos de acordo com os títulos do lattes e nos parâmetros oferecidos pelo edital do concurso, a candidata deveria ter recebido metade da nota que havia recebido na fase de títulos.
Após apresentarmos vários recursos administrativos dentro da instituição (todos negados), recorremos até a Controladoria-Geral da União, que determinou à universidade que apresentasse os títulos da candidata e a explicação da pontuação que foi dada.
Resultado: a suspeita do nosso cliente estava correta.
A banca concedeu muitos pontos além do que deveria para a candidata, o que fez com ela pulasse da segunda para a primeira colocação do concurso, que só tinha uma vaga.
Veja a notícia completa clicando aqui.
Esse é só um caso que utilizamos para mostrar os riscos de não se ter uma fase de títulos objetiva e transparente.
Existem dezenas de outros casos aqui no escritório que contaremos em oportunidades futuras, à medida que os processos forem se encerrando.
4- Memoriais
A prova de memoriais, em regra, consiste na apresentação da trajetória acadêmica do candidato.
Ele deve demonstrar porquê fez as escolhas de pesquisa, de locais para pesquisar, como se envolveu com os temas, desde a sua iniciação científica, passando pelo mestrado, doutorado e até pós-doutorado, com coerência.
Abrange, ainda, a visão de futuro da pesquisa do candidato, isto é, como ele poderá desenvolver a sua pesquisa na instituição, e como essa relação (instituição-futuro professor) pode ser benéfica para ambos.
Essa é a avaliação mais subjetiva de todas, e isso é um verdadeiro risco à lisura do certame.
Só que existe um ponto que pouca gente fala, mas que deve ser levado em consideração pelos candidatos que estão prestando concursos para o magistério superior de universidades federais.
Existe uma correlação entre a prova de títulos e os memoriais.
Afinal, não faz sentido, além de ser ilegal, que um candidato com pouquíssimos títulos para “mostrar” no concurso supere, em muito, na prova de memoriais, um candidato já tenha uma longa trajetória acadêmica.
Em outro caso emblemático aqui do escritório, e que ainda está na justiça, uma candidata que acabou de receber o título de doutora recebeu uma nota altíssima nos memoriais, que a colocou em primeiro lugar no concurso, que também só tinha uma vaga.
Isso, por si só, não seria ilegal.
Acontece que, se comparado com os outros dois candidatos, ela foi a que apresentou menos títulos – tanto que a pontuação na fase de títulos foi baixíssima – e uma das candidatas que ficou em posição inferior à dela tem mais de 15 anos de vida acadêmica ativa após o doutorado, com dois programas de pós-doutorado, e ainda foi assessora direta, por quatro anos, de uma das principais autoridades norte-americana, dentro da área do concurso.
Entenderam como é absurdo que uma “recém-formada” tenha uma nota muito maior na prova de memoriais nesse caso?
Não faz sentido. Não há lógica e nem coerência. É um favoritismo ilegal que prejudica a lisura do certame.
E foi justamente essa super nota na prova de memoriais que jogou a candidata para a primeira colocação do concurso.
Quando um candidato é “de casa”…
Diante de tantos casos que têm chegado aqui no escritório, temos percebido que, infelizmente, a lição do mestre Hely Lopes Meirelles não vem sendo respeitada em um número enorme de concursos para universidades e institutos federais.
A grande margem de subjetividade nas fases desses certames permite que as bancas atropelem princípio básicos do direito, que são (ou pelo menos deveriam ser) de observância obrigatória pela Administração Pública.
Os pretextos são variados: de se aprovar o “candidato” certo, ou o candidato que tenha “afinidade com a instituição” (seja ela política, acadêmica ou outra qualquer).
Na prática, o que temos visto é que sempre que chega uma demanda desse tipo aqui no escritório, o candidato “favorecido” tem algum tipo de relação, direta ou indireta, com algum membro da comissão do concurso.
E veja só: isso não significa que a banca, necessariamente, agiu de má-fé para favorecer algum candidato.
É claro que há casos que esse favorecimento realmente é proposital, e isso pode até caracterizar ato de improbidade administrativa.
Mas também existem vários casos em que um dos candidatos é “de casa” por ter feito graduação, mestrado ou doutorado (ou mesmo os três) dentro da instituição, e acaba que ele já teve relacionamento direto ou indireto com algum membro daquela banca.
Outra situação bastante comum é quando o orientador do candidato “favorecido” é amigo de algum membro da banca do concurso e acaba pedindo que seja dada preferência para o “fulano”.
Isso acontece mais do que você possa imaginar.
Num outro caso aqui no escritório, um docente entrou em contato conosco para que o defendêssemos em um PAD que ele estava respondendo perante a instituição de ensino.
Quando analisamos o processo disciplinar, vimos que era totalmente sem fundamento e sem prova alguma.
Parecia ter sido feito só para dar dor de cabeça para aquele servidor.
Quando fui questionar se havia alguma situação de perseguição por trás daquele PAD, o servidor me confidenciou que ele havia sido convocado para compor uma comissão de um concurso público daquela faculdade, mas que já tinha o candidato certo para ser aprovado.
Como ele se recusou a participar dessa comissão, acabou ganhando de presente um processo administrativo disciplinar (a pessoa que havia convidado o servidor para participar da comissão falou, após a negativa, que ele pagaria caro por isso).
Mas, então, o que fazer em caso de irregularidades?
Por sorte, diante tantas denúncias envolvendo esses concursos, os órgãos de controle estão cada vez mais atentos a essa realidade.
Dentre eles, podemos destacar a Controladoria Geral da União (CGU), o Ministério Público Federal e até mesmo o Poder Judiciário.
Se você está participando de algum concurso para o magistério federal de instituição de ensino federal, tenha em mente que o primeiro nível de controle, que é imprescindível para que haja lisura no concurso, é o respeito absoluto pelo princípio da publicidade.
Não se pode mais aceitar que os demais candidatos não possam ter acesso a todas as comprovações de título de seus concorrentes, bem como todos os documentos que compõem o processo administrativo do concurso.
Geralmente, as bancas negam os pedidos de acesso a esses documentos sob o argumento de se tratar de documentos privados.
Mas isso é ilegal!
Se o candidato está ganhando notas por causa dos seus títulos, é óbvio que os outros concorrentes podem e devem ter acesso a esses títulos e às pontuações que foram concedidas pela banca examinadora.
Já o segundo nível de controle é a chamada motivação do ato administrativo.
Isso significa que todas as decisões da banca devem ter os seus motivos justificados.
Isso mesmo: a banca deve explicar por que decidiu daquela forma, e não de outra.
E não há muita opção para a Banca.
Se, por um lado, não tomarem esse cuidado de motivar suas decisões, com o intuito de deixar o concurso pouco claro e favorecer algum candidato, correm o risco de ver o concurso anulado, e responderem judicialmente por isso, conforme explicamos mais acima.
Por outro lado, se tomam o cuidado de justificar e informar adequadamente sobre cada decisão, pode ser bastante complicado favorecer alguém.
Mas é somente assim que se garante a lisura do certame e a proteção dos membros da banca.
O candidato que se sentir prejudicado nesse tipo de concurso deve, inicialmente, identificar se foram obedecidos esses dois níveis de controle.
Se a resposta for positiva, a próxima pergunta que deve se fazer é:
“Posso, de forma clara e objetiva, demonstrar que a decisão da banca está equivocada?”
Se a resposta for sim, pode ser viável o controle do Poder Judiciário sobre a decisão da banca.
Porém, se a resposta a qualquer uma das duas perguntas for negativa, o candidato deve requerer todas as informações sobre o concurso ao órgão de controle interno (nos concursos federais, a Controladoria Geral da União – CGU), que acompanhará a entrega dos documentos.
Essa documentação é importante para que o juiz consiga analisar, de maneira objetiva, a (i) legalidade das pontuações que foram dadas para os candidatos.
Nesse ponto, é necessário que eu te explique uma coisa.
O poder judiciário não pode substituir a banca do concurso e “dar nota” para quem foi prejudicado.
O que o judiciário faz é o controle de legalidade daquele concurso público, verificando se houve o respeito aos princípios constitucionais inerentes à Administração Pública; se as motivações apresentadas pelos membros das bancas são lícitas; se as pontuações dos títulos estão de acordo com a previsão do edital; e se não há desproporção nas pontuações concedidas na fase de memoriais.
Por isso, é muito importante que o candidato tenha todos os documentos em mãos antes de acionar a justiça.
Para garantir alguma liminar para suspender o concurso, ou mesmo para anular notas que foram concedidas indevidamente, o candidato terá que levar isso tudo muito bem alinhado, de forma objetiva, para que o juiz tenha clareza que realmente houve alguma irregularidade naquele certame.
Por fim, é importante que você saiba que, apesar de complicado, de haver margem de subjetividade na avaliação, o concurso público para o magistério federal não é uma terra sem lei, e quando constatado a irregularidade, o poder judiciário tem interferido para sanar esses ilícitos.