Judiciário
Desde a posse no STF, Nunes Marques não concedeu nenhum HC impetrado pela DPU
Ministro havia afirmado, na sabatina no Senado, ter perfil garantista. Na 2ª Turma, Fachin foi quem mais concedeu HCs
Desde que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Nunes Marques, tido por garantista à época da posse, não concedeu nenhum habeas corpus ou recurso em HC impetrados pela Defensoria Pública da União (DPU). Ele negou 35 pedidos, de acordo com levantamento feito até o fim de fevereiro entre decisões monocráticas de mérito proferidas pelos ministros da 2ª Turma da Corte.
No geral, os ministros mais denegam que concedem HCs oriundos da DPU. Entre agosto de 2020 e janeiro de 2021, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes negou 36 pedidos e acolheu seis. Lewandowski também tem um número alto de negativas aos pedidos da DPU: 30 — e foram apenas três concessões. Ambos são tidos como garantistas.
Já neste ano, no mês passado, Lewandowski também negou todos os pedidos que chegaram até ele: 8 no total. Nunes Marques, por sua vez, analisou 26 e todos foram recusados. Já o ministro Luiz Edson Fachin, tido como mais duro justamente pelas posições que defende em casos como os da Lava Jato, concedeu cinco HCs, mais que os colegas em fevereiro.
Na observação do período de agosto de 2020 a fevereiro deste ano, Fachin também é o ministro que mais concedeu habeas corpus: foram 18. Gilmar Mendes concedeu 9; Cármen Lúcia, 5; Lewandowski, 3; Celso de Mello, que se aposentou em outubro, 1; e Nunes Marques, 0. As negativas têm números maiores: Cármen Lúcia, 48; Fachin, 45; Gilmar, 37; Lewandowski, 38; Celso de Mello, 17 e Marques, 35.
Nunes Marques explicou que boa parte das negativas se deu por uma questão processual: os pedidos esbararram na Súmula 691 da Corte. Ou seja, os processos não devem ser conhecidos pelo STF sem que haja um acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). “As decisões de não conhecimento, assim, acompanham a orientação jurisprudencial desta Suprema Corte, pois, em geral, as peças provinham de decisões monocráticas de Ministro do STJ”, diz o ministro.
O HC 195.180, por exemplo, é um dos casos. De acordo com ele, o pedido aponta contra decisão da 6ª Turma do STJ, mas se dá contra, na verdade, monocrática de ministro daquela Corte. Além disso, na decisão, ele disse não vislumbrar “a presença de ilegalidade evidente apta a autorizar a superação desse consagrado entendimento jurisprudencial”.
Em outra situação, no RHC 194.169, um homem foi condenado em Florianópolis a seis meses de detenção em regime semiaberto por dirigir alcoolizado. Em nome dele, a Defensoria argumenta que o semiaberto é desproporcional e pede pelo regime aberto, já que o inicial a alguém condenado a seis meses deveria ser o aberto ou, em um mês, ele já teria direito a progressão de regime. A situação da Covid-19 nas prisões também é citada na defesa.
Marques entendeu que o fato de o réu ser reincidente justifica a manutenção da decisão das instâncias inferiores. “Observo que esta Suprema Corte consolidou sua jurisprudência no sentido de que a reincidência do réu é motivação suficiente para a fixação do regime semiaberto, ainda que a pena fixada seja inferior a quatro anos”, disse. O homem já tem condenação por furto.
Garantismo penal
O indicado por Bolsonaro para integrar a Corte também disse explicitamente ter um perfil garantista na sabatina no Senado. Ele enfatizou que “o garantismo deve ser exaltado”. Nunes foi sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal em 21 de outubro. Questionado sobre qual seria o conceito de garantismo para ele, explicou que “nada mais é do que aquele perfil de julgador que garante as prerrogativas e direitos estabelecidos na Constituição”.
O garantismo penal surgiu a partir dos estudos e reflexões do jurista italiano Luigi Ferrajoli, bastante citado no Supremo e na sessão em que Nunes Marques e Gilmar Mendes discutiram o tema, no julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro. A partir da adoção de 10 axiomas consagrados como garantias clássicas do cidadão, o italiano construiu a ideia de Direito Penal como um limitador ao poder punitivo, distanciando-se, portanto, do antigo entendimento segundo o qual o Direito Penal era a regulamentação do poder estatal. Ou seja, o foco muda do Estado para as garantias do cidadão.
De acordo com Marques, ele próprio tem, sim, esse perfil. “O garantismo deve ser exaltado, porque todos os brasileiros merecem o direito de defesa, todos os brasileiros, para chegar a uma condenação, devem passar por um devido processo legal. E isso é o perfil do garantismo”. Ele observou, ainda, diante da preocupação de alguns parlamentares, não haver conflito entre ser juiz garantista e ter “uma escorreita condução de feitos ou no combate à corrupção do Brasil”.
“Ao contrário, acho que chegaremos na construção muito mais justa e sem margem para nulidade no processo”, disse. Na última terça-feira, Nunes Marques teve o primeiro embate no Supremo, com o ministro Gilmar Mendes. Sem bate boca ou discussão direta, os dois defenderam pontos de vista diferentes sobre garantismo.
Garantismo e Moro
Na sessão da 2ª Turma em que ele foi o único a votar contra a suspeição do ex-juiz federal Sergio Moro na condução do caso tríplex, contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Marques recorreu ao garantismo para argumentar que Moro não teve direito ao contraditório no caso. “Todo magistrado tem a obrigação de ser garantista”, disse também ao questionar a origem das mensagens obtidas por hackers e que mostram conversas entre Moro e procuradores da extinta força-tarefa.
“Como é sabido, a Carta de 1988, notadamente no art. 5°, abraça uma concepção garantista e enumera princípios normas e valores. Entre eles está a proibição do uso de provas ilícitas”, disse, acrescentando que “não há mais espaço para elucubrações fantasiosas sobre juízes lava jatistas e garantistas.”
Marques argumentou que, não fosse um caso que envolvia Lula, o resultado seria outro. “Se estivéssemos discutindo processo de um Francisco, Miguel, não estaríamos discutindo o desentranhamento dessas provas. Por ser o HC da Lava Jato autorizaria uma suspeição, mudança de entendimento? Todos os brasileiros merecem julgamento justo”, enfatizou.
“Não podemos errar como se supõe que errou juiz Sergio Moro, os membros do MP. Seria uma grande ironia e o prenúncio de um looping infinito de ilegalidades aceitarmos provas ilícitas para combater um crime praticado para apurar outro crime. Dois erros não fazem um acerto”, seguiu, citando Gilmar Mendes.
O ministro retomou a palavra e, irritado, disse que o que se deu na Lava Jato não tem a ver com garantismo, “é indecência”. Ao criticar a posição do colega, retomou condutas que entendeu ilegais de Moro e afirmou: “A combinação de ações entre Ministério Público e juiz encontra guarida em algum texto da Constituição? Pode-se fazer essa combinação? Isso não tem a ver com garantismo nem aqui nem no Piauí, ministro Kássio”, em referência ao estado de origem dele. “De fato, e quem já estudou alguma coisa de HC, sabe que ele tem uma estrutura processual muito peculiar, e por isso está aí até hoje”, disse, também, sobre a amplitude do instrumento.
Até então, Marques parecia acompanhar o ministro Gilmar Mendes nos temas penais julgados nas sessões por videoconferência e confirmar o perfil. Ele votou com o colega contra a Lava Jato na 2ª Turma, por exemplo, no julgamento que reverteu o recebimento da denúncia contra o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), no caso do Quadrilhão do PP. O voto dele redefiniu o caso, já que, anteriormente, Celso de Mello havia aceitado a denúncia.
O primeiro voto de Nunes Marques como ministro do STF foi em um caso criminal: pela soltura do promotor aposentado Flávio Bonazza de Assis, do Rio de Janeiro, e pela mudança de competência do caso, retirando-o das mãos do juiz Marcelo Bretas, responsável por julgar os casos da Lava Jato no estado. Nunes Marques acompanhou o relator, ministro Gilmar Mendes. A posição também foi endossada pelo ministro Ricardo Lewandowski.
Adélio Bispo
Um dos casos que caiu no gabinete do ministro foi o de Adélio Bispo de Oliveira, que deu uma facada no então candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro durante a campanha de 2018. Neste caso, Marques também entendeu como inadmissível o HC.
“Não se desconhece a chamada doutrina brasileira do habeas corpus, tendo como grande expoente o jurisconsulto Ruy Barbosa, cujas lições demonstravam o cabimento desse remédio constitucional para salvaguardar outros direitos que não somente a liberdade de locomoção, ainda que de natureza cível ou administrativa”, disse. Mas, o ministro ressalta que, desde 1926, o cabimento do HC ficou restrito às hipóteses em que o “indivíduo sofra lesão ou ameaça de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção”.
Adélio Bispo foi considerado inimputável em 27 de maio de 2019 pela Justiça Federal em Juiz de Fora (MG). A decisão foi proferida a partir de uma ação para comprovação de insanidade mental protocolada pela defesa do acusado. Dessa forma, na falta de um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico em Minas Gerais, ele está na Penitenciária Federal de Campo Grande. A defesa quer que ele seja transferido de volta para o estado dele, mas este não teria vaga.
“É que não se pode conhecer de habeas corpus, quando a pretensão veiculada nesta via estreita for impugnar decisão proferida no âmbito de conflito de competência, eis que a fixação da competência, por si só, não tem potencial para restringir diretamente a liberdade de locomoção física do paciente”, explicou o ministro ao negar o pleito. Ele também ressaltou que o hospital mineiro tem uma fila de espera por vaga de 427 pessoas e que o acórdão do STJ enfatiza a “alta periculosidade” de Adélio, o que mantém a necessidade de mantê-lo em estabelecimento federal.
Estudo e prisão
Houve, ainda, um caso em que, monocraticamente, o ministro negou um pedido semelhante ao que, na sessão da última terça-feira (30/3), votou de forma diversa, acompanhando os colegas na concessão da ordem. No HC 194.707, um homem do Paraná pede, representado pela DPU, a remição da pena pelo estudo. Ele argumenta que foi aprovado no Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens e Adultos (Encceja) e requer a remição de 133 dias de pena. O ministro, em 14 de dezembro, negou a revisão.
Nesta terça-feira, a 2ª turma do STF concedeu ordem em HC para que a remição de pena de uma mulher, aprovada no Encceja, seja de 177 dias e não 88 dias como definida pelo juízo da execução. Ao enfatizar a importância do estudo aos apenados, o colegiado enviará proposta ao CNJ sobre a elaboração de comissão para prestação positiva do Estado na formação dos presos.
Nunes Marques acompanhou Lewandowski. Ele registrou que se deve valorizar o apenado que usa o tempo que tem para estudar, produzir e aprender em meio a um cenário carcerário caótico. A decisão foi unânime.
Questionado sobre a diferença de postura, o ministro respondeu: “Houve uma virada jurisprudencial do STF, em decisão unânime de ministros. O acolhimento da tese dos novos critérios de contagem para fins de remição marca uma nova orientação. A partir dela, haverá uma natural reapreciação dos casos concretos, que eventualmente sejam devolvidos como recurso ao conhecimento do Colegiado.”