Segurança Pública
Comissão divulga “Nem pense em me matar”, campanha nacional contra o feminicídio
Participantes da campanha reclamam da falta de orçamento para ações de igualdade de gênero e da ineficácia de grande parte dos projetos em análise na Casa sobre o feminicídio
Foi divulgada, em audiência pública na Comissão dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, a campanha “Nem Pense em Me Matar – Quem mata uma mulher mata a humanidade!”, promovida pelo Levante Feminista contra o Feminicídio. Lançada em março, a campanha já conta com mais de 100 mil assinaturas.
Segundo lista da Organização Mundial da Saúde, o Brasil ocupa o 5º lugar entre as nações que mais matam suas mulheres, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.
A deputada Erika Kokay (PT-DF), que pediu a realização da audiência, leu o manifesto e salientou que 648 mulheres foram assassinadas no Brasil por motivação relacionada ao gênero no primeiro semestre de 2020, a maioria mulheres negras. O número representa aumento de 2% em relação ao mesmo período de 2019.
O manifesto afirma que o governo atual retrocedeu nas políticas para as mulheres, reduzindo, por exemplo, o orçamento para ações de igualdade de gênero e executando menos de 50% do previsto para 2020.
“A cada cinco horas é assassinada uma mulher em crime de feminicídio no Brasil, e podemos falar que em uma chacina maior do que a chacina que aconteceu na favela de Jacarezinho [no Rio de Janeiro]”, comparou a filósofa e escritora Marcia Tiburi, um das idealizadoras da campanha.
“A nossa campanha visa a uma publicidade em relação à luta das mulheres contra o feminicídio, a luta das feministas contra o feminicídio, visamos também uma transformação da cultura da matança, da violência, do estupro, que ao fim também é uma cultura do feminicídio”, disse Tiburi.
Conforme a filósofa, que é ameaçada de morte e por isso vive fora do País, para retroceder no número de mulheres mortas, é preciso atacar o machismo estrutural. “Estamos submetidas a uma cultura de violência contra as mulheres, que é violência física, simbólica, institucional, política, íntima, sexual, que se organiza como uma cultura do assédio, do estupro”, explicou.
Projetos de lei
Erika Kokay chamou a atenção para a aprovação, pela Câmara, da proposta que institui a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher, como forma de levar o ensino sobre a Lei Maria da Penha às escolas (PL 598/19, do Senado). Segundo ela, a bancada feminina encontrou resistência para a aprovação do texto, que volta para análise dos senadores.
Myllena Calasans, do Consórcio Maria da Penha, destacou que mais de 40 projetos de lei tramitam no Congresso sobre o crime de feminicídio, com o objetivo aumentar a pena, recrudescer o cumprimento da pena ou tornar o crime de feminicio autônomo. Para o Levante Feminista, essas medidas não seriam necessárias, lembrando que a pena para o crime de feminicidio já foi aumentada em 2015.
“O que se precisa agora é que o Legislativo ative a sua função de ente fiscalizador e promotor das políticas públicas, ao garantir orçamento e fiscalizar a execução do orçamento, que é o que está faltando, principalmente pelo governo federal. Durante anos, a partir de 2003, o governo federal foi o grande indutor das políticas de enfrentamento”, disse.
Myllena Calasan lamentou a diminuição paulatina da proteção contras mulheres. “Já em 2018, quase 50% da rede de proteção existente as mulheres tinha se desmantelado, serviços já estavam fechados, foram casas-abrigo principalmente os Ceams, os Centro de Atendimento Especializado às Mulheres, delegacias foram fechadas”, enumerou.
Estereótipos de gênero
A ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat chamou atenção para o aumento na disponibilização de armas de fogo, a partir da publicação de uma série de decretos governamentais. Ela lembrou que a posse é a arma guardada dentro de casa, e que as vítimas preferenciais do armamento da população são as mulheres e crianças que estão dentro dos lares, principalmente numa situação de pandemia.
Crime de ódio
Já a doutora em Sociologia Ana Liési Thurler lembrou que, apenas em março de 2021, o Supremo Tribunal Federal decidiu que é inválido o argumento da legítima defesa da honra, utilizado pela defesa de autores de crimes de feminicídio. Segundo ela, o feminicidio não é crime passional, mas crime de ódio, e que a vítima nunca deve ser considerada a culpada pelo próprio assassinato.
Ela salientou que, em três décadas, entre 1980 e 2013, 106 mil mulheres foram assassinadas por sua condição de gênero, grande parte por maridos, ex-maridos, namorados e ex-namorados.
Conforme a socióloga, muitos homens consideram ofensivo as mulheres não quererem mais se relacionar com eles e muitas mulheres pedem medidas protetivas, mas o Estado não barra sua morte. Ela também ressaltou a desconstrução de políticas para as mulheres no atual governo, lembrando que, em junho de 2020, o governo produziu um novo Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio, sem participação da sociedade civil e do movimento feminista. “Nós queremos que seja utilizado o protocolo que nós reconhecemos legitimidade, que é de 2015. Pedimos insistentemente: nada sobre nós, sem nós”, afirmou.
Na Câmara, foram apresentadas algumas propostas para sustar o protocolo (como o PDL 308/20), que ainda não chegaram a ser analisadas.
Mulheres negras e indígenas
A representante do Consórcio Maria da Penha Myllena Calasans chamou atenção para outro feminicídio, além do íntimo: o político – ou seja, o assassinato de mulheres eleitas para cargos políticos, destacando que a maioria dessas mulheres são negras, periféricas e mulheres trans, a exemplo da vereadora Marielle Franco, assassinada há dois anos cujo crime continua sem solução.
“Entre 2008 e 2018, os homicídios de mulheres não negras caiu 11%, enquanto o homicídio de mulheres negras aumentou em 12,4%. Isso nos revela que a proteção e as políticas não foram capazes de chegar as mulheres negras, indígenas, trans e mulheres de periferia”, apontou Calasans.
Representante do Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia, Joaquina Lino frisou que as mulheres indígenas e da floresta são mortas por serem lideranças políticas e comunitárias, que defendem seus povos e sua cultura. De acordo com ela, a morte dessas mulheres é anunciada previamente por ameaças, e o Estado não coíbe a ação dos criminosos.
Sugestões
A deputada Rejane Dias (PT-PI) defendeu a aprovação de uma série de projetos de lei apresentados por ela que podem ajudar a combater a violência contra a mulher, como o PL 5554/20, que institui o cadastro nacional das pessoas condenadas por crime de violência doméstica e feminicídio; e o PL 4559/20, que obriga os condomínios de prédios residenciais a comunicar Polícia Civil ou à Polícia Militar quando houver a ocorrência ou indício de violência doméstica e familiar contra mulheres.
Dias defendeu ainda a aprovação do Projeto de Lei 2737/20, que obriga casas noturnas, bares e restaurantes a adotarem medidas para auxiliar mulheres que estejam em situação de risco nesses estabelecimentos.