Internacional
Síria: uma eleição de fachada e uma guerra quase esquecida
Votação de cartas marcadas vai manter Assad no poder. Ela serve como lembrete de um conflito que envolve vários atores externos e já foi decidido militarmente, mas para o qual não há solução política à vista
Com bonés de beisebol com a imagem do presidente da Síria, Bashar al-Assad, eleitores erguem pôsteres mostrando o rosto de seu candidato e gritam slogans como “Deus, Síria, Assad – nós daríamos qualquer coisa por você”. A maioria veio votar na embaixada síria em Beirute num ônibus da Associação de Trabalhadores da Síria, que é leal a Assad. Os vídeos, que podem ser vistos na internet, mostram cenas impressionantes.
Também no Egito e nos Emirados Árabes Unidos, entre outros países, os sírios foram chamados a votar para as eleições presidenciais na Síria nesta quarta-feira (26/05). É a segunda eleição presidencial desde o início da guerra, na qual centenas de milhares de pessoas foram mortas e milhões foram forçadas a deixar o país.
Eventuais oponentes sem chance
Assad, que na eleição presidencial de 2014 recebeu 88,7% dos votos, vai continuar no cargo, para um quarto mandato de sete anos, mesmo que, como na última eleição, ele tenha admitido formalmente outros candidatos: o ex-ministro de Estado para Assuntos Parlamentares, Abdullah Salloum Abdullah, e Mahmoud Ahmad Marei, chefe da Frente Nacional Democrática, um pequeno partido de oposição apoiado pelo Estado.
“Assad zomba das estruturas democráticas ao fingir que dois candidatos aprovados pelos serviços secretos são concorrentes reais. Eles não têm chance de vencer”, diz Mouna Ghanem, diretora do Fórum das Mulheres Sírias pela Paz.
Todo o processo eleitoral – da seleção dos candidatos à contagem dos votos – é controlado pelo regime. Com a votação, o regime tenta criar a imagem de de que tem legitimidade entre a população.
“Acima de tudo, no entanto, as eleições mostram que Assad continuará no cargo, apesar de toda a resistência contra ele nos últimos dez anos”, diz Guido Steinberg, especialista em Oriente Médio da fundação SWP, baseada em Berlim. Assad controla atualmente cerca de dois terços do território sírio – apenas a região de Idlib, o nordeste dominado pelos curdos e os protetorados turcos não estão sob seu regime.
Dependência da Rússia e do Irã
Ele conseguiu isso com a ajuda da Rússia e do Irã. Quando, em 2015, a derrota de Assad parecia iminente, o Irã enviou brigadas e milícias xiitas, e o governo de Moscou interveio com a Força Aérea, forças especiais e a polícia militar. Este apoio garantiu a vitória a Assad, ainda que a guerra não tivesse acabado.
“Como o conflito já foi decidido de forma militar, simplesmente não haverá solução política. Não há incentivo para negociar politicamente sobre algo”, explicou a especialista em Síria Kristin Helberg em um evento organizado pela associação alemã Querkultur.
E agora Assad precisa recompensar “quem o mantém no poder”, afirma Helberg. “Eles veem a Síria como uma espécie de butim que agora deve ser dividido”, complementa. A Rússia já garantiu contratos de recursos naturais como petróleo e gás, e acima de tudo fósforo.
Além disso, de acordo com Guido Steinberg, já se pode ver claramente um conflito entre o Irã e a Rússia sobre a influência no exército sírio, serviços secretos e milícias sírias. “Ou seja, a Síria já não é mais tão soberana.” Além do Irã e da Rússia, segundo ela, Assad também tem o apoio de empresários ricos, que se beneficiam de investimentos ou negócios no mercado ilegal.
“Hipoteca” pesada para Moscou
A Rússia investiu pesadamente na Síria, tanto política quanto militarmente. “O país é uma grande hipoteca para o presidente russo, Vladimir Putin”, comenta Helberg, que prossegue: uma coisa é certa – a Rússia não pode estabilizar o país sozinha.
Muitos consideram a situação de segurança volátil. O chamado “Estado Islâmico” nunca deixou o país – milhares de terroristas ainda estariam na clandestinidade na área da fronteira entre a Síria e o Iraque. A presença militar do Irã também é vista como uma grande ameaça – particularmente por parte de Israel.
Grande parte da infraestrutura do país está destruída. Nas áreas controladas pelo regime, cresce a miséria. As pessoas ficam horas na fila por pão. Longas filas se formam junto aos postos de gasolina porque o combustível se tornou um produto escasso. “A Rússia quer que o Ocidente chegue a um acordo com Assad – também para financiar a reconstrução, porque a Rússia não tem dinheiro para isso”, explica Helberg.
Aproximação de Estados árabes
A terrível situação humanitária dá força ao objetivo da Rússia. O Comitê Constitucional de Genebra, que foi criado em 2019, também tem como objetivo encorajar o Ocidente a “se unir para manter as aparências”, diz Helberg. Putin também oferece à Europa o envio de refugiados sírios de volta à Síria. Mas Assad não quer isso.
Não foi sem razão que Assad expropriou por decreto muitos deslocados internos e sírios que fugiram para o exterior. Cidadãos e combatentes leais ao regime ganharam suas propriedades. E também não é sem razão que os críticos do regime continuam desaparecendo.
Putin precisa de aliados para a Síria. E há indícios de que alguns países, principalmente da região, já têm interesse em normalizar a diplomacia com a Síria. O Egito está se esforçando para a Síria entrar para a Liga Árabe e, em 2018, os Emirados Árabes Unidos reabriram sua embaixada, mesmo que em um nível diplomático inferior.
É questionável se e quando a Arábia Saudita fará o mesmo. Esses Estados estão preocupados principalmente em aproximar a Síria do mundo árabe – longe da influência iraniana e turca, diz Julien Barnes-Dacey, diretor de programas para Oriente Médio e Norte da África no Centro Europeu de Relações Exteriores. No entanto, isso não significa que as realidades do país necessariamente mudarão. O retorno de Assad ao grande palco político – em Washington ou Paris, por exemplo – atualmente parece estar descartado.
Reconstrução incerta
A economia da Síria está arrasada, e a isso se somam as sanções dos Estados Unidos e da União Europeia. Por outro lado, tanto a Europa quanto os EUA financiam grande parte da ajuda humanitária à Síria.
“Suborganizações da ONU trabalham na Síria com organizações e pessoas que estão nas listas de sanções da Europa e dos EUA”, diz Helberg. Criou-se uma dependência, e Assad nem foi necessário para isso, acrescenta.
Muitas organizações de ajuda na Europa gostariam de apoiar o povo da Síria. A especialista alerta, porém, contra o manejo dessa ajuda por meio de organizações e pessoas próximas ao regime, pois isso significaria cooperação com o governo sírio.
“Isso consolida as estruturas que levaram a esse levante. Se a Europa quiser que mais sírios retornem, isso não acontecerá enquanto Assad governar dessa maneira. Simplesmente não é seguro para eles”, complementa.
Em vez disso, opina, sanções específicas devem ser mantidas e discutidas com a sociedade civil. “E a reconstrução não deve ser simplesmente apoiada incondicionalmente”, acredita Helberg.