Internacional
Investigação revela operações de ao menos 35 líderes mundiais em paraísos fiscais
As revelações feitas neste domingo envolvem mais de 11,9 milhões de registros de 14 entidades de serviços financeiros
Uma investigação global capitaneada por mais de 140 veículos jornalísticos de 117 países começou a revelar neste domingo (3) a existência de contas e empresas offshore em paraísos fiscais relacionadas a 35 líderes e ex-líderes mundiais, além de figuras ligadas a eles e centenas de funcionários públicos e investidores bilionários.
Criado fora do país de origem do proprietário, esse tipo de atividade financeira não é ilegal, mas pode ser usado para evitar o pagamento de impostos, esconder a real identidade do proprietário e facilitar lavagem de dinheiro para atividades ilícitas.
Apelidada de Pandora Papers, em referência ao mito grego da caixa que continha todos os males da humanidade, a investigação foi liderada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês). O grupo é o mesmo que, em 2016, revelou caso de nome semelhante, o Panama Papers, no qual um escritório de advocacia panamenho ajudou clientes a lavar dinheiro, escapar de sanções e sonegar impostos.
As revelações feitas neste domingo envolvem mais de 11,9 milhões de registros de 14 entidades de serviços financeiros que operam em países e territórios como Suíça, Singapura, Chipre, Belize e Ilhas Virgens Britânicas, no Caribe -é comum que contas offshore sejam abertas em paraísos fiscais, locais que cobram impostos mais baixos ou oferecem isenção fiscal.
As primeiras informações em âmbito internacional têm como protagonistas, entre outros, o presidente da Rússia, Vladimir Putin; o rei Abdullah, da Jordânia; o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, e os latino-americanos Sebastián Piñera, presidente do Chile, e Guillermo Lasso, chefe de Estado do Equador.
Em relação ao líder russo, reportagens publicadas pelo jornal americano The Washington Post, um dos veículos que compõem o grupo da investigação, mostram que figuras próximas a Putin viram seus ativos crescerem “de maneira exorbitante” em finanças offshore após se aliarem a ele.
O principal nome é o de Svetlana Krivonogikh, 46, que teria mantido um relacionamento secreto com o presidente russo no início da década de 2000. A mulher, que não tem histórico de herança familiar, se tornou proprietária de um luxuoso apartamento em Mônaco, na França, pouco após dar à luz uma menina em 2003. Na época, o imóvel era avaliado em US$ 4,1 milhões (R$ 22 milhões, na cotação atual).
Não há comprovação de que a jovem, hoje com 18 anos, seja filha de Putin, ainda que o assunto seja especulado há anos pela mídia local. Documentos revisados pelo jornal americano mostram que os registros dela não listam um nome paterno, mas colocam como nome do meio Vladimirovna (filha de Vladimir).
Os documentos do Pandora Papers mostram ainda que Krivonogikh é proprietária de uma empresa de fachada nas Ilhas Virgens Britânicas, e que fez uso de uma empresa de serviços financeiros de Mônaco que trabalhou simultaneamente para amigos bilionários de Putin. Ela também possui participação em um banco russo administrado por apoiadores do líder do Kremlin, em uma estação de esqui, em uma conta bancária na Suíça e imóveis em São Petersburgo.
Já em relação ao rei da Jordânia, Abdullah, documentos obtidos pelo consórcio de veículos e analisados pelo Washington Post mostram que, usando uma extensa rede de contas offshore, o monarca empregou milhões de dólares em casas luxuosas nos Estados Unidos. Somente de 2014 a 2017, empresas associadas ao rei gastaram quase US$ 70 milhões (R$ 375 milhões) em três casas no sul da Califórnia.
Na capital americana, Washington, Abdullah gastou quase US$ 10 milhões (R$ 53 milhões) em condomínios de luxo com vistas expansivas do rio Potomac, em Georgetown. Ele também adquiriu pelo menos três residências multimilionárias em Londres, no Reino Unido. No total, o rei gastou mais de US$ 106 milhões (R$ 568 milhões) em propriedades que são ligadas a empresas de fachada.
O montante surpreende, em especial, pela situação socioeconômica da Jordânia, um dos países mais pobres do Oriente Médio. Diferente de muitos vizinhos, a nação não tem reservas significativas de petróleo e gás, por exemplo, e sobrevive, em grande parte, com bilhões de dólares injetados por ajuda internacional.
Segundo informações do Washington Post, o país recebeu US$ 1,5 bilhão (R$ 8 bilhões) apenas dos Estados Unidos no ano passado, tornando-se o terceiro maior beneficiário da ajuda externa americana, atrás apenas de Israel e Afeganistão.
Os documentos mostram que Abdullah passou anos montando uma rede de pelo menos 36 empresas de fachada, trusts -entidade na qual a identidade do real proprietário das contas e empresas fica resguardada, já que em todos os papéis de movimentação financeira aparece o nome do “trust”- com a ajuda de contadores e advogados em locais como Suíça, Panamá e Ilhas Virgens Britânicas.
“Esses sistemas offshore não permitem apenas que fraudadores fiscais evitem pagar sua parte justa nos impostos. Eles minam o tecido de uma boa sociedade”, disse ao jornal americano Sherine Ebadi, ex-oficial do FBI, a polícia federal americana, que atuou como agente principal em dezenas de casos de crimes financeiros.
O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, de acordo com informações do britânico The Guardian, transferiu, durante a campanha presidencial de 2019, sua participação de 25% em uma empresa offshore para um amigo próximo que agora trabalha como seu principal conselheiro. Zelenski foi eleito como um outsider com a promessa de erradicar a corrupção do país.
Guillermo Lasso, ex-banqueiro e atual presidente do Equador, por sua vez, chegou a ter relações com 14 empresas offshore, mas passou a desfazer os vínculos quando uma lei foi aprovada no país para proibir candidatos a Presidência de serem beneficiários de empresas em paraísos fiscais. As informações foram publicadas pelo jornal El Universo.
Já o chileno Sebastián Piñera teria selado, em 2010, nas Ilhas Virgens Britânicas, a venda de sua parte em uma mineradora para o empresário Carlos Alberto Délano, investigado por sonegação fiscal, de acordo com informações do Centro de Investigação Jornalística do Chile, também membro do consórcio investigativo.
A venda foi dividida em três pagamentos milionários, sendo que o último dependia de uma decisão diretamente atrelada ao governo de Piñera, então em seu primeiro mandato: o impedimento de que uma área de proteção ambiental fosse criada na área da mineradora. A reserva ambiental não foi criada, e, até hoje, o projeto de mineração é criticado por ambientalistas.
Outros nomes envolvidos em finanças offshore são Luis Abinader, presidente da República Dominicana; o primeiro-ministro da Costa do Marfim, Patrick Achi; o premiê da República Tcheca, Andrej Babis; o presidente de Montenegro, Milo Djukanovic; o presidente do Quênia, Uruhu Kenyatta; o ex-chefe do Executivo de Hong Kong C.Y. Leung; o premiê dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed bin Rashid al-Maktoum, e a ex-ministra do Sri Lanka, Nirupama Rajapaksa.
Além das revelações internacionais, o Pandora Papers trouxe também informações que envolvem nomes importantes da política brasileira e do governo de Jair Bolsonaro. Um deles é o ministro da Economia, Paulo Guedes. De acordo com documentos analisados pela revista piauí que também participa da investigação, o ministro abriu, em 2014, uma conta offshore nas Ilhas Virgens Britânicas em que depositou US$ 9,55 milhões (R$ 23 milhões na época).
O Código de Conduta da Alta Administração Federal proíbe funcionários da cúpula do governo de manter aplicações financeiras que possam ser afetadas por políticas governamentais. Após Guedes assumir a pasta de Economia, em 2019, a Comissão de Ética Pública, porém, julgou que o caso não configurava conflito de interesse. Além do brasileiro, os chefes dos ministérios da Economia de Gana, Cazaquistão e Paquistão também possuem recursos em paraísos fiscais, segundo informações da revista.
O presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, também consta nos documentos do Pandora Papers como dono de uma offshore no Panamá, outro paraíso fiscal.
Ainda em relação ao Brasil, a investigação revelou que proprietários de algumas das maiores empresas brasileiras têm contas offshore, de acordo com informações do site Metrópoles.
Entre os nomes, estão os donos do plano de saúde Prevent Senior -Andréa, Eduardo e Fernando Parrillo. A empresa é investigada na CPI da Covid após documentos mostrarem que pacientes do plano foram usados, sem consentimento, como cobaias para estudos com remédios contra o coronavírus, e também é acusada de fraudar atestados de óbito.
A Agência Pública mostrou que empresários que apoiam Bolsonaro e hoje são investigados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no inquérito das fake news também possuem contas em paraísos fiscais. Os proprietários das contas offshore são Marcos Bellizia e Otávio Fakhoury, este último presidente do PTB paulista.