Judiciário
Tributação de software e a jurisprudência do STF
Discutimos a ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei nº 7.098/98 do Estado de Mato Grosso, que incluiu na tributação pelo ICMS as operações com programa de computador (software), ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados
Essa velha questão volta à baila no bojo da ADI nº 1.945 de relatoria da Ministra Cármen Lúcia, cujo julgamento estava interrompido desde 19-4-1999.
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei nº 7.098/98 do Estado de Mato Grosso que incluiu na tributação pelo ICMS as operações com programa de computador – software -, ainda que realizadas por transferência eletrônica de dados.
Seis votos já foram proferidos afastando a incidência do ICMS e afirmando a competência impositiva pelo ISS com base no item 1.05 da lista anexa à LC nº 116/03 na redação dada pela LC nº 157/16. A sessão de julgamento do dia 11-11-2020 foi suspensa por pedido de vista do Min. Nunes Marques.
Ficou assentado, de longa data, que o software produzido em escala industrial para venda ao publico em geral (software off the shelf) é tributado exclusivamente pelo ICMS, ao passo que o software produzido por encomenda para uso pessoal do encomendante (customized software) é tributado apenas pelo ISS (RE nº 176.626, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 11-12-98). Todavia, essa matéria ainda está sendo discutida no RE nº 688.223, Rel. Min. Luiz Fux, onde foi reconhecida a existência de repercussão geral, conforme decisão publicada no DJe de 4-10-2012.
A clássica distinção entre o ICMS e o ISS, fundada na natureza da obrigação de direito civil, não é mais pacífica na doutrina, desde o advento do Acórdão proferido no RE nº 651.703, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 26-4-2017, que reinterpretando o preceito constitucional do art. 156, III da CF, desvinculou o campo de incidência do ISS das obrigações de fazer. Até então, o ICMS só poderia incidir sobre circulação de bens corpóreos expressando uma obrigação de dar, ao passo que o ISS só poderia incidir sobre circulação de bens imateriais, expressando uma obrigação de fazer.
No caso sob exame trata-se de definir o tributo incidente sobre o software off the shelf.
O STF, ao contrário do esperado – uniformização de tratamento dispensado ao software de prateleira e ao software encomendado – trilhou no sentido de manter a clássica distinção, exigindo-se como condição de incidência do ICMS a obrigação de dar, isto é, um suporte físico (CD-ROM, DVD etc.) que abrigue o programa de computador. De fato, quando a Corte Suprema indeferiu, por maioria de votos, o pedido de liminar para suspender os efeitos do inciso VI, do § 1º, do art. 2º da Lei nº 7.098/98 do Estado de Mato Grosso que incluiu no campo de incidência do ICMS as operações com programas de computador – software – ainda que realizadas por transferências eletrônicas, sinalizou claramente uma mudança de interpretação, desvinculando-se da idéia de circulação de bem tangível. Contudo, a esperada interpretação evolutiva não aconteceu neste caso específico.
A adaptação da jurisprudência da Corte à realidade exsurge nítida desde o julgamento da questão envolvendo as embalagens personalizadas que foram incluídas no campo de tributação pelo ICMS, porque na realidade atual elas constituem insumos indispensáveis para a circulação de mercadorias (ADI nº 4.389/DF-MC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 25-5-2011). Não se distinguiu, na época, a embalagem de remédio, de alimentos e de líquidos, indispensáveis à comercialização, das embalagens de supermercados em que elas não configuram como itens indispensáveis à comercialização. Acrescente-se que o conceito de mercadoria como um bem tangível é infirmado pela própria Constituição, que em seu art. 155, § 3º incluiu as operações com energia elétrica no campodo ICMS. Importante lembrar, ainda, que o STF equiparou o livro eletrônico (um bem intangível) ao livro físico para o efeito de reconhecimento da imunidade (RE nº 330.817, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 30-8-2017).
A dinâmica da realidade social tendo em vista a evolução da informática intensificou o e-commerce em razão, também, da pandemia, a impor uma interpretação evolutiva dos textos normativos.
O software de prateleira não precisa mais ser adquirido em lojas, sendo mais prático a sua aquisição pela Internet, por meio de download. O meio eleito para a comercialização de dados do programa não altera a sua substância que continua sendo uma mercadoria, a qual não mais está atrelada ao conceito de algo tateável ou palpável. Tanto na venda de CD-ROM ou DVD contendo o software, como na sua aquisição por meio da Internet, promovendo a transferência do programa para o computador do usuário configura autêntica operação de compra e venda. O que é relevante é o produto e não o corpus mechanicum onde se aloja o software.
Entretanto, nesse julgamento o STF filiou-se, por maioria de votos, à sua antiga jurisprudência que separava a obrigação de dar que enseja o ICMS, e a obrigação de fazer que fixa a tributação pelo ISS.
Infelizmente, a demora nos julgamentos do STF, bem como a falta de uniformização de critério interpretativo, ora procedendo a uma interpretação evolutiva, ora se apegando a uma interpretação involutiva, traz uma enorme insegurança jurídica. Só falta o STF julgar o RE nº 688.223, paralisado desde 4-10-2012, em sentido contrário ao que decidiu nesta ADI de nº 1.945.
NOTA
[1] Cf. nosso ISS doutrina e prática, 2. ed.. São Paulo: Atlas, 2014, p. 133.
Autor
- Kiyoshi HaradaJurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.