Judiciário
STF: pena de importação de medicamento sem registro deve ser de 1 a 3 anos
Colegiado entendeu que pena de 10 a 15 anos definida por lei de 1998 é desproporcional
O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que a pena de 10 a 15 anos de prisão, prevista pela Lei n° 9.677/1998, para quem importar medicamentos sem registro sanitário é desproporcional e, portanto, incompatível com a Constituição. A Corte entendeu que, no lugar, devem ser aplicadas as sanções previstas na redação original do Código Penal, ou seja, de 1 a 3 anos. O julgamento teve início na semana passada e foi concluído nesta quarta-feira (24/3).
A tese definida foi a seguinte: “É inconstitucional a aplicação do preceito secundário do art. 273, do Código Penal, com a redação dada pela Lei 9.677/98 (reclusão de 10 a 15 anos), na hipótese prevista no seu § 1º, B, inciso I, que versa sobre importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária. Para essa situação específica, fica repristinado o preceito secundário do art. 273, na redação originária (reclusão de 1 a 3 anos, multa)”.
Pela inconstitucionalidade da lei, votaram os ministros Luis Roberto Barroso, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Ficaram vencidos os ministros Luiz Edson Fachin, Marco Aurélio e Luiz Fux, que entenderam que o trecho em discussão era constitucional.
Na tese, no entanto, Fux aderiu à maioria e ficaram vencidos os ministros Fachin, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, para quem a tese não deveria ser aplicada nos casos de grande potencial ofensivo.
Os ministros debateram longamente qual solução poderia ser dada ao caso, já que a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo que definia a pena deixaria um vácuo no Código Penal neste ponto e não cabe ao Supremo definir pena.
O leading case provém do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), do Rio Grande do Sul. O acórdão da segunda instância beneficiou o réu, em parte, ao considerar inconstitucional a “elevada pena-base” mínima de 10 anos de reclusão (art. 273, parágrafo 1º, inciso I do CP) prevista para “delito de perigo abstrato”. E aplicou a pena de 3 anos e 9 meses de reclusão mais multa, tendo como parâmetro as punições previstas na chamada Le de Drogas (Lei 11.343/2006), especificamente para tráfico de entorpecentes.
No STF, os ministros concordaram que a previsão era desproporcional, especialmente comparando-a com a de outros delitos do Código Penal, mas discutiram se a pena deveria ser a da redação anterior da lei ou se deveria ser aplicado um dispositivo análogo, como o da Lei de Drogas como fez o TRF4.
O relator do recurso extraordinário (RE) 979.962, que teve repercussão geral reconhecida por unanimidade pelo Plenário Virtual da Corte, é o ministro Luís Roberto Barroso. Apesar de a linha aberta pelo ministro Alexandre de Moraes ter sido a majoritária, Barroso reajustou o voto e manteve posição como o redator para o acórdão.
O relator afirmou que há dispositivos que vedam penas cruéis e a Constituição prevê a individualização da pena, o que significa que ela, a pena, deve levar em conta particularidades do caso e da pessoa envolvida, e não ser aplicada de forma genérica.
De acordo com Barroso, se a lei trata da mesma forma situações de reprovabilidade diversas, não há individualização da pena. “Portanto, temos problema de crueldade, de individualização e também de proporcionalidade. A pena de 10 a 15 anos pela importação de medicamento sem registro sanitário não passa no teste da crueldade, da individualização e da desproporcionalidade”, disse Barroso.
“O excesso aqui salta aos olhos. A pena mínima da comercialização de medicamentos sem registro é maior do que a prevista para estupro de vulnerável, extorsão mediante sequestro e a tortura seguida de morte. Não é difícil demonstrar a falta de proporcionalidade aqui”, apontou.
Barroso elencou as ponderações que devem ser feitas para a penalização de uma conduta de acordo com as previsões do Direito Penal brasileiro, como, por exemplo: a vida é mais importante do que o patrimônio; um crime de lesão é mais grave que o de perigo; e o crime doloso é mais grave que culposo.
Ao mencionar as possíveis soluções, o ministro disse que não aplicar qualquer sanção desconsidera a opção do legislador de tipificar o comportamento que considerou reprovável. A repristinação da pena prevista no art. 273 na redação anterior seria uma possibilidade, ou seja, retornar ao texto anterior, mas originalmente Barroso entendeu que a norma contemplava uma definição diferente e atenuada em relação à tratada no caso e não cobria a situação de importação de medicamento sem registro, apenas mencionava alterar medicamento.
“Eu considero como a melhor solução uma decisão substitutiva do preceito secundário, na linha do que já vêm fazendo outros tribunais. Não se trataria de analogia in bonam partem. Ela está sendo usada para afastar a incidência da pena mais gravosa, aplicando-se uma menos gravosa. É uma decisão substitutiva para quando a declaração de inconstitucionalidade deixa um vazio e produz um resultado igualmente negativo”, ponderou.
De acordo com ele, há um precedente relevante na Corte, de relatoria do ministro Marco Aurélio, que foi o caso que envolvia a Lei Maria da Penha. Na norma se previa que a ação penal em caso de violência doméstica seria condicionada, mas, posteriormente, o STF substituiu esse entendimento pela previsão de que a ação penal seria incondicionada.
No caso em discussão na sessão desta quarta-feira, o TRF4 havia aplicado a previsão da Lei de Drogas, mas Barroso não considerou adequada a compreensão. “Embora essa analogia produza quantitativos de pena mais razoáveis, ainda assim não acho que seja a melhor analogia, não apenas pelo estigma do tráfico de drogas, mas pelo fato de que a legislação de drogas presume o potencial nocivo da substância traficada, ao passo que isso não está presente na situação, que pode se verificar pelo simples fato de viajar e trazer um remédio, por exemplo”, disse o ministro.
Assim, ele defendeu que a pena mais adequada ao caso seria a prevista para o crime de contrabando (artigo 334-A do Código Penal), que consiste na importação, exportação ou negociação em geral de mercadorias proibidas (2 a 5 anos de prisão), configurando, dessa forma, a norma geral.
O ministro Alexandre de Moraes abriu a divergência vencedora. Ele concordou que a norma analisada não é proporcional, mas discordou da conclusão do relator. Da mesma forma que Barroso, comparou a pena da norma em discussão com a de outros crimes para ressaltar a discrepância. Para homicídio, por exemplo, a pena é de 6 a 20 anos; roubo, 7 a 18 anos; estupro, 8 a 12 anos; estupro de vulnerável, 8 a 15 anos.
“Para o crime de epidemia, um crime contra a saúde coletiva, a previsão é de 10 a 15 anos. Um crime de espalhar uma doença estaria com a mesma pena. Ou seja, é totalmente desproporcional. Não tenho nenhuma dúvida de que houve desrespeito à proporcionalidade. E não há, a meu ver, a mínima possibilidade de manter a norma no ordenamento jurídico, devendo-se declarar inconstitucional.”
Moraes entendeu que o ideal seria o retorno ao preceito secundário anterior. O ministro ressaltou que o artigo 5, inciso 39, da Constituição, que “prevê uma das mais tradicionais garantias do sistema jurídico penal não só do Brasil, mas do mundo”, define que não há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal.
“O legislador constituinte tomou o cuidado de estabelecer a necessidade de estabelecer anterior cominação legal tanto ao preceito primário quanto ao secundário. É, ao meu ver, garantia extremamente importante para que saibamos a quais sanções estamos sujeitos. Ambos os princípios são essenciais ao estado de direito porque acabam assegurando uma regulamentação da amplitude do exercício sancionador do Estado”, disse
Assim, ele defendeu que, “por mais que possa parecer razoável a aplicação de outro tipo penal, pode gerar insegurança jurídica enorme”. Como a maioria dos ministros seguiu a proposta de Moraes, a pena do crime de importação de medicamentos sem registro passou a ser de 1 a 3 anos de prisão.