Judiciário
Representantes do poder público e da sociedade civil apontam soluções para aperfeiçoar fiscalização do sistema prisional brasileiro
Primeira parte da audiência pública convocada pelo ministro Gilmar Mendes teve a participação de defensores públicos, magistrados, integrantes do Ministério Público Federal, parlamentares e representantes da sociedade civil
A criação de meios para aperfeiçoar e fiscalizar o sistema prisional brasileiro foi o cerne da contribuição dos defensores públicos, magistrados, integrantes do Ministério Público Federal, parlamentares e representantes da sociedade civil que participaram da audiência pública convocada pelo ministro Gilmar Mendes, realizada nesta segunda-feira (14).
A reunião é a primeira a discutir uma decisão já tomada pelo Tribunal, que no Habeas Corpus (HC) 165704, julgado pela Segunda Turma em outubro de 2020, determinou a substituição da prisão cautelar por domiciliar de pais e responsáveis por crianças menores de 12 anos e por pessoas com deficiência, com base nos requisitos previstos no artigo 318 do Código de Processo Penal (CPP).
Defensoria Pública
O representante da Defensoria Pública da União (DPU), Walber Rondon Ribeiro, defendeu que sejam explicitadas em resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) as situações que não configuram hipóteses impeditivas da liberdade, especialmente em relação ao tráfico de drogas e outros crimes cometidos sem grave ameaça. Ele pontuou também a importância da realização de audiências de justificação, para que as partes possam produzir, perante o juiz, provas faltantes nos autos, e destacou que a lógica disciplinar punitivista interfere no agravamento das penas.
Fabíola Pacheco, do Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege), descreveu a vivência da realidade do sistema prisional como “gotas de sofrimento diário”. Ela afirmou que hoje o preso cumpre sua pena sem que possa, no futuro, se tornar um cidadão de bem. “Quando tratamos do sistema prisional, somo um país de amadores, sempre improvisando e decidindo em função do Estado, e não do apenado”, concluiu.
A presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), Rivana Barreto Ricarte, também ressaltou que há uma violação sistemática dos direitos e garantias das pessoas presas no Brasil, situação degradante que, para ela, equivale a uma dupla punibilidade. A defensora pública acrescentou que as falhas no sistema são sentidas no cotidiano. Ela citou como exemplo o tempo de três meses para se cumprir um alvará de soltura a partir da chegada do documento na prisão.
CNJ e CNMP
Maria Tereza Uille Gomes, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apontou ações concretas que classificou como singelas, mas importantes para aperfeiçoar o sistema prisional. Citou, por exemplo, a necessidade de maior gestão de dados e a união entre as instituições para trabalhar na progressão do regime prisional de mães encarceradas.
Também do CNJ, Mário Guerreiro afirmou que o sistema prisional brasileiro tem falhas estruturais e coletivas que só podem ser sanadas com ações interinstitucionais em diferentes esferas. Nesse sentido, registrou que desde 2019 o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF) do CNJ trabalha em parceria com as Nações Unidas e o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) no programa Fazendo Justiça, que atualmente desenvolve 28 ações simultâneas para enfrentamento de desafios estruturais no campo da privação de liberdade.
O representante do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Marcelo Weitzel, disse que o sistema prisional já teria “explodido” totalmente se fosse mais eficiente em termos de persecução penal. Isso porque, argumentou, a maioria dos delitos sequer chega ao conhecimento do Poder Judiciário e boa parte dos mandados de prisão não são cumpridos.
Já o promotor de Justiça do Paraná Alexey Caruncho destacou que não há linearidade entres as unidades prisionais do país e que isso dificulta a produção de diagnósticos nacionais, regionais e setorizados.
Especialistas do setor público
O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Néfi Cordeiro afirmou que a decisão da Suprema Corte no HC 165704 precisa surtir efeitos concretos. Para tanto, defendeu a identificação visual de processos que envolvam rés presas e que sejam responsáveis por criança ou pessoa deficiente, para que tenham tramitação mais rápida. Sugeriu ainda a fixação de prazo para análise desses processos e de audiências de custódia nesses casos.
A desembargadora federal Taís Schilling Ferraz, por sua vez, ressaltou que a adoção de medidas paliativas, como a concessão de habeas corpus coletivos e a realização de mutirões carcerários, são insuficientes e levam o Estado a ficar refém de suas próprias decisões. Ela defendeu o investimento em políticas públicas de medidas restaurativas e alertou para o risco de que mães de crianças e responsáveis por pessoas com deficiência passem a ser recrutadas pelo crime organizado, a exemplo do que ocorre com menores de idade.
O ex-ministro de Estado Raul Jungmann afirmou que 70 facções criminosas estão infiltradas no sistema prisional brasileiro. “Portanto, esse sistema público é controlado pelos criminosos”, disse. Segundo ele, o principal motor da violência no Brasil está nas prisões, que não cumprem a função de ressocialização do apenado. Por exemplo, disse, 95% dos presos não têm qualquer atividade laboral e 92% não têm acesso a atividades de aprendizagem. Por fim, o ministro pediu que o STF estabeleça uma diferenciação entre usuário e traficante de drogas. De acordo com Jungmann, isso aliviaria a situação atual do sistema prisional.
Parlamentares
Os deputados Capitão Alberto Neto (Republicanos-AM) e Rafael Motta (PSB-RN) destacaram a importância do policial penal, oficial responsável por manter a segurança do sistema prisional. Alberto Neto, que é policial militar da reserva, afirmou ser necessário investir na estrutura do sistema, regulamentar a figura da polícia penal e criar uma legislação mais eficiente na área. O deputado Rafael Motta (PSB-RN), por sua vez, firmou compromisso no sentido de atuar no aperfeiçoamento da legislação sobre o tema penal.
Sociedade civil
Para o representante da Clínica de Direitos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Daniel Sarmento, a decisão do STF demonstra o compromisso da Corte com a garantia e cumprimento de direitos da população carcerária. “É positiva a tentativa do STF em reverter o aspecto de coisas inconstitucionais no sistema prisional, bem como na proteção de grupos excluídos”, disse. O especialista também defendeu o equacionamento de direitos fundamentais e pediu o fim da violação sistemática dos direitos dos presos que, na opinião dele, são em grande parte decorrentes da superlotação carcerária.
Também representante da academia, o professor Carlos Alexandre de Azevedo afirmou que a audiência representa um importante passo rumo à modernização do sistema prisional. “Essa decisão (HC 165704) evidencia a necessidade da intervenção estrutural do STF para fiscalização de políticas públicas voltadas à superação dos problemas carcerários, que são de abrangência nacional”. O especialista apontou, ainda, que faltam diálogo e atuações conjuntas entre as instituições, para corrigir as falhas estruturais.
Na opinião do representante do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Gustavo Octaviano Diniz Junqueira, é necessário enfatizar as medidas cautelares alternativas à prisão. “Acredito que a dependência dos filhos menores aos pais presos é presumível. Além disso, creio que é necessária a edição de uma súmula vinculante mais objetiva, para os casos de substituição de prisão”.
Representando a Conectas Direitos Humanos, Elaine Bispo da Paixão afirmou que o HC 165704 tem potencial para ajudar a diminuir o excesso de prisões no país. “Essa decisão do STF é uma aliada para o combate ao racismo estrutural vivenciado no país”.
Na sequência, a coordenadora nacional da Pastoral Carcerária, Rosilda Ribeiro, criticou a “misoginia penal” e fez um apelo à Corte, no sentido de evitar a perpetuação do ciclo de aprisionamento de mulheres pretas e pobres que, na visão dela, são as maiores vítimas da tortura carcerária. “Não pode a pena privativa de liberdade suprimir os direitos fundamentais dos cidadãos”.
Fechando as exposições da primeira parte da audiência pública, a representante da Frente Estadual pelo Desencarceramento e presidente da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas Privada de Liberdade de Minas Gerais, Maria Teresa Santos, disse ser uma sobrevivente do cárcere. Ela argumentou que a guerra às drogas é contra pobres e negros. “Defendemos que as condenações de tráfico de drogas não sejam fundamentadas apenas nas declarações da polícia. Acreditamos que, nesses casos, as soluções devem ser construídas coletivamente”.