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Judiciário

A Legião Urbana e a proteção da propriedade intelectual no Brasil

Mais de 25 anos após a extinção da banda Legião Urbana, Judiciário se vê instado a decidir disputa

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) volta a discutir, no próximo dia 15, a famosa controvérsia jurídica estabelecida entre os ex-integrantes da banda Legião Urbana, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos, e a empresa Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. A disputa gira em torno da utilização da marca Legião Urbana, cujo registro é de titularidade da empresa, que era de propriedade de Renato Russo e hoje pertence ao seu herdeiro.

Os dois ex-integrantes da banda obtiveram uma sentença autorizando a utilização da marca perante a justiça estadual do Rio de Janeiro, sem que a titular pudesse oferecer qualquer tipo de resistência e sem a necessidade de pagamento de royalties. Após o ajuizamento de uma ação rescisória pela empresa, a questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça (REsp n. 1.860.630/RJ). Neste momento, existe um voto favorável à Legião Urbana Produções Artísticas Ltda., proferido pela ministra-relatora Maria Isabel Gallotti.

Inicialmente, é importante lembrarmos que a sistemática de proteção à propriedade intelectual, amplamente adotada nas democracias contemporâneas e consagrada no Texto Constitucional brasileiro, possui importantes fundamentos de interesse público e social. Trata-se de estimular, mediante a outorga de direitos de propriedade e personalidade específicos, a inovação e a difusão do conhecimento. Cuida-se, ainda, de conferir-se segurança jurídica para aqueles que, com seu trabalho, criação, talento e investimento, desenvolvem técnicas, marcas, invenções ou outros elementos imateriais.

Inovação é a palavra. E esse é um desafio particularmente brasileiro. Sem ela não há crescimento sustentável. O Brasil, que na última década andou de lado, quando não para trás, ocupa vergonhosas posições nos rankings mundiais de inovação, ficando atrás dos vizinhos latino-americanos e não fazendo frente a países de dimensão, economia e população semelhantes.

Em 2020, por exemplo, o país ficou em 62º lugar no Índice Global de Inovação divulgado pela Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI).

Entre as várias explicações para esse lamentável fenômeno (educação de baixa qualidade, produtividade econômica pífia, insegurança jurídica, lentidão regulatória e políticas públicas ineficientes), emerge uma que possui pertinência para este texto: a baixa adesão da sociedade brasileira às regras e ao conceito de propriedade intelectual. O país, infelizmente, ainda não aprendeu a conviver totalmente com uma sistemática de proteção à inovação que efetivamente premie os esforços despendidos por empreendedores, cientistas, músicos, autores e demais pessoas/entidades que, de uma forma ou de outra, tentam contribuir para o estabelecimento de um ambiente econômico, social, científico e cultural mais vibrante, inovador e competitivo.

É nesse aspecto que ganha relevância o caso Legião Urbana. O art. 129 da lei federal 9.279/1996 estabelece, clara e expressamente, que a propriedade de determinada marca se adquire pelo registro, assegurando-se ao seu titular o uso exclusivo em todo o território nacional. O art. 130, III, da referida lei viabiliza ao titular a possibilidade de zelar pela sua integridade material ou reputação.[1] Ou seja, o registro garante a titularidade e os direitos patrimoniais e morais referentes à marca. Trata-se de um sistema atributivo da propriedade, que ocorre mediante o registro, conforme o entendimento do próprio Superior Tribunal de Justiça.[2] Além disso, o registro em nome de mais um titular só passou a ser permitido a partir de agosto de 2019, nos termos da Resolução INPI/PR n. 245/2019.

O complexo normativo que trata da matéria não poderia ser mais claro. Dele emana um evidente conjunto de regras que conferem inafastável proteção ao titular da marca devidamente registrada, que terá direito exclusivo para a utilização no território nacional e poderá, se quiser, licenciar o uso, nos termos que entender pertinentes. É inegável a intenção do legislador de conferir proteção especial à propriedade intelectual, estimulando, com isso, a difusão do conhecimento, o talento, o empreendedorismo, a livre criação e a inovação em todas as áreas da sociedade brasileira. Vai-se ao encontro de uma tendência claramente presente nas modernas democracias e atende-se, ainda, ao anseio do próprio legislador constitucional.[3]

Em um ambiente de razoável segurança jurídica e de respeito e compreensão aos elevados propósitos da proteção à propriedade intelectual, essas previsões normativas seriam mais do que suficientes para espantar qualquer dúvida em torno da solução da controvérsia referente à marca Legião Urbana. Ela foi registrada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em 2000 em favor da Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. Cuida-se de um pedido de registro apresentado àquela autarquia federal em 1994. Não há discussão em torno do titular da marca. Nos termos do arts. 129 e 130, III, da lei federal n. 9.279/1996 e do art. 5º, XXIX, da Constituição Federal, o Estado brasileiro deve conferir integral proteção, nas dimensões moral e patrimonial, à titular do elemento marcário em questão.

As dúvidas em torno da controvérsia são um claro retrato das dificuldades ainda enfrentadas pela sociedade brasileira na consolidação de uma sistemática forte e efetiva de proteção à propriedade intelectual e de uma cultura de segurança jurídica. Mais de 25 anos após a extinção da banda Legião Urbana e mais de 20 anos após o registro da marca pelo INPI, o Poder Judiciário brasileiro vê-se instado a decidir a possibilidade de utilização da referida marca por terceiros que não a registraram.

Na verdade, a ilegitimidade jurídica dos pedidos deduzidos por Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos assenta-se em variados fundamentos. De um lado, os músicos procuram reduzir o raio de eficácia de um ato administrativo validamente realizado pelo INPI. Se o registro da marca confere ampla e irrestrita proteção em favor do titular, esses efeitos protetivos, de natureza moral e patrimonial, possuem um caráter erga omnes e abrangência nacional. Desse modo, o reconhecimento de que terceiros (ainda que tenham contribuído para o desenvolvimento do elemento marcário) podem eventualmente fazer uso da marca importa em uma mitigação dos efeitos do ato registral.

Essa limitação à eficácia do registro assume particular gravidade porquanto a exceção estaria se dando na perspectiva de dois artistas que, sabidamente, farão uso amplo e com claríssimo componente comercial da marca. Mais que isso: a utilização poderá trazer confusão para o público, pois dois ex-integrantes da banda Legião Urbana farão shows e eventos valendo-se da designação e cantando músicas do grupo. É justamente essa obscuridade, esse equívoco na percepção do consumidor, a insegurança e os ganhos patrimoniais indevidos por terceiros que o sistema de propriedade intelectual brasileiro procura evitar. Nada mais prejudicial à certeza, à previsibilidade e à criação de um ambiente propício à inovação, especialmente no setor artístico.

Aliás, a dimensão relevante e de caráter coletivo que assume a controvérsia determinaria a participação do INPI na demanda judicial. No presente caso, houve evidente situação de redução do alcance normativo dos arts. 129 e 130, III, da Lei de Propriedade Industrial e de mitigação dos efeitos de um ato de registro praticado pelo INPI. Portanto, a referida autarquia, nos termos do complexo normativo que rege a matéria, em nome do interesse público e na perspectiva do reconhecimento da transcendência e da repercussão geral dessa causa, deveria dela ter participado. E esse fenômeno processual necessariamente deslocaria a competência da ação para a Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal.

Ou seja, o ato decisório emanado da justiça estadual do Rio de Janeiro – no sentido da concessão do irrestrito uso da marca a terceiros alheios ao registro perante o INPI e que, na prática, reconheceu a cotitularidade da marca Legião Urbana – foi proferido por um juízo absolutamente incompetente. Observe-se, a tal propósito, a orientação do STJ, no sentido de que “não há previsão legal para autorizar a retirada de eficácia do ato administrativo de concessão de registro marcário sem a participação do INPI e sem o ajuizamento de prévia ação de nulidade na Justiça Federal” (REsp n. 1.189.022, Quarta Turma, Rel. Min. Luís Felipe Salomão).

O sistema constitucional e infraconstitucional de proteção da propriedade intelectual não confere suporte à pretensão deduzida pelos dois ex-integrantes da banda. O regime de tutela, nas dimensões patrimonial e moral, conferido às marcas devidamente registradas impede o uso pretendido pelos referidos artistas. A circunstância de que ambos os músicos alienaram, após o depósito da marca perante o INPI, as suas quotas na sociedade Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. torna o mencionado uso ainda mais ilegítimo do ponto de vista jurídico.

O próprio postulado da boa-fé objetiva, que protege a legítima expectativa das partes contratantes no cumprimento daquilo que foi ajustado, inscrito no art. 422 do Código Civil, recomenda o reforço da proteção à propriedade intelectual em causa. Ela resulta, ainda que indiretamente, de uma transação empresarial firmada entre as partes, de modo que os ex-integrantes da banda receberam o valor estipulado e renunciaram aos direitos societários em questão. Tudo isso ocorreu, vale destacar, há muitos anos, reforçando-se a necessidade de proteção da segurança jurídica e de estabilidade das relações sociais.

Ressalte-se, ainda, que o próprio Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de enfatizar, de forma a dirimir qualquer controvérsia em torno do tema, que “a proteção relativa à designação, por título genérico, de banda ou grupo musical, se subsume às regras da propriedade industrial, pois se trata de objeto suscetível de ampla possibilidade de registro como marca, a teor do art. 122 da Lei 9.279/96” (REsp n. 678.497, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo). Não há dúvida, portanto, a respeito da possibilidade de registro da marca Legião Urbana, tal como ocorreu em 2000, afastando-se qualquer alegação de cotitularidade ou de uma dimensão social no uso da marca pelos fundadores da banda.

Portanto, a controvérsia a respeito do tema não tem razão de ser.

O problema, infelizmente, está associado a um inconformismo dos dois músicos, que decorre, em ampla medida, das dificuldades ainda existentes na sociedade brasileira em compreender o significado, o alcance e os relevantes objetivos da defesa da propriedade intelectual. Em democracias mais maduras, trata-se de questões consolidadas. Paul McCartney não faz shows valendo-se da marca Beatles. Trata-se de um ex-integrante, que canta antigas canções do grupo e se apresenta como tal. Aliás, os ex-componentes dos Beatles tiveram de aceitar que uma parte dos direitos correlatos ao catálogo do grupo pertencesse, por um bom tempo, a Michael Jackson. É nisso que reside a sistemática de proteção à propriedade intelectual. Existem elementos marcadamente patrimoniais e de segurança jurídica a ela associados.

Destaque-se que Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos não serão cerceados em seus direitos artísticos. Eles ainda poderão se apresentar ao público e cantar os conhecidos sucessos da Legião Urbana que são de sua coautoria. A questão é de propriedade marcária, não de direito autoral. Trata-se da defesa de uma marca registrada e dos direitos do seu titular.

Há, por fim, um aspecto bastante importante. A marca Legião Urbana, nos termos do art. 123 da Lei de Propriedade Industrial, serve para identificar e distinguir uma banda musical, que deu enorme contribuição para a arte brasileira. O grupo era integrado pelos dois artistas acima citados e por Renato Russo. A banda, tal como conhecida do público e designada pela marca, não existe mais. Desfez-se com a morte de um de seus integrantes. Os elementos intangíveis representados pela marca não podem e não devem identificar um novo grupo artístico, que trata de um momento, uma história, uma criação e um patrimônio musical completamente diversos, ainda que haja parcial semelhança nos integrantes das respectivas bandas.

Mais que isso. O vocalista, função exercida por Renato Russo na Legião Urbana, é a alma, a cara e a voz da banda. Nada e ninguém poderá trazer de volta a voz, o talento, o carisma e a presença de palco de Renato Russo. Com a sua morte, acabou, também, a Legião Urbana. Ela existe na memória dos milhões de fãs, que sorriram, dançaram, choraram e cantaram (e ainda cantam e dançam!), nos bons e maus momentos, as belíssimas criações do grupo. Não é possível ressuscitá-la. Uma tentativa dessa natureza peca contra a história da banda, despreza o seu enorme legado, desrespeita os seus admiradores e atenta contra o sistema de propriedade intelectual brasileiro. A inovação, o empreendedorismo, a criação artística, a ousadia, a disrupção e o talento que se quer ver florescer no País, típicos da música brasileira e tão bem representados em Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos, merecem mais que isso.

[1] Art. 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos arts. 147 e 148.

  • 1º Toda pessoa que, de boa fé, na data da prioridade ou depósito, usava no País, há pelo menos 6 (seis) meses, marca idêntica ou semelhante, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, terá direito de precedência ao registro.
  • 2º O direito de precedência somente poderá ser cedido juntamente com o negócio da empresa, ou parte deste, que tenha direta relação com o uso da marca, por alienação ou arrendamento.

Art. 130. Ao titular da marca ou ao depositante é ainda assegurado o direito de:

I – ceder seu registro ou pedido de registro;

II – licenciar seu uso;

III – zelar pela sua integridade material ou reputação.

[2] (…) o ordenamento jurídico nacional, no tocante à propriedade da marca, adota o sistema atributivo, sendo adquirida pelo registro validamente expedido pelo INPI, que assegura ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, nos termos do art. 129 da Lei nº 9.279/1996, retroagindo os efeitos da concessão à data do depósito do pedido.

Além disso, somente com a desconstituição do registro por ação própria é que se poderia afastar a garantia de exclusividade de uso em todo o território nacional, consoante a reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. (REsp n. 1.801.881, Terceira Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, grifou-se).

[3] Veja-se o teor do art. 5º, XXIX, da Constituição Federal:

(…)

XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

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