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Olimpíada Tóquio 2021: como Brasil ajudou Japão a planejar recorde de medalhas nos Jogos
O Japão ajudou o Brasil a se tornar uma potência no judô: nenhuma modalidade individual deu tantas medalhas a brasileiros em Olimpíadas como o esporte criado por japoneses e levado às nossas terras por imigrantes nipônicos. Nos Jogos de Tóquio, o Brasil terá a chance de pagar parte dessa dívida
Dependendo do judô para bater seu recorde de medalhas em Olimpíadas, o país-sede dos Jogos vem ampliando o repertório de seus judocas com técnicas desenvolvidas por irmãos paraenses que viviam no bairro carioca do Flamengo nos anos 1920.
Os irmãos se chamavam Carlos e Hélio Gracie, e eles inventaram o jiu-jitsu brasileiro — ou Brazilian Jiu-Jitsu (BJJ), como o esporte é chamado no resto do mundo, inclusive no Japão.
A invenção é brasileira, mas teve o dedo do japonês Mitsuyo Maeda. Discípulo do fundador do judô, Jigoro Kano (1860-1938), Maeda se mudou para o Brasil em 1914 e passou a difundir o esporte em Belém. Um de seus alunos foi Carlos Gracie, filho primogênito de um empresário da borracha paraense.
Carlos ensinou as técnicas a seu irmão Hélio e, juntos, eles as reinventaram, dando ênfase à luta travada no chão, com os oponentes deitados.
Eles se mudaram para o Rio e passaram a se referir à modalidade como jiu-jitsu, nome que em japonês significa “arte suave” e era usado no Japão para designar uma série de práticas que caíram em desuso após o surgimento do judô — ele próprio criado por Jigoro Kano a partir dessas técnicas.
O jiu-jitsu brasileiro, porém, era diferente das versões japonesas pela sua fluência e dinâmica, diz à BBC News Brasil Marco Antônio Barbosa, ex-atleta profissional de judô e hoje um dos principais professores de jiu-jitsu brasileiro no mundo.
Mestre Barbosa, como é conhecido, diz que o jiu-jitsu brasileiro enfocava técnicas de defesa pessoal e tinha regras bem abertas. “Isso favoreceu o que o brasileiro tem de bom, que é a mobilidade e a agilidade”, ele diz.
Já o judô, que em 1964 se tornou um esporte olímpico, foi ficando “mais engessado”, segundo Barbosa. Hoje, enquanto lutadores de jiu-jitsu passam a maior parte de uma luta alternando posições no chão, os judocas priorizam a troca de golpes em pé.
Porém, apesar das regras diferentes, o judô também confere pontos a certos golpes aplicados no solo, como imobilizações e chaves de braço ou pescoço — daí a vantagem de quem também sabe lutar deitado, a essência do jiu-jitsu.
Barbosa, de 53 anos, conhece bem o Japão: ele treinou judô por dois anos em uma universidade japonesa e, após migrar para o jiu-jitsu, viajou para o país mais de dez vezes para lecionar sua modalidade atual. Mas seu primeiro contato com japoneses ocorreu antes, na adolescência, quando ele se mudou para Bastos, cidade no interior de São Paulo com forte presença nipônica.
Ali, Barbosa frequentou uma das principais escolas de judô do Brasil, fundada em 1951 por imigrantes japoneses e que formou um dos principais judocas da história do Brasil, Tiago Camilo (prata em Sydney 2000 e bronze em Pequim 2008).
Barbosa chegou à faixa-preta, a mais alta na modalidade, e foi convidado a passar dois anos treinando no Japão. “Fui para o Japão esperando uma coisa, porque já vivia em uma comunidade japonesa, mas encontrei outra”, ele conta.
Barbosa diz que imaginava encontrar no Japão uma cultura de extrema disciplina e austeridade, mas se surpreendeu. “O pessoal de Bastos era muito mais ‘japonês’ que os de lá”, afirma. Ele acredita que a diferença se devia à vivência dos imigrantes japoneses de Bastos, muitos deles nascidos logo antes ou depois da derrota do Japão na Segunda Guerra (1939-1945).
Os japoneses de Bastos cresceram em tempos duros e foram moldados por essa dureza, diz Barbosa. Já o Japão que recebeu o então judoca era outro — totalmente reconstruído, rico, tecnológico. “Quando cheguei no Japão, vi os caras mais soltos”, conta.
Barbosa voltou ao Brasil e foi convocado para a seleção brasileira de judô. Disputou os Jogos Panamericanos em Havana e o Campeonato Mundial de Barcelona, ambos em 1991. Quatro anos depois, passou a praticar jiu-jitsu e logo se destacou por seu preparo físico. “Na época, os praticantes de ‘jiu’ eram brigadores, ainda não eram atletas”, afirma.
Em 1999, a carreira de Barbosa foi catapultada após ele vencer Royler Gracie, um dos seis filhos do cofundador do jiu-jitsu Hélio Gracie. Como os irmãos, Royler seguiu a carreira do pai e foi batizado com um nome iniciado pela letra “r” (os demais se chamam Rickson, Rolls, Relson, Rolker, Royce e Rorion).
Outra luta opôs Barbosa a Yuki Nakai, um dos principais responsáveis não só pelo retorno do jiu-jitsu ao Japão como pela absorção de suas técnicas por judocas japoneses que disputarão os Jogos de Tóquio. Com só 1,68 m e 70 kg, o então judoca Nakai ganhara fama no mundo das lutas ao disputar em 1995 um torneio de vale-tudo no Japão aberto a competidores de todos os pesos.
No primeiro combate, Nakai enfrentou o carateca holandês Gerard Gordeau, que enfiou o dedo em um olho do japonês e o fez perder essa visão. Mesmo gravemente ferido, Nakai ganhou a luta com uma chave de calcanhar e, no embate seguinte, derrotou um americano Craig Pittman, 45 kg mais pesado e especialista em luta greco-romana. Nakai só perderia a última luta da competição, disputada contra outro filho de Hélio Gracie, Rickson.
Em um vídeo no canal PVT (Portal do Vale Tudo) no YouTube, o jornalista Marcelo Alonso conta que o sucesso da família Gracie nos ringues de vale-tudo fez com que Nakai se interessasse pelo jiu-jitsu brasileiro. Alonso entrevistou o lutador durante uma visita o Japão em 1996, quando Nakai lhe contou que pretendia trazer o jiu-jitsu de volta ao país.
No ano seguinte, o japonês viajou ao Rio de Janeiro e passou semanas treinando nas principais academias de jiu-jitsu da cidade, além de disputar o segundo Campeonato Mundial da modalidade. “Num momento em que as rivalidades eram enormes e lutadores de outras academias não eram bem-vindos para intercâmbios técnicos, Nakai foi recebido com muito respeito”, diz Alonso no vídeo. “Mestres das principais academias pareciam entender que ele representava a continuação de um ciclo.”
Foi em uma de suas andanças pelo Brasil que Nakai enfrentou Mestre Barbosa. “Foi uma luta difícil”, lembra o brasileiro, que saiu vitorioso. Os dois ficaram amigos, e Nakai o convidou a visitá-lo em sua academia no Japão.
Nakai acabaria fundando a Federação Japonesa de Jiu-Jitsu Brasileiro, organização que ele preside até hoje e à qual são filiados mais de 30 mil lutadores. O jiu-jitsu brasileiro ainda é pequeno no Japão se comparado ao judô, que atinge milhões por ser ensinado nas escolas. Mas a modalidade brasileira tem crescido — em parte por causa da popularidade das competições de MMA (artes marciais mistas).
Além disso, diz Barbosa, muitos japoneses que competem no judô universitário hoje praticam jiu-jitsu para aprimorar suas técnicas de solo. E muitos mestres brasileiros de jiu-jitsu migraram para o Japão para lecionar lá — alguns deles filhos e netos de japoneses.
Fiasco em Londres
Foi um acontecimento considerado humilhante pelos japoneses, porém, que projetou ainda mais o jiu-jitsu brasileiro no país.
Potência máxima do judô, o Japão voltou das Olimpíadas de Londres de 2012 com uma única medalha de ouro. “Foi uma catástrofe”, lembra o judoca brasileiro Eduardo Kitadai, árbitro da Federação Internacional de Judô e professor da modalidade em São Paulo.
Kitadai (pai do judoca Felipe Kitadai, que ganhou a medalha de bronze justamente em Londres) conta que naqueles anos os atletas europeus vinham deixando os japoneses para trás com um judô de muita força e preparo físico.
Ao perceber que tinham perdido o domínio, diz ele, os judocas japoneses se voltaram a outras artes marciais para enriquecer suas técnicas — caso do sumô mongol, do kurash centro-asiático e do jiu-jitsu brasileiro. E nisso Yuki Nakai, naquela altura já o principal nome do jiu-jitsu no país, passou a ser convidado a dar aulas a judocas da seleção feminina japonesa.
O Japão voltou a dominar as competições internacionais de judô, e as atletas japonesas se tornaram conhecidas pela destreza na luta de solo. Nos Jogos do Rio, em 2016, a seleção do país ganhou 12 medalhas — sete a mais que a França, segunda colocada.
Em 2020, Nakai disse em uma entrevista no YouTube que, quando começou a treinar as judocas japonesas, “elas temiam algumas técnicas específicas usadas por atletas de outros países”. Hoje, porém, diz que as atletas souberam incorporar técnicas de jiu-jitsu e de MMA, o que as deixou mais confiantes.
Nakai disse esperar que, nos Jogos de Tóquio, as judocas consigam “alcançar o topo do pódio se possível, mantendo seu estilo agressivo e sem perder a cabeça”. O bom desempenho nos tatames é considerado crucial para que o Japão bata seu recorde de medalhas em Jogos Olímpicos.
Já a equipe de judô que o Brasil enviou a Tóquio tentará correr por fora: mais da metade dos judocas brasileiros disputarão uma Olimpíada pela primeira vez. Único ouro do judô brasileiro nos Jogos do Rio, Rafaela Silva foi punida por doping e está fora da disputa.
O Brasil segue contando com a ajuda do Japão para vencer na modalidade: a equipe masculina do judô nacional terá como técnica uma judoca japonesa, Yuko Fujii. Agora, porém, o caminho que une as duas nações no esporte é de mão dupla.