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Segurança Pública

A administração militar e seus agentes

A visão do militar a respeito de uma ordem recebida, quando comprada com a de um servidor civil, é muito diferente

RESUMO: O presente trabalho tem como foco a discussão sobre os obstáculos enfrentados pelos agentes administrativos militares no exercício de suas funções de gestão. O objetivo é demonstrar a grande dificuldade na condução das diversas tarefas inerentes às atividades administrativas atendendo, simultaneamente, às demandas dos escalões e autoridades superiores e a legislação pertinente. Não há como olvidar do debate sobre o potencial surgimento da relação paradoxal entre o cumprimento da missão, como valor fundamental da carreira militar, e a estrita obediência das normas positivadas do direito administrativo e princípios norteadores da Administração Pública. Serão estudadas as particularidades da formação castrense, a hierarquia, a disciplina e os riscos inerentes às funções administrativas que sujeitam os agentes militares. O método mais adequado para o desenvolvimento do presente artigo é o descritivo com a utilização de pesquisas bibliográficas em livros e artigos científicos. O tema central enaltace a discussão sobre os obstáculos enfrentados pelos militares na gestão administrativa e a necessidade de temperamento no processo e julgamento de possíveis irregularidades, reconhecendo o conflito entre o cumprimento da missão e a obediência à legislação dentro do escopo da vida castrense.

Palavras-chave: Gestão Administrativa. Agente Administrativo Militar. Hierarquia e Disciplina.


NTRODUÇÃO

O presente trabalho busca ambientar o leitor no universo da vida castrense, em especial das peculiaridades militares, seus valores e desafios de gestão da coisa pública. A problemática visa demonstrar os dilemas enfrentados pelos agentes administrativos militares, nas instituições afins, sejam as Forças Armadas ou as Forças Auxiliares, quando do cumprimento de suas diversas missões, operacionais e de meio.

A carreira militar impõe uma formação diferenciada, com foco em valores, por vezes, não percebidos na sua inteireza pelo público em geral. Daí a necessidade de enaltecimento desses preceitos e a importância do seu entendimento para a obtenção de uma visão mais consentânea na valoração das condutas dos gestores administrativos militares.

As apurações de irregularidades, tanto administrativas quanto criminais, não prescindem de um exercício axiológico peculiar, sopesando os valores, necessidades, e a própria formação profissional do indivíduo que se propõe a seguir a carreira das armas e, cumulativamente com as missões operacionais, exerce cargo ou função administrativa.

A fim de proporcionar um melhor entendimento sobre o assunto, o artigo inicia a discussão com o estudo das peculiaridades das atividades militares e os valores fundamentais da carreira e de suas instituições, que são a hierarquia e a disciplina. Nesse tópico, será explorada a importância da obediência às ordens a aos superiores hierárquicos, bem como a imprescindibilidade da transmissão e perpetuação desses valores.

Na sequência, serão estudadas as especificidades dos agentes administrativos militares e os obstáculos enfrentados por essa categoria. O objetivo do trabalho exige uma discussão sobre a influência dos valores militares nas decisões de gestão administrativa. Portanto, em razão da peculiar situação desses gestores, abordar-se-ão os potenciais ilícitos e a necessidade de mitigação no manejo do processo e julgamento a cargo das autoridades responsáveis.

O artigo segue trazendo uma pequena demonstração jurisprudencial em que fica consignada a importância dispensada pelos tribunais pátrios aos valores militares, em especial, os princípios da hierarquia e disciplina, reforçando o entendimento da essencialidade do seu respeito e consideração para a existência das instituições e a manutenção de sua plena operacionalidade. A matéria é digna, inclusive, de previsão constitucional, ilustrando a grande importância dos preceitos e, como não poderia ser de outra forma, a sua forte influência na formação dos integrantes das Forças Armadas e Forças Auxiliares.

A existência de uma estrutura hierárquica rígida e o culto dispensado à disciplina conduzem ao efeito de recrudescimento do espírito de grupo, que eleva, sobremaneira, a relação de confiança entre autoridades militares superiores, pares e subordinados no dia a dia dos quartéis e unidades congêneres. Logo, dentro de um escopo jurídico-administrativo, a fim de atingir uma otimização no processo e julgamento das irregularidades perpetradas por agentes administrativos militares, justifica-se adentrar na discussão sobre o princípio da boa-fé e da confiança, cuja importância é merecedora de destaque pelos operadores do direito, motivo pelo qual é abordada no tópico sequente.

Por fim, o estuda enfrenta a problemática do potencial surgimento de um conflito que pode ser experienciado pelos gestores militares em razão da formação e particularidades da caserna. Essa relação paradoxal envolve um potencial embate, durante o exercício das funções administrativas, entre o forte sentimento de cumprimento da missão, que é um dos motes principais da carreira das armas, em face da fiel e reta obediência à densa legislação administrativa, incrementada pelas orientações dos diversos órgãos de controle externo e interno, compondo um universo complexo e excessivamente burocrático.

Logo, o artigo intenta trazer à luz os obstáculos da administração pública militar vivenciados pelos seus respectivos gestores que, em razão dos valores castrenses e das peculiaridades da carreira, podem exercer forte influência nas tomadas de decisão. A confusão entre a forma de desempenhar atividade eminentemente bélica e a gestão administrativa da coisa pública pode redundar em cometimentos de irregularidades graves, no campo disciplinar, civil ou mesmo penal. Daí a justificativa para a ponderação de todos fatores ora elencados no referido processo e julgamento.

2 A ATIVIDADE MILITAR E OS PRECEITOS DA HIERARQUIA E DISCIPLINA

Este tópico traz uma explanação sobre as peculiaridades da carreira militar, em especial os valores da hierarquia e da disciplina. A importância dessa abordagem inicial gravita na necessidade de expor as especificidades castrenses, permitindo um maior entendimento sobre a exegese do direito desenvolvida nos fóruns competentes. A presente análise pode ser aplicada no âmbito das Forças Armadas e, com as devidas e necessárias adaptações, estendidas para as Forças Auxiliares, constituídas pelas polícias militares e corpos de bombeiros militares.

A palavra militar denota a qualidade de um indivíduo que segue a carreira das armas, integrando uma das Forças Singulares ou Forças Auxiliares. A disciplina cultuada nesse meio exige uma submissão quase litúrgica à ordem, constituindo um importante valor transmitido ao soldado, desde o início de sua formação. O período de convívio nos quartéis torna hábito o respeito à disciplina e à hierarquia. A carreira incute nos indivíduos pensamentos essenciais ao cumprimento dos deveres inerentes à profissão, tornando-se o fundamento uma categoria inteira.

O poder dos valores, entre os quais a ética, a moral e a honra profissional, tornam-se extremamente fortes e arraigados em cada integrante das instituições militares, sendo sua violação merecedora de uma resposta sancionatória. O cumprimento da missão converte-se em uma verdadeira questão de honra, e esta ideia é amplamente transmitida como forma de perpetuar as tradições e o culto aos expoentes militares. Na lição de Rudolf von Jhering, os preceitos castrenses acabam por configurar uma lei não escrita, ancorada em valores preservados há séculos.[2]

Frisa-se a importância e o efeito dos valores desenvolvidos por determinados grupos sobre seus integrantes. Pode-se dizer que é exatamente o que acontece na carreira militar. O respeito à honra, à disciplina, às autoridades, ao cumprimento das leis, das ordens superiores e das missões constituem axiomas indispensáveis. Constata-se que qualquer desvio de conduta, por menor que seja, poderá desencadear uma forte repressão, seja no âmbito disciplinar ou criminal, a depender de sua gravidade.

Os exércitos, desde seu surgimento, não olvidam da disciplina e hierarquia. O treinamento árduo e a capacitação para operar em condições adversas e sobre intensa pressão, levam o indivíduo ao extremo de sua condição física e psicológica, sendo essencial o autocontrole para a manutenção da operacionalidade. Necessária se faz a reta obediência às ordens superiores, pois, do contrário, o caos se tornaria inevitável, levando, inexoravelmente, à derrota no campo de batalha. A importância dos preceitos expostos é constatada na lição de Jorge Alberto Romeiro:

Sendo a disciplina a viga mestra das Forças Armadas, em alguns crimes militares a circunstância de defrontarem-se superiores e inferiores, como autores e ofendidos, assume grande importância, não só para uma especial tipificação deles, como para a cominação de penas mais eficazes, tudo em resguardo dos princípios da hierarquia militar.[3]

As Forças Armadas estão conceituadas no art. 2º da Lei nº 6.880/1980, também conhecida como Estatuto dos Militares, destacando-se a menção ao dever de respeito hierárquico e disciplinar, pilares básicos das instituições militares:

Art. 2º – As Forças Armadas, essenciais à política de segurança nacional, são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, e destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. São instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.[4]

Quanto à definição do que seja a carreira das armas, esta é entendida como a sequência ascensional do militar desde as graduações mais baixas até os altos postos do oficialato. Na lição de Jorge César de Assis, os militares exercem um labor diferenciado, com deveres específicos e tratamento peculiar:

Os militares possuem direitos e prerrogativas que a imensa maioria dos brasileiros não têm, representam e exercitam a força, mantêm a lei e a ordem, sendo necessário, portanto, que a apuração de suas faltas seja feita sempre com o resguardo da Administração Militar a que os faltosos pertençam, Administração esta responsável pela missão de bem-estar da coletividade a que todos devem servir.[5]

A opção pela vida castrense com o ingresso em uma atividade diferenciada exige muito empenho e dedicação. A legislação especial é rígida, tanto para as transgressões disciplinares como para os crimes militares. Ademais, o militar não está dispensado das normas proibitivas ordinárias, pois, por ocasião de sua violação, haverá impacto relevante na carreira, ensejando um evento que redunda em dupla cobrança. Isto posto, há que se admitir uma constante vigília e necessidade de retidão no comportamento do indivíduo, dentro e fora dos quartéis.

A ascensão na carreira leva ao incremento proporcional de autoridade e consequente aumento de responsabilidade. Há uma verdadeira ação de filtragem para que o indivíduo possa demonstrar certos comportamentos que o habilitem a concorrer às funções mais elevadas, todas preenchidas através de rigorosos critérios de seleção. A peneira é muito rigorosa demandando uma trajetória de vida ilibada, bem como atributos profissionais e afetivos muito peculiares que, não raras vezes, podem conduzir a um certo isolamento social e familiar, denotando um sacrifício silencioso, digno de reconhecimento.

Ao discorrer sobre atributos pessoais impende destacar a liderança, deveras cultuada e trabalhada na formação castrense. Não se pode olvidar de sua essencialidade na construção de um perfil de comando. Na lição de Krause:

Liderança pode ser definida como o desejo de controlar eventos, a sabedoria de indicar uma rota a ser seguida e o poder de fazer com que uma ação seja realizada, usando cooperativamente as capacidades e habilidades de outras pessoas. Os objetivos e os requisitos de uma liderança forte e efetiva são hoje os mesmos de há 2.500 anos, quando viveram Sun Tzu e Confúcio.[6]

A preparação, formação e aperfeiçoamento com vistas ao atingimento do ápice da carreira requer muitos anos. A estrutura piramidal de organização das instituições militares impõe uma intensa e vigiada subordinação às normas e aos superiores hierárquicos.

A formação de praças e oficiais possui um rito peculiar. Ao ingressarem na vida castrense é necessário passar por uma preparação básica, objetivando a internalização de preceitos éticos e morais indispensáveis ao desempenho das atividades afins. Homens e mulheres são reunidos em um determinado ambiente de convívio, tendo contato com armas, munições, equipamentos bélicos e exercícios militares. É operada uma mudança radical em suas vidas através da incrementação de conhecimentos específicos, valores e comportamentos essenciais ao exercício funcional desejado.

Dentro dessa ótica de aprendizagem, o poder disciplinar desponta como fator primordial e preponderante. Os recém chegados tendem a mostrar uma relativa alienação, muitas vezes em razão de informações confusas e expectativas irreais sobre o dia a dia dentro dos quartéis. Logo, a intensificação da disciplina busca desenvolver a aptidão do trabalho em equipe, aprimorando o espírito de grupo e enaltecendo o companheirismo, além de promover um efeito sinérgico para a otimização de resultados, a exemplo do exibido nas manobras das legiões romanas que atuavam como blocos coesos, obedecendo aos comandos de forma marcial e uniforme, difíceis de serem debeladas, resultante de um rígido e intenso treinamento.

Em síntese, a hierarquia e a disciplina militares são princípios constitucionais fundamentais e imprescindíveis às organizações de defesa nacional. Abarcam valores inestimáveis no meio castrense, como o patriotismo, a lealdade, a honra, a honestidade, a coragem, o profissionalismo, o respeito às autoridades e instituições, entre outros. A carreira militar delega aos seus integrantes o dever de guarda da pátria, não prescindindo de um poder de controle mais rígido do que o dispensado às organizações civis. A disciplina militar pode ser considerada como qualificada e detentora de institutos próprios. Dos militares serão cobrados o respeito às autoridades, deveres e serviços atinentes à caserna, com maior intensidade do que no serviço público ordinário.[7]

3 AGENTES ADMINISTRATIVOS MILITARES E O TRATAMENTO DE SEUS ILÍCITOS

A emenda constitucional nº 18 de 1998 trouxe relevante alteração para o regime jurídico dos militares que passaram a compor uma categoria diferenciada, não mais sendo tratados como servidores públicos. A atual sistematização constitucional prevê a existência do agente público militar, ou simplesmente, agente militar. Portanto, hodiernamente, as pessoas que desempenham, de forma permanente ou temporária, atividades de cunho militar, no âmbito estadual ou federal, percebendo subsídios como forma de retribuição, são definidas como agentes militares integrantes das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), ou pertencentes aos quadros das Forças Auxiliares (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares) dos Estados e do Distrito Federal.[8]

Entre os agentes militares há diferença na situação em que podem figurar, definida como atividade ou inatividade. A condição de estar ou não em efetivo exercício de seu posto ou graduação determina qual o status do indivíduo. A atividade está relacionada ao agente militar que se encontra efetivamente incorporado às fileiras da tropa no efetivo exercício do serviço. A contrário sensu, a inatividade representa o estado ou situação do indivíduo afastado, temporária ou definitivamente, do serviço ativo da força respectiva.[9]

O entendimento mais profundo das especificidades do agente militar não dispensa uma análise diferenciada sobre as condutas supostamente ilícitas quando no exercício de suas atividades, pois, movido por sentimentos fortemente influenciados por valores peculiares, pode surgir a propensão de cometer excessos acreditando estar cumprindo a missão. Exsurge a necessidade de um tratamento temperado, conduzido por autoridades com conhecimento jurídico e militar, a fim de promover uma apuração condizente com os anseios das instituições, de forma imediata, e satisfazendo às necessidades da sociedade, mediatamente.

O grande dilema enfrentado por essa categoria de servidores, principalmente quando no desempenho de funções administrativas, está representado no seguinte paradoxo: cumprimento da missão x cumprimento da legislação. Há que se verificar a finalidade da conduta do agente, analisando a existência da intenção prejudicial em confronto com a prevalência do desejo de vencer os inúmeros obstáculos na gestão das unidades militares.

A complexidade da Administração Pública nos dias atuais eleva sobremaneira as dificuldades enfrentadas pelos agentes administrativos castrenses, exigindo um tratamento que considere as peculiaridades das atividades desenvolvidas nos quartéis. Fora de qualquer dúvida, em consideração ao princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, esses fatores, representados pelo paradoxo exposto alhures, por exercerem relevante influência na volição, não podem ser excluídos quando da apuração de responsabilidade nos processos administrativos disciplinares e/ou penais, merecendo a atenção redobrada dos operadores do direito e dos julgadores, sob pena de a decisão aceitar uma narrativa distante da realidade dos quartéis.

As apurações de supostas irregularidades administrativas, disciplinares ou penais, são conduzidas por autoridades militares encarregadas de sindicâncias e inquéritos policias. A respeito dos últimos, há o acompanhamento do parquet militar e do juízo competente. O militar, quando no exercício de função administrativa, em razão da formação que lhe é dispensada e os valores éticos e morais que adquire, tende a ser conduzido através do caminho da tentativa imoderada de cumprimento da missão. Tal perspectiva pode dificultar a busca de soluções alicerçadas em fundamentos mais técnicos com vistas ao enfrentamento dos inúmeros desafios de gestão.

A latência do embate entre os valores militares e a legalidade dos procedimentos das atividades medianeiras provocam distorções nas avaliações e podem derivar em condutas irregulares ou ilegais, com o condão de redundar em penalizações disciplinares, civis e criminais, ainda que cumulativas. A crença de que os meios justificam os fins, enaltecendo o mantra militar do cumprimento da missão, pode coroar de êxito os agentes responsáveis, porém, o risco a que se sujeitam, indubitavelmente, não compensa o ansiado proveito. As sanções são demasiado duras, por vezes, determinando a reclusão e consequente exclusão do militar da instituição.

Não há mérito na assumpção de perigos desarrazoados quando da administração da coisa pública, mormente em tempos de paz. A resposta dos órgãos de controle administrativo e da Justiça Militar é inflexível, cobrando um preço demasiadamente alto para os incautos. A grande questão está em definir qual o limite funcional do agente administrativo, buscando uma solução razoável para o paradoxo apontado. A ideia de cumprir a missão mesmo com o sacrifício da própria vida não pode ser estendida para a Administração Pública, entendida esta como atividades meramente de gestão, pois, invariavelmente, trará mais reveses do que êxito. Os valores cultuados para a atividade bélica não devem ser confundidos com as atividades exclusivamente administrativas.

Ademais, os diversos atos de gestão, como os procedimentos de aquisição, estoque, distribuição, etc., quando postos em prática de forma confusa e negligente, desbordando a legislação, agrava a dificuldade de controle, incentivando desvios de conduta nocivos à instituição, plenos de intenções deletérias contrapostos aos interesses institucionais. As irregularidades, impropriedades e ilegalidades, encontram nesse cenário um ambiente extremamente favorável, vulnerando, não apenas o Ordenador de Despesas e os responsáveis diretos, mas, todos os agentes componentes do quadro administrativo, cada qual dentro de suas funções. O problema ganha complexidade diretamente proporcional à quantidade de recursos públicos que dada Unidade Administrativa gerencia.

Em síntese, os ilícitos administrativos têm sua apuração no âmbito da respectiva Força, conduzida por seus próprios integrantes, eleitos a critério das autoridades competentes. Os crimes militares são apurados via instauração de Inquérito Policial Militar, presidido por uma autoridade militar que, após concluído, deve ser remetido ao Ministério Público Militar, no caso das Forças Armadas, ou ao parquet responsável pela condução do processo nos respectivos entes estaduais e distrital. Evidente a intervenção de militares em ambos os procedimentos, seja presidindo sindicâncias ou inquéritos, o que se justifica pela necessidade de trazer uma visão da vivência castrense para a valoração das condutas investigadas, considerando-se os aspectos específicos da carreira militar.

Na sequência do estudo das peculiaridades dos agentes administrativos militares e os riscos inerentes ao exercício de suas funções, dentro de um escopo da caserna, segue a discussão sobre a hierarquia e a disciplina dentro do entendimento contemporâneo assente nos tribunais brasileiros.

4 O QUE DIZEM OS TRIBUNAIS PÁTRIOS SOBRE OS VALORES CASTRENSES DA DISCIPLINA E HIERARQUIA

Doutrina e jurisprudência, por vezes, são chamadas a enfrentar dissensos sobre a importância da hierarquia e disciplina nas instituições militares. Nossos tribunais, em inúmeras ocasiões, diferenciam o tratamento dispensado aos militares, normalmente mais gravoso, no tocante às apurações de ilícitos. Os princípios castrenses são preservados com elevado afinco, denotando uma clara demonstração da sua importância para a manutenção das Forças Armadas e Forças Auxiliares. O Tribunal de Justiça do Amazonas, em decisão desfavorável a um policial militar por crime de desrespeito a superior hierárquico, denega habeas corpus, verbis:

TJ-AM – 40025179220188040000 AM 4002517-92.2018.8.04.0000 (TJ-AM). Data de publicação: 30/07/2018

EMENTA: HABEAS CORPUS CRIME MILITAR – DESRESPEITO A SUPERIOR IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO PREVENTIVA CONDIÇÕES DESFAVORÁVEIS AO PACIENTE. – A previsão constitucional fundamenta a decretação da prisão preventiva prevista no art 255, e, que prevê a exigência da manutenção das normas e princípios de hierarquia e disciplina militares, possibilitando a prisão preventiva quando estes ficarem ameaçados ou atingidos com a liberdade do indiciado ou acusado. Um policial militar que não segue o regulamento, que não quer receber ordens, que é indiferente aos princípios de hierarquia e disciplina, demonstra conduta incompatível com a função que exerce, de modo que sua liberdade ameaça sim aqueles princípios […], sendo dever do Estado adotar a medida cautelar cabível, com o intuito de garantir a preservação do princípio da hierarquia e disciplina militar. – DENEGAÇÃO DA ORDEM.[10]

A importância da manutenção da disciplina militar é exaltada no julgado, pois, do contrário, colocaria em risco a estabilidade dos pilares fundamentais das forças policiais estaduais, criando um perigoso precedente para o incremento da indisciplina e descontrole da tropa. A confiabilidade na operacionalidade policial militar está intrinsicamente relacionada ao respeito à hierarquia, que se mostra através do alto grau de presteza no cumprimento das ordens superiores. O Superior Tribunal Militar, como não poderia ser diferente, já enfrentou o assunto no âmbito das Forças Armadas, verbis:

STM – Apelação APL 00000831020167110211 (STM). Jurisprudência – Data de publicação: 06/08/2018

EMENTA: APELAÇÃO. MPM. DESACATO A SUPERIOR E DESOBEDIÊNCIA. ARTS. 298 E 301 DO CPM. MÉRITO. […] CARACTERIZAÇÃO DO DELITO DE DESOBEDIÊNCIA. PRÁTICA DO DELITO DE DESACATO A SUPERIOR. DEPRIMIR A AUTORIDADE. DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS CASTRENSES BASILARES. SEGUNDO ACUSADO. DÚVIDA RAZOÁVEL. IN DUBIO PRO REO. MAIORIA. […] 5. Esta Justiça especializada encontra-se pautada na hierarquia e na disciplina. Reconhecer certas condutas ofensivas como mera transgressão disciplinar denotaria despir-se dos princípios militares, abrindo-se odioso precedente para outros comportamentos do mesmo jaez. 6. Ainda que inexistente a vontade livre e consciente de ofender a dignidade ou decoro do Ofendido, o tipo penal também se consuma quando a expressão utilizada procura deprimir a sua autoridade. O crime de desacato caracteriza grave desrespeito aos princípios castrenses basilares, quais sejam: hierarquia e disciplina […].[11]

O fórum máximo da justiça especial federal reforça o entendimento anterior, atribuindo relevantíssimo valor aos princípios militares da hierarquia e disciplina. A intolerância ao seu desrespeito, invariavelmente, encontrará forte aprovação no meio militar, ensejando graves punições aos transgressores, seja na esfera administrativa disciplinar ou penal.

Por derradeiro, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento de habeas corpus da lavra do ministro Luiz Fux, afasta a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância no âmbito da Justiça Militar, verbis:

STF Habeas Corpus HC 108512 (STF).  Órgão julgador: Primeira Turma. Relator(a): Min. LUIZ FUX. Julgamento: 04/10/2011. Publicação: 20/10/2011

Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. USO INDEVIDO DE UNIFORME MILITAR (CPM, ART. 172). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. 1. O princípio da insignificância não é aplicável no âmbito da Justiça Militar, sob pena de afronta à autoridade, hierarquia e disciplina, bens jurídicos cuja preservação é importante para o regular funcionamento das instituições militares. [..] 2. In casu, o paciente, recruta, foi preso em flagrante trajando uniforme de cabo da Marinha. 3. O crime descrito no art. 172 do Código Penal Militar é de mera conduta e visa à tutela de bens jurídicos importantes e necessários ao regular funcionamento das instituições militares autoridade, disciplina e hierarquia – pouco importando o cotejo da real intenção do agente com os requisitos de natureza objetiva subjacentes ao princípio da insignificância, a saber: (a) ofensividade mínima da conduta, (b) ausência de periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente e (c) a inexpressividade da lesão ao bem juridicamente protegido. 4. Ordem denegada, em consonância com o parecer ministerial.[12]

Logo, está massivamente positivado em nossos tribunais e na mais alta corte brasileira a necessidade de dispensar grande importância aos pilares institucionais afins, ora debatidos, nos julgados de ilícitos militares. A manutenção do regular funcionamento dessas instituições não pode olvidar do respeito a esses valores indispensáveis ao exercício da carreira das armas. Portanto, a narrativa conduz ao entendimento que justifica a natureza mais gravosa das sanções aplicadas, seja em atividades operacionais ou administrativas, merecendo maior reprovação a conduta ilícita de um militar, praça ou oficial, das Forças Armadas ou Forças Auxiliares.

O convívio intenso, respeito e consideração mútua, aliados aos valores institucionais e princípios norteadores da carreira militar, inexoravelmente, conduzem ao recrudescimento do sentimento de confiança e boa-fé entre os superiores e subordinados, merecendo atenção neste estudo para a melhor compreensão das relações intersubjetivas nos quartéis, que será objeto do próximo tópico.

5 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ E DA CONFIANÇA

Impende lembrar que além da relação hierárquica entre superiores e subordinados, a vivência na caserna enaltece a relação de boa-fé e confiança. O ordenamento jurídico, há tempos, tece discussões sobre o tema, elevando os preceitos a categoria de princípios. A questão ganha ainda mais relevância nas interações entre os agentes militares em razão dos valores cultuados já expostos.

O direito civil despende muita atenção ao princípio da boa-fé, revelando expressiva preocupação e reconhecimento nos negócios jurídicos, em especial as relações contratuais. Porém, dentro de uma visão holística, este princípio visa determinar um padrão ético mínimo aceitável em dado agrupamento humano e suas relações intersubjetivas. A imposição de condutas aceitáveis encontra relevante eco no ordenamento jurídico. O Superior Tribunal Militar já teve a oportunidade de debater e inserir em seus julgados a temática, conforme abaixo, verbis:

EMENTA: APELAÇÃO. USO DE DOCUMENTO FALSO. ARTS. 311 E 315 DO CPM. COMPROVAÇÃO DE ESCOLARIDADE PARA INGRESSO NOS QUADROS DAS FORÇAS ARMADAS AMPARADA EM DOCUMENTO FALSO. CRIME CONTRA AS INSTITUIÇÕES MILITARES. […] MÉRITO. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. DESPROVIMENTO DO RECURSO. CONDENAÇÃO MANTIDA. A definição do que vem a ser crime militar encontra previsão no art. 9º, e seus incisos, do CPM. […] A conduta perpetrada pela Apelante, ao apresentar documentos comprobatórios de escolaridade sabidamente falsos, com o objetivo de ingressar na carreira das Armas, feriu não só a boa-fé e a credibilidade, como também a hierarquia e a disciplina, pilares essenciais das Forças Armadas. […] Conduta perpetrada classificada como fato típico, antijurídico e culpável. Desprovido o apelo defensivo. Decisão unânime.

(STM – APL: 70005589320197000000, Relator: WILLIAM DE OLIVEIRA BARROS, Data de Julgamento: 28/05/2020, Data de Publicação: 10/06/2020).[13]

A análise subjetiva necessária à identificação e reconhecimento da boa-fé exige muita perspicácia dos operadores do direito. Plotar na conduta de determinado agente traços de moral, respeito, ética, confiança, lealdade ou qualquer outro aspecto que denote uma razão nobre em seu comportamento, demanda um exercício exegético interdisciplinar complexo. Porém, há tempos isso vem sendo desenvolvido pela jurisprudência, mesmo antes da positivação na legislação universal.

O Código de Defesa o Consumidor, Lei nº 8.078/90, remete à boa-fé objetiva como princípio orientador máximo que deve tomar assento nas relações de consumo. O artigo 4º, inciso III, traz expresso, entre outros, a necessidade de o códex viabilizar os princípios fundantes da ordem econômica, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Em seu artigo 51, inciso IV, o CDC prevê a nulidade de cláusulas contratuais muito gravosas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.

O Código Civil de 2002 também faz expressa menção à boa-fé conforme estampado em seu artigo 113, caputverbisArt. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. A boa-fé discutida é conhecida como objetiva, trazendo em seu bojo um esboço de conduta social condizente com determinado padrão ético eleito e aceito pela comunidade. Pode-se inferir que é imposto ao cidadão um comportamento considerado leal e honesto, ou pelo menos sua expectativa. O STJ, em várias oportunidades, enfrentou a questão da boa-fé objetiva, inclusive em sede penal através de julgamento de habeas corpus, rejeitando comportamento sinuoso da defesa, de acordo com o exemplo seguinte, verbis:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. [..] PROVA EMPRESTADA. UTILIZAÇÃO. CONCORDÂNCIA DA DEFESA TÉCNICA.SUBSEQUENTE INSURGÊNCIAVIOLAÇÃO DA BOA-FÉ OBJETIVA: PROIBIÇÃO DOVENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. PATENTE ILEGALIDADE. AUSÊNCIA. ORDEM NÃO CONHECIDA. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus[…] 2. Não há falar em reconhecimento de nulidade, decorrente da utilização de prova emprestada para a condenação penal, quando a própria defesa técnica com o seu emprego concordou. A relação processual é pautada pelo princípio da boa-fé objetiva, da qual deriva o subprincípio da vedação do venire contra factum proprium (proibição de comportamentos contraditórios). Assim, diante de um tal comportamento sinuoso, não dado é reconhecer-se a nulidade. 3. Ordem não conhecida.[14]

O argumento marcante desse julgamento é o afastamento da narrativa defensiva que contradiz, em um momento posterior, sua própria posição dentro do processo em clara violação à ética e, porque não dizer, infringindo regra de lealdade processual no embate jurídico.

Outro princípio merecedor de destaque é o da boa-fé subjetiva que também encontra guarida no ordenamento jurídico. Difere este do anterior por estar relacionado à consciência do indivíduo que acredita estar agindo conforme a legislação. A doutrina o entende como ação putativa, pois, a despeito do pensamento de correção da conduta, por engano escusável, o agente atua violando o ordenamento jurídico.

O comportamento dos litigantes não dispensa uma atuação processual proba e submissa aos ditames morais. Ainda sobre o assunto da ética e moral, o Tribunal de Justiça de Goiás, por ocasião do julgamento de um mandado de segurança, enfrentou o assunto, verbis:

MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. SOLDADO DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE GOIÁS. REPROVAÇÃO NO EXAME MÉDICO. NÃO ATINGIMENTO DA ESTATURA FÍSICA MÍNIMA. MANDADO DE SEGURANÇA ANTERIOR. DEFERIMENTO DE LIMINAR AUTORIZADORA DO PROSSEGUIMENTO NAS DEMAIS ETAPAS DO CERTAME. POSTERIOR DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA. […] A impetrante só permaneceu no cargo de soldado da Polícia Militar de dezembro de 2013 até outubro de 2016, devido a expedientes processuais que protagonizou, recursos sucessivos ao Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, que arrastaram por anos o trânsito em julgado do mandado de segurança por ela anteriormente impetrado. É dizer, não houve pela Administração qualquer demora a hipoteticamente persuadi-la à segurança de permanecer no serviço público. Dessa forma, a impetrante não pode agora socorrer-se da decorrência do tempo, causada por sua própria atuação judicial, para justificar a ilegal permanência na função militar, incoerência inconcebível segundo o princípio da boa-fé subjetiva. III – Segurança denegada.[15]

Esses são apenas alguns exemplos de decisões judicias que enfatizam a relevância jurídica do princípio da boa-fé que, obviamente, repercute no princípio da confiança. Daí a necessidade de debatê-lo para o atingimento de uma compreensão mais ampla dos seus efeitos sobre as interações entre os agentes militares e a repercussão dessas relações no campo do direito.

A etimologia a palavra confiança remete à credibilidade ou conceito positivo que se tem a respeito de alguém ou de algo; crédito, segurança[16]. A sociedade possui expectativas quanto ao comportamento de seus integrantes que estão relacionadas ao respeito às regras de convivência, possibilitando uma existência pacífica e harmoniosa. O direito não poderia descurar de sua tutela. A crença de que os integrantes de dado agrupamento humano se conduzirão dentro da moldura definida pelas normas sociais embasa o princípio da confiança, com óbvia e consequente repercussão em nossos tribunais.

O princípio da confiança deve reger as relações intersubjetivas para que a sociedade mantenha sua higidez e não se esfacele em conflitos. O direito, de forma ampla, trata da regulação das condutas humanas tutelando seus bens mais caros, tendo o ordenamento jurídico como componente essencial para a tomada de decisões. Este princípio fundamental está inserido nesse cenário que, para além de uma conotação marcadamente moral, por sua extrema importância, é açambarcado pela doutrina e jurisprudência[17].

O comportamento do indivíduo dentro da sociedade deve estar atrelado a uma limitação estabelecida pela expectativa de respeito mínimo às regras postas. De cada um é esperado dado comportamento minimamente adequado, sob pena de ameaça da própria existência humana. Portanto, o respeito às relações de confiança merece a tutela estatal por estarem umbilicalmente ligados à sobrevivência da sociedade. Os tribunais não ignoram essa máxima, conforme exemplificado na decisão seguinte do STF, verbis:

Ementa: Ato administrativo. Terras públicas estaduais. Concessão de domínio para fins de colonização. Área superior a dez mil hectares. Falta de autorização prévia do Senado Federal. Ofensa ao art. 156, § 2.º, da CF/1946, incidente à data dos negócios jurídicos translativos de domínio. Inconstitucionalidade reconhecida. Nulidade não pronunciada. Atos celebrados há 53 anos. Boa-fé e confiança legítima dos adquirentes de lotes. […] Aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima, como resultado da ponderação de valores constitucionais. Ação julgada improcedente, perante a singularidade do caso. Votos vencidos. Sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima, não podem ser anuladas, meio século depois […].[18]

A boa-fé e a confiança estão indissociavelmente ligadas, podendo-se concluir que são faces da mesma moeda, tratando-se de relações com relevância jurídica. Muito há que se argumentar sobre o assunto, porém, fugiria do objeto deste trabalho. A maior importância desses princípios é o impacto que exerce nas interações entre os agentes administrativos militares e seus respectivos superiores. A formação castrense potencializa os efeitos da boa-fé e da confiança, fazendo jus ao destaque. Argumentos de acusação e defesa não devem prescindir, no caso concreto, da ponderação dos princípios ora tratados.

Feito isto, passemos à discussão do embate entre a ideia do cumprimento da missão e o respeito à legislação que, não raras vezes, assume um caráter conflitante, conduzindo o agente a uma situação de dúvidas quanto à obediência à ordem superior ou o imperativo legal da reta observância da norma positivada administrativa. Ocasião em que é preciso ponderar os valores militares, a confiança e a boa-fé nas ordens e expectativas dos superiores hierárquicos face aos riscos inerentes a uma gestão temerária.

6 O RISCO DA RELAÇÃO PARADOXAL ENTRE A MISSÃO E A GESTÃO ADMINISTRATIVA

O objetivo da explanação sobre as peculiaridades castrenses, com destaque aos seus valores mais caros, é tentar trazer para o leitor um entendimento da dificuldade que o agente administrativo militar enfrenta na sua rotina diária. Em tempos de paz, as organizações militares mantêm suas condições de emprego através de atividades afins das mais diversas, demandando um aparato de gestão proporcional à grandeza de cada unidade administrativa autônoma.

A severa disciplina vivenciada dentro dos quartéis, episodicamente, tem o condão de obstaculizar uma visão mais técnica e imparcial de determinado procedimento administrativo, pois, os subordinados tendem a se sentirem compelidos a cumprir as ordens superiores, temendo represálias perpetradas através de uma conceituação baixa, causando atrasos nas promoções e dificuldades de transferência.

O militar é avaliado periodicamente através de uma análise de vários atributos, com destaque ao seu desempenho funcional. Cada instituição regula suas formas de conceituar seus integrantes. O Exército Brasileiro, exemplificativamente, mais recentemente, trata o assunto pela Portaria nº 174, do Departamento Geral de Pessoal, de 17 de agosto de 2017. Para o nosso estudo, vale destacar o artigo 8º, II, c), que dispõe da dedicação inserida nas Competências Básicas desse novel diploma, verbis: Art. 8º As Competências Básicas e seus descritores, para fins de avaliação, são: (…) II – Dedicação: (..) c) esforça-se no cumprimento das missões, dentro dos prazos e nas condições determinadas[19].

Fora de qualquer dúvida a importância dos valores militares na configuração de um ambiente de mútuo respeito e consideração, enaltecendo o espirito de grupo, a disciplina, o comprometimento. A imagem da autoridade militar inspira um forte sentimento de confiança nos subordinados, na condição de inferiores hierárquicos, que se sentem compelidos a prestar obediência quase litúrgica às ordens. Reside neste fato o incremento do risco de afetação de um julgamento mais isento por parte do agente militar na gestão administrativa. A sanha direcionada ao cumprimento da missão, somada ao respeito e consideração aos superiores hierárquicos, valores castrenses de relevância ímpar, pode conduzir à cogitação de desbordamento da legislação, resultado de uma visão distorcida da disciplina e hierarquia.

Uma das formas de prevenção dessa situação é a intensificação do treinamento e qualificação dos agentes com a disponibilização de cursos específicos e adequados, ministrados por pessoal reconhecidamente especializado. Faz-se necessário o intercâmbio de conhecimentos e experiências entre os diversos órgãos da Administração Pública, não se restringindo apenas aos componentes militares. A ampliação e a troca de informações entre as gestões de diferentes áreas, com o compartilhamento de métodos de administração da coisa pública, terá como resultado a incrementarão da capacidade técnica do quadro de pessoal castrense.

A elevação do nível de conhecimento é inversamente proporcional à insegurança que pode afetar o corpo de agentes da administração de dado órgão público, reduzindo a exposição aos riscos de tomadas de decisões equivocadas. Um funcionário bem instruído em sua área possui melhores condições e mais argumentos convincentes para, dentro do respeito requerido na vida da caserna, tecer criticar às ordens superiores potencialmente danosas aos fundamentos da Administração Pública.

Ademais, com fito de reduzir conflitos nas suas diversas unidades administrativas, as Forças Armadas e as Forças Auxiliares, considerando a formação peculiar e os valores cultuados por seus integrantes, devem estar atentas à eleição dos critérios de escolha de seus comandantes e ordenadores de despesas. A atenção deve se voltar para afastar os perfis muito autoritários que não admitam contrariedades, confundindo a condução de uma operação bélica com a administração de uma Organização Militar, agravando o paradoxo da missão versus legislação.

Hodiernamente, com o incremento do controle externo e a transparência dos atos administrativos, é franqueada mais visibilidade à sociedade das atividades-meio, intra corporis, elevando a possibilidade de responsabilização dos agentes, aumentando o risco de atentar contra a respeitabilidade das instituições militares frente a opinião pública. A formação dos ordenadores de despesas e dos gestores administrativos deve ser objeto de cuidadosa atenção para a prevenção do cometimento de ilícitos, além da busca pela otimização dos recursos públicos e consequente ganho de eficiência operacional.

Esse artigo visa ambientar o leitor sobre as peculiaridades da carreira militar e o exercício da função administrativa dentro da caserna, expondo seus valores mais relevantes que servirão de base para o melhor entendimento do manejo do direito militar, suas especificidades, bens jurídicos tutelados e, principalmente, compreender as diferenças em relação ao direito ordinário, apesar de ser deste uma parte especial, não devendo olvidar de seus fundamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo apresentado intentou construir um debate sobre a necessidade de ponderação no processo e julgamento de irregularidades cometidas na administração pública por gestores militares. O temperamento no tratamento desses episódios encontra justificação nas peculiaridades da carreira militar que impõem respeito severo aos valores castrenses, em especial a disciplina e a hierarquia.

A confiança mútua e a elevada consideração entre subordinados e superiores hierárquicos dão origem a um ambiente permeado pelo sentimento de forte obediências às ordens, elevado espirito de grupo e comprometimento com a missão. Requisitos estes merecedores de reconhecimento e culto dentro das Forças Singulares e Forças Auxiliares. A visão do profissional das armas está, por força de sua formação específica, voltada para a obtenção do êxito nas tarefas recebidas, cujo sucesso tem o significado de questão de honra, dever e patriotismo.

A visão do militar a respeito de uma ordem recebida, quando comprada com a de um servidor civil, é muito diferente em razão dos valores expostos neste trabalho, além do fato de as cobranças por resultados serem mais incisivas. Não é por outra razão que no tratamento dos variados procedimentos envolvendo ilícitos próprios dessas instituições há a presença de autoridades militares, inclusive na composição dos diversos tipos de conselhos especiais de justiça.

Impende reforçar a necessidade de capacitação profissional em gestão administrativa dos agentes militares destacados para o exercício dos cargos e funções afins. O conhecimento gera segurança e qualifica o assessoramento, prevenindo o surgimento de desvios de conduta e decisões equivocadas que podem culminar em sanções graves. A administração dos bens públicos merece lugar de destaque na atenção dispensada às unidades militares, mormente quando se vislumbra um potencial comportamento conflitivo exposto neste trabalho. Em tempos de paz, a missão deve ser cumprida dentro de um escopo de legalidade e legitimidade sob pena de reputar-se mal executada ou não concluída.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei Nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Estatuto dos Militares. Disponível em:<http//www.planalto.gov.br>. Acesso em: 26 jun. 2021;

FRADA, Manoel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2004. p. 26;

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JHERING, Rudolf von. A evolução do direito. Lisboa: José Bastos & C.A., 1963;

KRAUSE, Donald G. A força de um líder. São Paulo: Makron Books, 1999;

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MICHAELIS. On-line. São Paulo: Melhoramentos. Disponível em:< https://michaelis.uol.com.br/busca?id=n1eG>. Acesso em: 07 jul. 2021;

MINISTÉRIO DA DEFESA. EXÉRCITO BRASILEIRO. DEPARTAMENTOGERAL DO PESSOAL. Portaria nº 174-DGP, de 17 de agosto de 2017. Aprova as Instruções Reguladoras para o Sistema de Gestão do Desempenho do Pessoal Militar do Exército (EB30-IR-60.007). Disponível em: <http://daprom.dgp.eb.mil.br/phocadownload/Lesgislacao/Portaria%20N%20174%20-%20DGP%20de%2017%20AGO%202017.pdf >. Acesso em: 21 jul.2021;

ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1994;

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TJ-GO. MANDADO DE SEGURANÇA. MS: 02763030420168090000. Relator: Beatriz Figueiredo Franco, DJ: 19/04/2017, 3ª Câmara Cível. JusBrasil, 2017. Disponível em: < https://tj-go.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/934265452/mandado-de-seguranca-cf-lei-12016-2009-2763030420168090000>. Acesso em: 05 jul. 2021;

  1. NOTAS
  2. ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 143.
  3. BRASIL. Lei Nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Estatuto dos Militares. Disponível em:<http//www.planalto.gov.br>. Acesso em: 26 jun. 2021.
  4. ASSIS, Jorge César de. Curso de Direito Disciplinar Militar. Curitiba: Juruá, 2018. p. 216.
  5. KRAUSE, Donald G. A força de um líder. São Paulo: Makron Books, 1999. p. 45.
  6. MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua Processualidade. São Paulo: Editora de Direito, 1996. p. 24.
  7. GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 14 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 255.
  8. SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p.682.
  9. TJ-AM. HABEAS CORPUS: HC 40025179220188040000 AM 4002517-92.2018.8.04.0000. Relator: Aristóteles Lima Thury, DJ: 30/07/2018, Segunda Câmara Criminal. JusBrasil, 2018. Disponível em: <https://tj-am.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/606199239/40025179220188040000-am-4002517-9220188040000>. Acesso em: 26 jun. 2021.
  10. STM. APELAÇÃO: APL 00000831020167110211. Relator: Carlos Augusto de Sousa, DJ: 05/06/2018. JusBrasil, 2018. Disponível em: < https://stm.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/659977057/apelacao-apl-831020167110211>. Acesso em: 26 jun. 2021.
  11. STF. HABEAS CORPUS: HC 108512. Relator Luiz Fux, DJ: 04/10/2011. Jus Brasil, 2011. Disponível em:< https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20620303/habeas-corpus-hc-108512-ba-stf>. Acesso em: 26 jun. 2021.
  12. STM. APELAÇÃO: APL 70005589320197000000. Relator: William de Oliveira Barros, DJ: 28/05/2020. JusBrasil, 2020. Disponível em: < https://stm.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/869348666/apelacao-apl-70005589320197000000>. Acesso em: 26 jun. 2021.
  13. STJ. HABEAS CORPUS. HC: 143414 MS 2009/0146939-2. Relator: Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJ: 06/12/2012, Sexta Turma. JusBrasil, 2012. Disponível em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23021354/habeas-corpus-hc-143414-ms-2009-0146939-2-stj/inteiro-teor-23021355>. Acesso em: 03 jul. 2021.

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