Internacional
Alemanha concede Ordem do Mérito a sobrevivente de Auschwitz
Zilli Schmidt é “lutadora incansável contra o ódio, segregação e extremismo de direita”, afirma presidente alemão. Ela sobreviveu ao genocídio dos sinti e roma pelos nazistas e hoje conta sua história aos jovens
A sobrevivente do Holocausto Zilli Schmidt recebeu a Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha, a máxima expressão de reconhecimento concedida pelo país, comunicou nesta quarta-feira (07/04) a Presidência da República em Berlim.
“Por seu intermédio sabemos hoje mais sobre o sofrimento dos sinti e roma e também muito mais sobre a sua vida, música e sua cultura”, escreveu o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, na carta em que concede a Ordem do Mérito a Zilli Schmidt.
“Mesmo hoje – aos 96 anos! – a vivenciamos como uma lutadora incansável contra o ódio, a segregação e o extremismo de direita”, declarou o chefe de Estado.
Por causa da pandemia de covid-19, a cerimônia de entrega da honraria foi suspensa e ocorrerá em outro momento.
“Nenhum deles ainda vivia”
Zilli Schmidt lançou em setembro um livro de memórias, em que relembra os dias felizes da infância e, depois, a prisão, a fome, os assassinato, também de crianças, e, por fim, o extermínio nazista.
À DW, Zilli conta qual é a missão que deu a si mesma: dizer o que os nazistas fizeram com os sinti. “Todos morreram nas câmaras de gás, toda a minha família, toda a minha gente.” Depois da guerra, o que se ouvia era: “Os judeus foram mortos. Mas, e os sinti, eles ainda vivem?” Ela faz uma pausa: “Nenhum deles ainda vivia.”
Em 2 de agosto de 2018, ela falou pela primeira vez publicamente sobre a sua vida, durante uma cerimônia em memória aos sinti e roma assassinados na Europa, no memorial em Berlim. “Eu falei em nome da minha gente”, afirma. Ela disse ter se alegrado por muitas pessoas jovens estarem presentes. “A juventude não foi esclarecida, eles não aprenderam isso na escola.”
Ela diz que não é fácil relembrar o que aconteceu. “Eu tinha uma filha comigo – não, não.” As lembranças a assombram. “Quando sonho, estou de novo em Auschwitz.” Ela diz que, à noite, caminha pela casa, chora e já há muitos anos precisa tomar antidepressivos.
Família assassinada em Auschwitz
A filha dela, Gretel, “minha querida menina”, teria hoje 80 anos. No campo de concentração, a pequena questionava a mãe sobre a fumaça que saía das chaminés. “Mamãe, estão de novo queimando pessoas?” Zilli conta que negava: “Não, apenas estão fazendo pão.”
Gretel foi morta quando tinha 4 anos e 3 meses: em 2 de agosto de 1944, nas câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau, assim como os pais de Zilli, a irmã Guki e os seis filhos dela, quando a SS (organização paramilitar do regime nazista) acabou com o chamado “campo de famílias ciganas”.
Apenas naquela noite, a SS assassinou cerca de 4.300 pessoas, desesperadas e aos gritos, em um dia fatal no genocídio do povo sinti e roma, conhecido como Porajmos.
Assim como outros detentos que podiam trabalhar, Zilli, então com 20 anos, foi levada embora antes do extermínio. O pai queria salvar Gretel e a manteve consigo. No momento de ser levada embora, Zilli correu do trem para onde estava sua família, mas o médico da SS, Josef Mengele, lhe deu um tapa no rosto e a obrigou a retornar ao vagão. “Ele salvou a minha vida, mas não me fez nenhum favor.”
No campo de concentração de Ravensbrück, para onde foi transportada, ela ficou sabendo o que acontecera com a sua família. Em desespero, caiu no chão e chorou.
“Uma família feliz”
Zilli Schmidt nasceu em 1924, com o nome de Cäcilie Reichmann, na Turíngia, numa família de artistas ambulantes que entretinha o público com cinema e música. “Éramos uma família feliz”, ela relata no seu livro. O trailer com que a família se deslocava nos verões havia sido construído pelo pai. O irmão tocava violino, e a mãe a as irmãs vendiam rendas de porta em porta.
Os caçulas, Zilli e o irmão Hesso, frequentavam a escola na estrada. No inverno, eles ficavam meses na mesma escola, na Turíngia ou na Baviera. Os professores os colocavam nas últimas fileiras. Às vezes eram alvos de gozações dos colegas. “Ciganos, ciganos”, lembra Zilli, hoje, mais de 90 anos depois. Ela diz que se defendia de agressões com o seu estojo escolar.
Quando os nazistas chegaram ao poder, em 1993, o pai disse que não estava preocupado. “Só vão levar embora os criminosos”, explicou. Ele se sentia seguro, pois não havia cometido nenhum crime. Em 1939, quando a Segunda Guerra Mundial começou, um irmão de Zilli, Stifto, servia na Wehrmacht (Forças Armadas do regime nazista). Ele esteve na Rússia e na França. “Éramos parentes de um soldado da Wehrmacht.”
Mas isso tudo não interessava ao Estado nazista, que perseguiu as minorias e levou adiante uma política racista de segregação e extermínio. Quando parentes já haviam sido detidos e enviados para o campo de concentração de Buchenwald, a família Reichmann atravessou a Alemanha para tentar fugir para a França. Tudo em vão. Zilli foi detida em Estrasburgo, ao lado de sua prima. O crime anotado pela polícia: “Ciganas.”
“Deus me ajudou”
Zilli Reichmann passou por várias prisões até chegar ao campo de Lety, na atual República Tcheca. De lá ela conseguiu fugir, mas foi de novo detida.
Em março de 1943, um detento de Auschwitz tatuou o número Z1959 no braço dela. Ela foi a primeira da família Reichmann a ser colocada no “campo de famílias ciganas”. Lá enfrentou a fome, a sede, as doenças, a violência e testemunhou a morte. O nome dela esteve duas vezes na lista para as câmaras de gás.
Uma vigia chegou a atirar nela, mas errou por pouco. Junto com a prima Tilla ela conseguiu fugir de um campo secundário e sobreviveu à guerra. “Deus me ajudou. Eu, sozinha, não teria conseguido”, conta. Ela é uma das últimas testemunhas vivas do extermínio dos sinti e roma pelos nazistas.
“Eu não esqueço e vou contar a minha história até fechar os meus olhos e me encontrar com Deus.”