Internacional
Facebook bane página do Exército em Mianmar, e milhares voltam às ruas após dia sangrento
Nos últimos anos, o Facebook se envolveu com ativistas de direitos civis e partidos políticos democráticos em Mianmar e se opôs aos militares depois de sofrer críticas internacionais pela missão em conter campanhas e discursos de ódio na plataforma
Um dia depois dos episódios mais sangrentos dos protestos contra o golpe de Estado dado pelos militares em Mianmar, o Facebook baniu a principal página das Forças Armadas e uma multidão crescente voltou às ruas para exigir a volta da democracia.
“Em linha com nossas políticas globais, removemos a página da equipe de informações do Tatmadaw [como é conhecido o Exército mianmarense] por violações repetidas de nossos padrões que proíbem o incitamento à violência e os danos coordenados”, disse um porta-voz da plataforma, por meio de um comunicado divulgado neste domingo (21).
Nos últimos anos, o Facebook se envolveu com ativistas de direitos civis e partidos políticos democráticos em Mianmar e se opôs aos militares depois de sofrer críticas internacionais pela missão em conter campanhas e discursos de ódio na plataforma.
O chefe das Forças Armadas que agora comanda o país, general Min Aung Hlaing, e outros 19 oficiais e organizações já haviam sido banidos pela rede social em 2018. Outras centenas de páginas e contas geridas por militares também foram removidas por “comportamento inautêntico coordenado”– termo técnico utilizado pela equipe do Facebook para se referir ao uso de múltiplas contas falsas para disseminar conteúdo ou aumentar interações na rede.
Pouco antes das eleições parlamentares de novembro, a plataforma, que chegou a ser bloqueada no país após o golpe, também retirou do ar uma rede de 70 contas e páginas falas operadas por militares que publicavam conteúdo favorável ao Exército e contrário à conselheira de Estado, Aung San Suu Kyi, e a seu partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND).
Suu Kyi era, na prática, a líder civil de Mianmar. No golpe de 1º de fevereiro, ela e outras autoridades, como o presidente Win Myint, foram depostos e detidos pelos militares. Posteriormente, a conselheira foi alvo de uma acusação obscura de violação de normas comerciais –ela teria importado ilegalmente seis walkie-talkies. Na semana passada, ela também foi acusada de uma suposta violação dos protocolos de combate à propagação do coronavírus.
Os protestos que se multiplicaram pelas cidades mianmarenses há mais de duas semanas pedem a libertação de Suu Kyi e de outras centenas de presos políticos após a tomada de poder –ao todo, foram 569 detidos desde 1º de fevereiro, segundo a Associação de Assistência a Prisioneiros Políticos de Mianmar.
Além disso, os atos ganharam novo fôlego devido às mortes causadas pela repressão policial contra os manifestantes. Neste sábado, subiu para três o número de mortos durante as manifestações.
Segundo relatos de testemunhas e de médicos dos serviços de emergência, um carpinteiro de 36 anos e um adolescente cuja identidade não foi divulgada morreram em decorrência de ferimentos à bala no peito e na cabeça, respectivamente.
As duas vítimas juntam-se a Mya Khaing, que teve a morte confirmada nesta sexta (19), dez dias depois de também ter sido baleada na cabeça durante protestos na capital do país, Naypyitaw.
Dezenas de milhares de pessoas se reuniram em Mandalay, onde ocorreram as mortes deste sábado, em um ato pacífico em memória das vítimas e contra o regime militar.
“Eles miram nas cabeças de civis desarmados. Eles miraram no nosso futuro”, gritou um jovem manifestante à multidão.Em Rangoon, outros milhares exigiram o retorno da democracia. “Nós, jovens, temos nossos sonhos, mas este golpe militar criou muitos obstáculos. É por isso que saímos para a frente dos protestos”, disse outro participante dos atos à agência de notícias Reuters.
Protestos semelhantes também foram registrados em cidades como Myitkyina, Monywa, Bagan, Dawei, Myeik, Myawaddy e Lashio, contemplando todas as regiões de Mianmar. O sábado foi, até agora, o dia mais sangrento desde que começaram os atos, mas a violência da repressão policial não esmoreceu o ânimo dos manifestantes.
“O número de pessoas vai aumentar, não vamos parar”, disse um participante dos protestos em Rangoon.
Nas redes sociais, há várias fotos e vídeos mostrando membros das forças de seguranças atirando contra manifestantes. Embora não seja possível afirmar o tipo de munição utilizada nos disparos, também há uma série de imagens de cápsulas de projéteis letais encontrados por testemunhas.
“De canhões de água a balas de borracha, a gás lacrimogêneo, e agora a tropas atirando à queima-roupa contra manifestantes pacíficos. Essa loucura deve acabar agora”, disse Tom Andrews, enviado da Organização das Nações Unidas a Mianmar, em uma publicação no Twitter.
Outras lideranças e autoridades internacionais também condenaram o uso excessivo de força na repressão aos protestos, como o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, e o secretário-geral da ONU, António Guterres.
Para a junta militar que agora comanda o país, entretanto, os comentários feitos por nações estrangeiras “equivalem a uma interferência flagrante nos assuntos internos de Mianmar”, de acordo com um comunicado publicado neste domingo pelo Ministério das Relações Exteriores.
A nota reitera que a tomada de poder no país ocorreu dentro dos limites da Constituição, e diz que as forças de segurança mianmarenses estão mantendo a segurança pública em conformidade com as leis nacionais e com as práticas internacionais.”
Apesar das manifestações ilegais, incitações à agitação e à violência, as autoridades em questão estão exercendo o máximo de contenção por meio do uso mínimo da força para enfrentar os distúrbios”, diz o comunicado.
A mídia estatal tem reproduzido o posicionamento da junta militar. O jornal Global New Light of Myanmar disse que grevistas sabotaram barcos no porto de Mandalay e atacaram a polícia com paus, facas e catapultas, deixando oito policiais e vários soldados feridos.
“Alguns dos manifestantes agressivos também ficaram feridos devido às medidas de segurança conduzidas pela força de segurança de acordo com a lei”, disse o jornal, sem mencionar nenhum dos três manifestantes mortos.
Durante um anúncio na emissora MRTV, também ligada aos militares, as autoridades disseram que, ao planejarem outro grande protesto para esta segunda-feira (22), os manifestantes estavam incitando a anarquia e empurrando os jovens por um caminho de confronto “em que eles sofrerão perda de vidas”.
Mianmar tem um violento histórico de reações a protestos. Na revolta de 1988, mais de 3.000 manifestantes foram mortos pelas forças de segurança do país durante atos contra o regime militar –o país viveu sob uma ditadura de 1962 a 2011.
O Exército vem tentando usar supostas acusações de fraude no pleito como justificativa para a tomada de poder. Os militares também acrescentaram à narrativa o argumento de que a comissão eleitoral do país usou a pandemia de coronavírus como pretexto para impedir a realização de uma campanha justa. Dizem ainda que agiram de acordo com a Constituição e que a maior parte da população apoia sua conduta, acusando manifestantes de incitarem a violência.
O general Hlaing decretou em 1º de fevereiro um estado de emergência que deve durar um ano. “Colocaremos em operação uma verdadeira democracia multipartidária”, declarou o novo regime, acrescentando que o poder será transferido após “a realização de eleições gerais livres e justas”. A promessa, apesar de reiterada, é encarada com ceticismo pelos mianmarenses opositores e por observadores internacionais.
A LND, partido de Suu Kyi que comanda o país desde 2015, obteve 83% dos votos e conquistou 396 dos 476 assentos no Parlamento nas últimas eleições em Mianmar, realizadas em novembro do ano passado. A legenda, entretanto, foi impedida de assumir quando o golpe foi aplicado no dia da posse da nova legislatura. O Partido da União Solidária e Desenvolvimento, apoiado pelos militares, obteve apenas 33 cadeiras.
CRONOLOGIA DA HISTÓRIA POLÍTICA DE MIANMAR
1948: Ex-colônia britânica, Mianmar se torna um país independente
1962: General Ne Win abole a Constituição de 1947 e instaura um regime militar
1974: Começa a vigorar a primeira Constituição pós-independência 1
1988: Repressão violenta a protestos contra o regime militar gera críticas internacionais
1990: Liga Nacional pela Democracia (LND), de oposição ao regime, vence primeira eleição multipartidária em 30 anos e é impedida de assumir o poder
1991: Aung San Suu Kyi, da LND, ganha o Nobel da Paz
1997: EUA e UE impõe sanções contra Mianmar por violações de direitos humanos e desrespeito aos resultados das eleições
2008: Assembleia aprova nova Constituição
2011: Thein Sein, general reformado, é eleito presidente e o regime militar é dissolvido
2015: LND conquista maioria nas duas Casas do Parlamento
2016: Htin Kyaw é eleito o primeiro presidente civil desde o golpe de 1962 e Suu Kyi assume como Conselheira de Estado, cargo equivalente ao de primeiro-ministro
2018: Kyaw renuncia e Win Myint assume a Presidência
2020: Em eleições parlamentares, LND recebe 83% dos votos e derrota partido pró-militar
2021: Militares alegam fraude no pleito, prendem lideranças da LND, e assumem o poder com novo golpe de Estado