Internacional
Como foi a privatização dos correios na Alemanha
Câmara aprovou o projeto que autoriza a venda dos Correios do Brasil à iniciativa privada. Na Alemanha, processo começou na década de 1990, de forma escalonada e sob proteção do governo durante a transição
O projeto de lei que permite a privatização dos Correios brasileiros, prioridade para Jair Bolsonaro desde o início de seu governo, foi aprovado nesta quinta-feira (05/08) pela Câmara dos Deputados e agora será enviado ao Senado.
O tema coloca em lados opostos o Ministério da Economia, que deseja vender 100% dos Correios por meio de leilão à iniciativa privada, e alguns partidos da oposição ao governo e o sindicato de funcionários da estatal, que foi fundada em 1663.
O texto votado na Câmara quebra o monopólio no serviço postal – a entrega de pacotes já é aberta ao mercado privado –, mas dá à empresa que arrematar os Correios no mínimo cinco anos de exclusividade nesse serviço. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) ficaria responsável por definir a regulamentação que garantisse a universalidade do serviço postal, como é hoje com a telefonia.
Entusiastas da privatização dizem que ela daria maior capacidade de investimento e eficiência aos Correios e propiciaria melhores serviços. Críticos, por sua vez, argumentam que os Correios cumprem um papel estratégico ao alcançarem todos os municípios, são no momento uma empresa lucrativa e já oferecem um serviço adequado.
Privatização após reunificação do país
A Alemanha passou por um debate parecido na década de 1990, quando a então estatal do setor de correspondência, a Deutsche Bundespost, criada em 1871, no Império Alemão, começou a ser privatizada, num processo que levou mais de uma década para ser concluído.
Em 1985, ela tinha 459 mil funcionários, era uma das maiores empregadoras da Alemanha Ocidental e atuava nos ramos de entrega de cartas e pacotes, serviços financeiros e telefonia. No início do processo de privatização, foi desmembrada, e os serviços de correspondência ficaram com a empresa rebatizada como Deutsche Post.
Em vez de desregulamentar o mercado e vender a estatal de uma vez, o governo alemão decidiu pulverizar a venda em fases e fazer uma liberalização regulada do mercado, para garantir que a nova empresa se tornasse competitiva e que a oferta dos serviços fosse mantida em todo o país.
Papel do Estado na economia
Na época da privatização, os países europeus estavam discutindo as regras do que viria a ser a União Europeia, estabelecida em 1993. Um dos princípios que norteou a criação do bloco era favorecer a economia de mercado, na qual governos abririam mão de estatais e passariam a atuar como reguladores de empresas privadas em áreas estratégicas, como correspondência e telefonia.
O debate sobre o papel do Estado na economia estava especialmente quente na Alemanha nessa década. O país se reunificara em 1990 e discutia como nivelar a qualidade dos serviços oferecidos na República Democrática Alemã (RDA), sob regime socialista por quatro décadas, aos da capitalista República Federal da Alemanha (RFA). O governo federal era liderado por Helmut Kohl, da União Democrata Cristã (CDU), o mesmo partido de Angela Merkel.
“A primeira discussão era sobre como melhorar o serviço postal, e a segunda era sobre como fazer a empresa dar lucro. Afinal, por que esse serviço deveria continuar dando prejuízo e ser subsidiado pelo contribuinte, se nem tudo era correspondência social e havia muitas cartas comerciais nele?”, relatou à DW Brasil Thomas Baldry, vice-presidente de relações internacionais da Deutsche Post e seu funcionário desde 1995, quando a empresa ainda era estatal.
Venda escalonada
O governo alemão decidiu, então, que passaria a companhia à iniciativa privada. Primeiro, ela foi divida em três: correios, serviços financeiros e telefonia. Em seguida, foram definidas regras para o setor postal e criada uma agência reguladora para coordenar e supervisionar o mercado e garantir que todas as cidades seriam atendidas. Por último, decidiu-se o modelo de privatização: em vez de vender toda a companhia de uma vez, em leilão, a opção foi vender a empresa em fases, por meio da abertura de capital.
“Ficou claro que não dava para simplesmente vender a Deutsche Post toda para alguém, nem de uma só vez, pois isso era politicamente delicado e a empresa era grande demais, mas que a melhor opção era abri-la para o mercado de capitais, de forma escalonada”, conta Baldry.
Em 1999, o governo vendeu 50% das ações da Deutsche Post para um banco público, o KfW, e no ano seguinte um lote com 29% das ações foi oferecido a investidores. Até 2005, o governo vendeu todas as suas ações remanescentes ao KfW, que, por sua vez as ofereceu em fases a investidores no mercado de capitais – o lote mais recente foi vendido em 2012. Hoje, 20,5% das ações da companhia ainda pertencem ao banco.
A quebra do monopólio da empresa sobre o serviço postal também se deu em fases e só foi concluída em 2007, sete anos após o início da abertura de capital. Até julho de 2010, a Deutsche Post também era isento de pagar imposto sobre valor agregado sobre o serviço postal, benefício encerrado após críticas de concorrentes de outros países e da Comissão Europeia.
A transição lenta, que manteve um grau de proteção estatal à companhia, foi importante para ela harmonizar os serviços com os territórios da extinta RDA e buscar lucro nessa fase inicial.
A Deutsche Post comprou em 2002 a empresa americana de entregas expressas DHL, que hoje é uma das maiores companhias de logística do mundo, com cerca de 570 mil empregados em mais de 220 países e receita de 66 bilhões de euros (R$ 402 bilhões) em 2020.
A multinacional, que hoje se chama Deutsche Post DHL Group, é sediada em Bonn, Alemanha, mas a maior parte das ações pertence a fundos de investimento sediados em outros países.
Críticas dos sindicatos
O processo de privatização dos correios da Alemanha não foi unânime e também enfrentou a resistência dos sindicatos, que temiam impacto negativo nas condições de trabalho. Um dos sindicatos de empregados da companhia, o DPVKOM, afirmou em nota à DW Brasil ter defendido que a empresa continuasse pública, mas eficiente e economicamente viável.
Segundo o DPVKOM, que ajudou a organizar uma greve contra a privatização em 1995, a transformação dos correios numa empresa privada piorou as condições de trabalho, com aumento da carga horária, contratos de trabalho de meio expediente e salários diferentes para funcionários que desempenham a mesma função.
No Brasil, a federação sindical dos funcionários dos Correios também é contra a privatização da estatal e está em campanha para os deputados rejeitarem o texto em debate na Câmara.
Da mesma forma, a população brasileira é majoritariamente contra a privatização dos Correios. Segundo pesquisa PoderData realizada de 1º a 3 de março de 2021, 52% são contra a venda da estatal, e 29% apoiam. Outros 19% não souberam responder.
A defesa da venda dos Correios varia conforme a avaliação do respondente sobre Bolsonaro. Entre os que consideram o governo do presidente ótimo ou bom, 51% são a favor da privatização. Já entre os que o avaliam como ruim ou péssimo, apenas 18% defendem a venda da estatal.
Situação dos Correios no Brasil
A venda dos Correios à iniciativa privada começou a ser discutida em 2017, na gestão Michel Temer, tendo como pano de fundo a transformação do setor, com redução do número de cartas enviadas, mercado no qual a empresa detém monopólio, e alta na entrega de pacotes, aberta à livre concorrência.
O debate sobre a privatização também ganhou força com seguidos escândalos de corrupção e mau gerenciamento na companhia e no fundo de pensão de seus funcionários. A estatal teve prejuízo de R$ 2,1 bilhões em 2015 e de R$ 1,5 bilhão em 2016, e voltou a ter lucro nos anos seguintes: R$ 667 milhões em 2017, R$ 161 milhões em 2018, R$ 102 milhões em 2019 e R$ 1,5 bilhão em 2020.
Nos últimos anos, a empresa vem passando por um processo de enxugamento, que inclui o fechamento de agências e a redução do número de funcionários.