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Judiciário

Tortura racial é crime imprescritível

A tortura é um crime equiparado aos hediondos. A Constituição impôs os maiores rigores aos delitos dessa natureza, mas não estabeleceu a imprescritibilidade. Teria sido um lapso do legislador?

Nos termos do texto constitucional, são crimes imprescritíveis apenas a prática de racismo (art.5º, XLII)[1] e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art.5º, XLIV), não havendo qualquer menção ao crime de tortura e aos demais crimes hediondos ou equiparados.

Ocorre que o Estatuto de Roma, internalizado através do Decreto 4.338/02, estabelece que a tortura é um crime contra a humanidade e imprescritível, “quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil” (art.7º, I, f). Reforçando essa premissa, o artigo 29, do Estatuto de Roma, diz que os crimes da competência do Tribunal não prescrevem.

Nesse cenário, discute-se na doutrina se o crime de tortura seria de natureza imprescritível ou não. Para uma primeira corrente, se a tortura houver sido praticada após a entrada em vigor do Decreto 4.388/02, que internalizou o Estatuto de Roma, e na forma do seu artigo 7º, I, f, o crime seria imprescritível.[2] Em reforço, LIMA destaca que esse entendimento vai ao encontro do princípio pro homine, devendo prevalecer a norma mais protetiva aos direitos humanos.[3]

Uma segunda corrente, todavia, entende que só são imprescritíveis os crimes assim considerados pela Constituição da República, “não se admitindo nenhuma outra exceção em nosso ordenamento jurídico”.[4] Parece-nos correto esse entendimento, uma vez que a prescrição é um direito fundamental e, como tal, não poderia ser mitigado por tratados ou convenções internacionais. Ora, se o legislador constituinte entendeu por bem tornar imprescritível apenas o crime de racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, não se pode admitir a ampliação desse rol.[5]

Nem mesmo o princípio pro homine poderia ser invocado para subsidiar a imprescritibilidade geral do crime de tortura. Isto, pois, estamos diante de normas que tutelam igualmente direitos fundamentais, mas sob perspectivas distintas. Note-se que nesse conflito existe uma norma internacional favorável à imprescritibilidade e outra norma, de natureza constitucional, que sugere a prescritibilidade, limitando, assim, o direito de punir pertencente ao Estado. Parece-nos que nesse embate deve prevalecer a norma constitucional, inclusive por ela se destinar a proteger o indivíduo da ânsia punitiva estatal. É mister consignar, ainda, que em respeito ao princípio da legalidade, especialmente na sua dimensão de garantia da Lex Populi, tratados e convenções internacionais não podem dispor sobre Direito Penal.

Demais disso, não podemos olvidar que a tortura é um crime equiparado aos hediondos, sendo certo que a Constituição impôs os maiores rigores aos delitos dessa natureza no seu artigo 5º, LXIII, mas não estabeleceu a imprescritibilidade. Teria sido um lapso do legislador? Não acreditamos. Assim, em respeito ao princípio da Supremacia da Constituição, entendemos que o crime de tortura está sujeito à prescrição nos termos do artigo 109, do Código Penal. Em reforço a esse entendimento, lembramos que o STF reconheceu que a Lei de Anistia (Lei 6.683/79) se aplica àqueles que praticaram a tortura na época da Ditadura Militar de 1964.[6]

Sem embargo do exposto, considerando o julgamento do HC 154.248/DF pelo Supremo Tribunal Federal, que analisa a imprescritibilidade do crime de injúria racial, previsto no artigo 140, §3º, do CP, entendemos necessária uma revisão sobre a imprescritibilidade do crime de tortura, mas apenas na hipótese do artigo 1º, inciso I, alínea “c”, da Lei 9.455/97, que trata da denominada tortura preconceituosa ou tortura racial.

Nessa modalidade de tortura a violência (física ou moral) empregada contra a vítima decorre de uma prévia discriminação racial ou religiosa. Note-se que, diferentemente das figuras anteriormente previstas no artigo 1º, inciso I, da Lei de regência, a tortura racial não exige uma finalidade específica por parte do agente. Em outras palavras, o torturador não tem a expectativa de obter determinado comportamento da vítima, submetendo-a aos seus desejos e vontades. Nessa hipótese a tortura ocorre por uma razão pura e simples: o preconceito ou discriminação.

Sobre o tema são irretorquíveis as lições de ROQUE, TÁVORA e ALENCAR:

Com efeito, na presente hipótese, diversamente do que ocorre nas alíneas “a” e “b”, não há uma finalidade a ser alcançada. A discriminação a que se refere o dispositivo não é a finalidade, mas sim a motivação para a prática da tortura. Por outras palavras, o agente não tortura para discriminar, ele discrimina e, por esta razão, tortura. Não há, portanto, elemento subjetivo específico, uma finalidade específica a ser atingida. E, assim, o sofrimento imposto é o próprio resultado que se pretende. E o crime se consuma com a imposição de tal sofrimento, trata-se de crime material.[7]

Apenas se deve ter uma cautela com o afirmado pelos autores em destaque. Quando em seu texto acima alegam que não há “elemento subjetivo específico” (sic) no crime de Tortura – Racismo, isso não pode ter o significado de que essa modalidade de tortura, diversamente das demais previstas no mesmo dispositivo, seria um crime informado pelo dolo genérico. O dolo na Tortura – Racismo é específico. Há, portanto, na verdade, exigência de um elemento subjetivo específico, consistente em que a motivação da conduta de torturar não seja qualquer outra a não ser a discriminação. Tanto é fato que se alterando essa motivação, haverá outros crimes, sejam outros crimes de tortura ou mesmo crimes comuns. Como aduz a doutrina, o dolo específico se revela numa “tendência especial da ação” [8] ou numa “particular direção da conduta ou um fim especial”. [9] De outra forma, seria de se abandonar toda uma tradição doutrinária e jurisprudencial que, por exemplo, reconhece o crime de Prevaricação (artigo 319, CP) como de dolo específico, consistente na satisfação de um interesse ou sentimento pessoal. [10] Há ainda que lembrar que a própria noção da dupla dolo genérico/específico é objeto de crítica na doutrina, apontando-se como mais condizente a distinção entre dolo (vontade de praticar a conduta descrita no tipo); finalidade (o que o autor pretende com a prática criminal) e motivo (móvel psíquico da ação, que leva o agente a praticar a conduta). A finalidade é ulterior à ação, enquanto que o motivo é anterior ou concomitante. [11] Contudo, aquilo que se denomina como dolo específico, independentemente de qualquer crítica técnica, pode se manifestar como uma finalidade especial do agente (v.g. fim de transmitir doença, no artigo 131, CP) ou uma específica motivação (v.g. a já citada satisfação de um interesse pessoal no artigo 319, CP). Por isso também se deve ter muito cuidado com a afirmação dos autores de que o crime consiste na simples imposição do sofrimento, pois que não é assim. Realmente se trata de um crime material, que se consuma com o sofrimento, mas, para a configuração do tipo penal de tortura, esse sofrimento deve ser imposto com especial motivação, que é a discriminação. Sem isso, como já dito, o crime pode se transmudar em outra figura delitiva.

Nesse contexto, é inegável que a tortura racial constitui uma das formas de manifestação do racismo, uma vez que o torturador submete a vítima a intenso sofrimento físico ou psicológico movido por uma ideologia preconceituosa de raça. Particularmente, entendemos que essa modalidade de tortura representa a forma mais grave e reprovável de manifestação do preconceito racial, exigindo, portanto, a incidência do artigo 5º, inciso XLII, da Constituição da República.

Sobre o tema, valem as lições do Ministro Edson Fachin em seu voto no HC 154.248/DF:

A injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra o grupo ao qual pertence.

Inegável que a injúria racial impõe, baseado na raça, tratamento diferenciado quanto ao igual respeito à dignidade dos indivíduos. O reconhecimento como conduta criminosa nada mais significa que a sua prática tornaria a discriminação sistemática, portanto, uma forma de realizar o racismo.[12]

Impossível confrontar tais conclusões, sob pena de incidirmos no denominado racismo estrutural. É evidente que se a tortura é movida por uma discriminação de raça, a conduta constitui, sim, um ato de racismo e, portanto, crime de natureza imprescritível.

Em ligeira discordância o autor Eduardo Cabette se manifesta pela inexistência de incidência em suposto “racismo estrutural” (sic) quando se venha a confrontar os argumentos da decisão do Ministro enfocado. Fato é que a argumentação é eminentemente técnica, consistindo no fato de que o crime de injúria qualificada não passa disso, um crime contra a honra, tal como o legislador o tratou. Fosse outra a “mens legislatoris”, teria incluído a conduta na Lei de Racismo. Note-se que a lei que incluiu a qualificadora dentre os crimes contra a honra (Lei 9.459/97) é posterior à Lei de Racismo e inclusive promove alterações nesta segunda, não havendo dúvidas de que a colocação da injúria preconceito no Código Penal dentre os crimes contra a honra foi uma opção consciente do legislador que, se o quisesse, teria se limitado a alterar a Lei 7.716/89. .Ademais, não há proporcionalidade entre a injúria qualificada prevista no Código Penal e as condutas de extrema gravidade previstas na Lei 7.716/89. Diversa, porém, é a situação da Tortura – Racismo. Nesse caso se trata de um ato discriminatório de extrema gravidade, comportando certamente e praticamente de forma induvidosa ou inquestionável, a qualificação como um crime de racismo. Caso contrário, haveria outra infração à proporcionalidade em sentido oposto à que ocorre, ao sentir do autor Eduardo Cabette, com a decisão do STF. No primeiro caso, há um excesso em relação à injúria. Já no segundo, haveria uma insuficiência protetiva em relação à tortura. Seria inconcebível pensar que indeferir a entrada de alguém em uma casa de espetáculos em razão de discriminação racial configuraria crime de racismo (e deve configurar), enquanto que sujeitar essa pessoa, por motivo de idêntica discriminação, à tortura, não seria crime de racismo! Neste caso, entende o autor Eduardo Cabette que, independentemente da decisão do STF, concorde-se ou não com ela em relação ao crime de injúria, a proporcionalidade está a ancorar a tipificação de um crime de racismo, ainda que fora da Lei específica. E, diversamente do caso da injúria, que foi incluída num diploma legal genérico (Código Penal), os crimes de tortura teriam de ser tratados, por disposição constitucional, em lei própria, o que justifica o fato de  a Tortura – Discriminatória não ter sido incluída na Lei de Racismo, embora seja, indubitavelmente, um crime de racismo.

Saliente-se, ainda, que o artigo 3º, inciso III, da CR, elenca como um dos objetivos fundamentais da República, promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Com efeito, tendo em vista que o ordenamento jurídico deve ser interpretado a partir da Constituição, não se pode excluir a injúria racial e a tortura racial do rol dos crimes imprescritíveis.

Apenas destaque-se o entendimento divergente do autor Eduardo Cabette, para quem o crime de injúria – preconceito não constitui crime de racismo e se trata de uma decisão equivocada primeiro do STJ e depois do STF sua inclusão nessa qualidade. Até seria possível fazer isso por iniciativa legislativa que transportasse tal infração do Código Penal (Crimes contra a Honra) para a Lei de Racismo. Ainda assim, não se considera que a injúria seja uma conduta equiparável em grau de gravidade com os demais crimes de racismo previstos na legislação brasileira.  Já no que tange à Tortura Discriminatória, como já afirmado, é incontornável o fato de que deve ser reconhecida como um crime de racismo previsto em diploma legal diverso. Há não somente proporcionalidade para isso, como também uma explicação plausível para que o crime de tortura tenha sido previsto fora da Lei 7.716/89, tendo em vista uma especialidade imposta pelo próprio texto constitucional.


[1] Os crimes de racismo estão tipificados na Lei 7.716/89, sendo as condutas punidas com reclusão em respeito à Constituição da República.

[2] Adotando esse entendimento: GRECO, Rogério. Leis Penais Especiais Comentadas – Crimes Hediondos e Tortura. Volume 1. Niterói: Impetus, 2016. p. 240-241; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio M. de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 471.

[3] LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Especial Criminal. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p.989.

[4] CAPEZ, Fernando. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 4. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 654.

[5] CABETTE, Eduardo. SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 2. Ed. Leme, São Paulo: Mizuno, 2021. p.610. No mesmo sentido, STF, 2ª Turma, Ext. 1.278/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 18.09.2012.

[6] STF, Plenário, ADPF 153, Rel. Min. Eros Grau, j. 29.04.2010.

[7] ROQUE, Fábio; TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Legislação Criminal para concursos. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 454.

[8] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume I. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 130.

[9] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 314;

[10] BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal Parte Geral. Volume 1. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 271.

[11] Op. Cit., p. 271.

[12] STF, HC 154.248/DF, trecho extraído do voto do Rel. Min. Edson Fachin.

Autores

  • Eduardo Luiz Santos Cabette – Delegado de Polícia em Guaratinguetá (SP). Mestre em Direito Social. Pós-graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós-graduação da Unisal. Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
  • Francisco Sannini Neto – Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Pós-Graduado com Especialização em Direito Público. Professor da Graduação e da Pós-Graduação do Centro Universitário Salesiano de Lorena/SP. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor do Complexo Educacional Damásio de Jesus.
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