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Judiciário

Abordagem restaurativa na execução das medidas socioeducativas

1. INTRODUÇÃO

As relações sociais contemporâneas sofrem profundas mudanças. Nas exigências coletivizadas e difusas configura como característica básica a transindividualidade dos anseios e das pretensões, tanto sociais quanto jurídicas. Essas novas nuances da sociedade pós-moderna, inseridas em um contexto de instituições públicas tradicionais e burocráticas, desafiam sobremaneira a criação de estratégias de reorganização, tanto estruturais quanto nos conteúdos de suas respostas, a fim de que sejam oferecidos novos mecanismos de aperfeiçoamento da jurisdição, que respondam adequadamente às novas exigências impostas pela sociedade. O nível de complexidade que assumem as relações sociais transforma e fragiliza o desempenho das atribuições estatais, determinando um quadro de crise.

Alguns dos aspectos dessa crise podem ser compreendidos como a crescente distância entre a legislação e a realidade social, a dificuldade de efetivação e concretização dos direitos fundamentais por meio das decisões judiciais, e a promoção do direito ao acesso à justiça para além do aspecto formal perante os órgãos judiciários, fundamentalmente o acesso a uma ordem jurídica justa. Portanto, surge a necessidade de interpenetração entre as esferas pública e privada, pois essa é uma das características importantes do direito de solidariedade, caracterizado essencialmente por seu caráter transindividual, refletindo, dessa maneira, na necessidade de novas práticas administrativas, jurisdicionais, legislativas e políticas.

Para o tratamento adequado dos conflitos que exsurgem no seio da sociedade atual, a justiça restaurativa se destaca como forma adequada de tratamento e mecanismo consensual de solução de conflitos, emergindo como instrumento de concretização do acesso à justiça, entendido este como a solução de conflitos de forma justa para todas as partes envolvidas.

Trata-se de modelo de justiça inspirado em práticas tribais, dentre as quais citam-se as das comunidades Maori, da Nova Zelândia, as quais foram incorporadas como instrumentos do processo judicial, com prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses individuais; bem como o modelo neozelandês, consistente nas conferências familiares, com participação do jovem infrator, sua família, da vítima e sua família. Em igual medida, as comunidades indígenas do Canadá adotam os círculos restaurativos, com participação da comunidade e das pessoas envolvidas no conflito.

A mediação vítima-infrator é o modelo mais usual nas práticas da justiça restaurativa, envolvendo a participação de um mediador na resolução dos conflitos. Esses são os três modelos restaurativos mais difundidos e adotados pelos sistemas jurídicos internacionais.

Nas sociedades indígenas, de onde surgiu a ideia da justiça restaurativa, em lugar de isolar e punir o infrator, a meta da justiça era atingir o consenso, envolvendo família e comunidade na busca de harmonia e reconciliação, promovendo acordo entre as partes.

O conceito de justiça restaurativa surgiu no final dos anos 60 e início dos anos 70, com o questionamento dos resultados alcançados pela justiça retributiva. Howard Zehr, professor de sociologia jurídica e referência no campo de práticas restaurativas, afirma que o sistema penal considera a culpabilidade do infrator, não tendo a vítima a possibilidade de se expressar, uma vez que o crime é cometido contra o Estado. Desta forma, a justiça restaurativa surge como forma de tratar os conflitos, fundada na responsabilidade do autor, concentrando-se nos prejuízos causados à vítima e na reconstrução das relações, em sentido contrário ao da justiça retributiva.

A interpretação pela Suprema Corte Canadense do artigo 718.2 do Código Criminal (casos Gladue v. the Queen Proulx v. the Queen) é paradigmático sobre o assunto. Ao discutir o tema, a Suprema Corte Canadense trouxe a seguinte definição:

Justiça restaurativa diz respeito à restauração das partes que foram afetadas pela prática de uma ofensa. O crime, geralmente, afeta pelo menos três partes: a vítima, a comunidade e o ofensor. A abordagem da justiça restaurativa visa remediar os efeitos adversos do crime, de maneira a enfocar as necessidades de todas as partes envolvidas. Isto é realizado, em parte, através da reabilitação do ofensor, reparação em favor da vítima e da comunidade e promoção de um senso de responsabilidade no ofensor e reconhecimento do dano causado à vítima e à comunidade (caso Proulx v. the Queen) (CANADÁ, 2006).

Trata-se de modelo de justiça com olhar voltado para o futuro, observando as necessidades da vítima e do infrator no presente, com foco na restauração das relações sociais.

Portanto, ao se ter clara a importância da justiça restaurativa no tratamento não adversarial de resolução dos conflitos, propõe-se novas perguntas a serem feitas, como por exemplo: quem sofreu o dano? Quais são as necessidades da vítima? Quem tem a obrigação de consertar o dano causado à vítima? O que levou a autor a cometer a infração?

No Direito Penal brasileiro, de forma ainda tímida, são previstas algumas medidas que colocam a vítima como parte integrante do processo penal. Nesta esteira, são previstas a necessidade de fixação de valor para reparação dos danos já na sentença penal, bem como a necessidade de intimação das vítimas caso o réu seja solto.

O artigo 201 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.690/2008, impõe ao Judiciário a obrigação de manter a vítima informada acerca do andamento do processo e do resultado da ação penal. Os referidos dispositivos legais revelam a influência do modelo de justiça restaurativa discutido pela Organização das Nações Unidas no sistema processual penal brasileiro.

2. PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

O conceito de justiça restaurativa ainda se encontra em construção, mas considerando que se trata de modelo em que se tem como base a participação da vítima, do ofensor e da comunidade, revelam-se alguns princípios básicos para que se possa alcançar a compreensão do dano causado por parte do infrator e a superação do dano pela vítima. Extrai-se da Resolução nº 12/2002, do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, os seguintes princípios da Justiça Restaurativa:

1. princípio da voluntariedade: a participação nos círculos restaurativos deve se dar de forma voluntária, devendo o adolescente ser assistido pelos pais ou responsável legal. A adesão do adolescente deve ser feita de forma consciente, sem qualquer tipo de coerção, portanto, deve ser esclarecido todo o funcionamento do processo judicial e da abordagem restaurativa;

2. princípio da confidencialidade: a participação do adolescente não poderá ser usada como prova de admissão de sua culpa em eventual processo judicial, não implicando em confissão. As partes envolvidas no processo restaurativo devem guardar sigilo de todas as informações obtidas durante seu desenvolvimento;

3. princípio da consensualidade: os acordos deverão ser pactuados voluntariamente, devendo alcançar além da participação, a adesão ao regramento da prática restaurativa e a compreensão sobre o instituto;

4. princípio da celeridade: a rapidez do procedimento restaurativo não implica em sua curta duração, mas decorre da informalidade do procedimento e imediato encaminhamento dos casos aos facilitadores para resposta célere ao ato infracional;

5. princípio da urbanidade: as partes devem se respeitar mutuamente, tratando-se com respeito e civilidade durante todo o procedimento restaurativo;

6. princípio da adaptabilidade: a justiça restaurativa pode ser aplicada de diversas formas: círculos restaurativos, conferências, debates, diálogos, mediação e, em razão dessa diversidade de modelos restaurativos, deve-se buscar aquela que melhor se adéque ao caso posto para discussão por meio do procedimento restaurativo. Tem-se, assim, um estudo anterior para verificar qual a melhor abordagem restaurativa para as partes envolvidas, adaptando-se esta às necessidades da vítima e do infrator;

7. princípio da imparcialidade: todos devem ser tratados da mesma forma pelos profissionais que conduzem as práticas restaurativas. A vítima e o adolescente deverão ser considerados de forma igual, sem que se parta de uma ótica de superioridade da vítima e inferioridade do adolescente.

Na conferência internacional Acesso à justiça por meios alternativos de resolução de conflitos, ocorrida em Brasília no ano de 2005, elencaram-se em Carta elaborada dezoito princípios e valores dos procedimentos restaurativos, a saber:

1. plenas e precedentes informações sobre as práticas restaurativas e os procedimentos em que se envolverão os participantes;

2. autonomia e voluntariedade na participação em práticas restaurativas, em todas as suas fases;

3. respeito mútuo entre os participantes do encontro;

4. corresponsabilidade ativa dos participantes;

5. atenção às pessoas envolvidas no conflito com atendimento às suas necessidades e possibilidades;

6. envolvimento da comunidade, pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação;

7. interdisciplinariedade da intervenção;

8. atenção às diferenças e peculiaridades socioeconômicas e culturais entre os participantes e a comunidade, com respeito à diversidade;

9. garantia irrestrita dos direitos humanos e do direito à dignidade dos participantes;

10. promoção de relações equânimes e não hierárquicas;

11. expressão participativa sob a égide do Estado Democrático de Direito;

12. facilitação feita por pessoas devidamente capacitadas em procedimentos restaurativos;

13. direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informações referentes ao processo restaurativo;

14. integração com a rede de políticas sociais em todos os níveis da federação;

15. desenvolvimento de políticas públicas integradas;

16. interação com o sistema de justiça, sem prejuízo do desenvolvimento de práticas com base comunitária;

17. promoção da transformação de padrões culturais e a inserção social das pessoas envolvidas;

18. monitoramento e avaliação contínua das práticas na perspectiva do interesse dos usuários.

Adotando-se a corrente maximalista, pode-se considerar como um dos princípios da justiça restaurativa a subsidiariedade, uma vez que a não utilização do processo restaurativo implica no encaminhamento do caso para o sistema de justiça criminal; no caso de adolescentes, para o sistema penal juvenil.

Esses princípios vêm ao encontro de alguns dos postulados fundamentais do Direito Penal, tais como o princípio da intervenção mínima, da proporcionalidade, da adequação social e razoabilidade, os quais também norteiam a justiça restaurativa.

3. MARCO LEGAL

O marco jurídico de referência na matéria é a Resolução nº 12/2002 do Conselho Social e Econômico da ONU, citada anteriormente, elaborada em face das discussões dos últimos anos sobre os temas de prevenção criminal, respeito às vítimas e a necessidade de desenvolver instrumentos e princípios para o uso da justiça restaurativa. A referida Resolução define as bases principiológicas para um programa de justiça restaurativa, aplicável em quaisquer dos sistemas jurídicos dos Estados membros.

A Resolução nº 12/2002 do Conselho Econômico e Social da ONU, ao dispor sobre os princípios básicos para utilização do referido modelo, conceitua:

A Justiça Restaurativa é um processo através do qual todas as partes envolvidas em um ato que causou ofensa reúnem-se para decidir coletivamente como lidar com as circunstâncias decorrentes desse ato e suas implicações para o futuro” (item 1. II da Resolução nº 12/2002).

Dado o enfoque da justiça restaurativa em bases diversas daquelas da justiça penal atual, duas correntes teóricas se destacam: aquela que defende a possibilidade de substituição do modelo vigente de justiça retributiva pelo modelo restaurativo (minimalista), e a que coloca a justiça restaurativa integrada ao sistema jurídico (maximalista).

No direito interno as práticas restaurativas se iniciaram a partir de três experiências distintas, com adoção da corrente maximalista, ou seja, partindo da integração da justiça restaurativa ao sistema de justiça, sendo duas delas focadas na resolução de conflitos envolvendo crianças e adolescentes: Juizados Especiais Criminais do Núcleo Bandeirante, nos crimes de menor potencial ofensivo; 3ª Vara da Infância de Porto Alegre/RS, na execução das medidas socioeducativas, bem como a Vara da Infância de São Caetano do Sul/SP, nos conflitos estabelecidos no âmbito escolar.

A partir destas experiências práticas se passa a discutir a justiça restaurativa como modelo a ser adotado para abordagem do ato infracional de forma diferenciada, colocando a vítima no centro da discussão da melhor solução para o conflito existente, a fim de restaurar as relações e pacificar as pessoas atingidas pela conduta do adolescente.

Leoberto Blancher e Beatriz Aguinsky, em Projeto para o século 21: relato da experiência de implementação da Justiça Restaurativa, em Porto Alegre, afirmam que:

[…] a justiça restaurativa ocupa-se das conseqüências e danos produzidos pela infração. Valoriza a autonomia dos sujeitos e o diálogo entre eles, criando espaços protegidos para a auto-expressão e o protagonismo de cada um dos envolvidos e interessados – transgressor, vítima, familiares, comunidades – na busca de alternativas de responsabilização. Partindo daí, fortalece e motiva as pessoas para a construção de estratégias para restaurar os laços de relacionamento e confiabilidade social rompidos pela infração. Enfatiza o reconhecimento e a reparação das conseqüências, humanizando e trazendo para o campo da afetividade relações atingidas pela infração, de forma a gerar maior coesão social na resolução do conflito e maior compromisso na responsabilização do infrator e no seu projeto de colocar em perspectiva social seus futuros modos de interagir.

4. JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

As práticas restaurativas, nos moldes referenciados pela ONU, têm sido utilizadas no Brasil em procedimentos que versam sobre crianças e adolescentes como forma de responsabilização, restauração e reintegração do adolescente em conflito com a lei. Em razão do sistema estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é possível adotar práticas restaurativas desde a etapa pré-processual, com a remissão ministerial até a prolação da sentença, com a possibilidade de aplicação da remissão judicial como forma de suspensão ou exclusão do processo e também por ocasião da execução das medidas socioeducativas.

Na etapa pré-processual têm sido desenvolvidos projetos no âmbito escolar, de forma a resolver os conflitos ocorridos nas unidades escolares, com a participação da família, da comunidade e das pessoas envolvidas no ato infracional: ofensor e vítima. Exemplo de projeto de mediação escolar é desenvolvido pelo Juiz de Direito Eduardo Rezende de Melo em São Caetano do Sul/SP, denominado Justiça e educação: parceria para a cidadania. No Rio Grande do Sul o Juiz de Direito Leoberto Brancher também desenvolve projeto neste sentido, desde 2005, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre.

Num momento posterior, no decorrer do processo de apuração do ato infracional, averiguada a necessidade de adoção das práticas restaurativas e alcançada a adesão das pessoas atingidas pelo ato infracional, pode ser aplicada a remissão judicial como forma de suspensão do processo, encaminhando-se as partes para os círculos restaurativos, observando-se a excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, com favorecimento dos meios de autocomposição de conflitos.

Diante da realidade brasileira, com a falência do sistema carcerário e do sistema socioeducativo, uma resposta célere ao ato infracional, que consegue compensar a vítima pelo abalo sofrido, responsabilizando o autor do ato infracional, atende aos anseios da comunidade e aos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente, com relação à proteção integral.

5. PRÁTICAS RESTAURATIVAS NA EXECUÇÃO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

O legislador brasileiro, ao regulamentar a execução das medidas socioeducativas – Lei nº 12.594/12 – estabeleceu dentre seus princípios a excepcionalidade da intervenção judicial, privilegiando os meios de autocomposição de conflitos e a prioridade das práticas ou medidas restaurativas, a fim de também atender às necessidades das vítimas.

Observa-se que a Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012, prevê expressamente a utilização da justiça restaurativa na abordagem do ato infracional, ao dispor sobre os princípios de execução das medidas socioeducativas:

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

I – legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto;

II – excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos;

III – prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas;

IV – proporcionalidade em relação à ofensa cometida;

V – brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);

VI – individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente;

VII – mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida;

VIII – não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e

IX – fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo.

Consoante se verifica do artigo supratranscrito, o legislador foi expresso ao estabelecer que as práticas restaurativas devem ser priorizadas na execução das medidas socioeducativas, impondo ao gestor dos programas de execução das medidas socioeducativas a inclusão em seus projetos pedagógicos do modelo de justiça restaurativa.

Neste aspecto cumpre estabelecer qual forma de aplicação da justiça restaurativa será adotada, posto que previstos como processos restaurativos a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária e círculos decisórios (Resolução nº 12/2002). No Canadá é utilizada a Mediação Vítima-Ofensor – MVO; nos EUA adota-se o Programa de Reconciliação Vítima-Ofensor – VORP; na Nova Zelândia, os diálogos, assim como na Austrália.

 Considerando o disposto na Lei nº 12.594/12, que trata da execução das medidas socioeducativas, o programa de reconciliação vítima-ofensor seria aplicável aos programas referentes às medidas socioeducativas em meio fechado, quais sejam, a semiliberdade e a internação, bem como aos programas de medidas em meio aberto. Não se pode olvidar que as práticas restaurativas pressupõem a participação voluntária, e os atores principais são a vítima, o infrator e pessoas da comunidade, com o processo decisório compartilhado com as pessoas envolvidas.

Num primeiro momento deve-se fazer a escuta dos envolvidos, sem julgamentos, e em seguida, após adesão e explicação do procedimento restaurativo, promover o diálogo entre vítima, adolescente, seus genitores e demais impactados pelo ato infracional.

Desta forma, necessário constar no Plano Individual de Atendimento do Adolescente a adoção da prática restaurativa, no modelo mais adequado ao caso, definido pelo programa de atendimento, caso seja aceita pelo adolescente e sua família, como uma das atividades de integração social do socioeducando.

O princípio da voluntariedade deve ser observado pela direção e equipe técnica do programa de atendimento, a fim de que não haja nenhum tipo de coerção ou obrigatoriedade de adesão do adolescente. A equipe técnica do programa de atendimento deve tão somente esclarecer aos envolvidos o modelo de justiça restaurativa e seu funcionamento, com os objetivos e consequências da adoção da prática restaurativa, sem qualquer tipo de imposição ou constrangimento pela não participação do adolescente, caso ele e seus familiares assim decidam.

Não se pode olvidar que, no momento da reavaliação da medida, a direção do programa de atendimento deverá constar no relatório a evolução do adolescente no cumprimento do plano individual, incluindo a prática restaurativa inserida no referido instrumento. No entanto, não parece razoável, diante do princípio da voluntariedade que norteia a justiça restaurativa, que a desistência do adolescente que cumpre a medida socioeducativa no tocante à participação nas práticas restaurativas, possa ser considerada como fator negativo no momento da reavaliação periódica da medida que lhe foi imposta.

Por outro prisma, a extinção da medida socioeducativa é possível, em sede de execução, quando demonstrado que atingiu seus objetivos, utilizando-se de prática restaurativa. Precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando ainda se discutia a justiça restaurativa apenas nos campos teórico e prático, sem que houvesse previsão expressa no ordenamento jurídico, esposa tal entendimento:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ECA. EXTINÇÃO DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA. APOIO DA FAMÍLIA E DA COMUNIDADE EM NOVO PROJETO DE VIDA. JUSTIÇA RESTAURATIVA. CONCORDÂNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM CONTRA-RAZÕES. CABIMENTO. Agravo provido para julgar extinta a medida socioeducativa em fase de execução. A mobilização da família e da comunidade demonstra que o adolescente receberá apoio neste novo projeto de vida. Concordância do Ministério Público. DERAM PROVIMENTO. (Agravo de Instrumento Nº 70017252008, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 14/12/2006).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que se refere aos resultados, na justiça restaurativa, a abordagem do ato infracional e suas consequências têm como foco as relações entre as partes, em compromisso conjunto para restaurar, buscando fundamentalmente a reparação do trauma moral e dos prejuízos emocionais, proporcionando a restauração e a inclusão e não somente a diminuição da reincidência, embora se trate de uma consequência da responsabilização do adolescente.

O socioeducando deve ser visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e consequências do ato infracional, com participação ativa e direta, devendo ser estimulado a interagir com a vítima e com a comunidade, criando a oportunidade de desculpar-se ao se sensibilizar com o trauma da vítima. O adolescente deve ser inteirado das consequências do fato para a vítima e comunidade, envolvendo-se de forma importante e significativa com o processo e criando compromisso de ações não infratoras.

Busca-se primordialmente estabelecer a cultura da paz e alcança-se, com a adoção das práticas restaurativas, o acesso à justiça, entendido como o acesso de toda e qualquer pessoa ao conhecimento de seus direitos e a possibilidade de exercê-los sem quaisquer obstáculos, sejam econômicos ou culturais, alcançando resultados justos para seus problemas.

Observa-se, portanto, que, no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente, a implantação do modelo de justiça restaurativa se revela pertinente, com o estabelecimento da cultura da paz.


7. REFERÊNCIAS

AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.

BRANCHER, Leoberto; AGUINSKY, Beatriz. Projeto para o século 21. Disponibilizado em <http://wwwjustiça21.org.br/projeto_portoalegre.pdf>. Acesso em 10/11/2013.

CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Fabris, 1988.

FICAGNA, Alba Valéria Oliveira e outros. Manual de métodos e técnicas de pesquisa. Passo Fundo: Méritos. 2008.

LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. 9. ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2006.

LUCAS, Doglas Cesar e SPENGLER, Fabiana Marion (orgs.). Justiça restaurativa e mediação. Ijuí: Unijuí, 2011.

ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. 10. ed. São Paulo: Atlas. 2009.

SMANIO, Gianpaolo Poggio. Interesses difusos e coletivos. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Cultura de paz: restauração e direitos. Recife: Universitária UFPE, 2010.

ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente e o ato infracional: garantias processuais e medidas sócio-educativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999.

_____. Compêndio de direito penal juvenil: adolescente e o ato infracional. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2006.

_____. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção integral. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003.

_____. Adolescentes privados de liberdade. 3. ed. Porto Alegre: Cortez, 2006.

VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. São Paulo: Método, 2008.

VEZZULLA, Juan Carlos. A mediação de conflitos com adolescentes autores de ato infracional. Florianópolis: Habitus, 2006

ZEHR, Howard. Justiça restaurativa. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.

_______ Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.

Autores

  • Tarsis Barreto Oliveira – Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.
  • Textos publicados pelo autor
  • Julianne Freire Marques – Juíza de Direito. Mestra em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT)/Escola Superior da Magistratura Tocantinense (ESMAT).
  • Textos publicados pela autora
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