Saúde
Reflexos da pandemia: diagnósticos e cirurgias de câncer de próstata têm queda
Após a morte do avô em decorrência de um câncer de próstata, o jornalista Rinaldo de Oliveira, de 58 anos, passou a fazer acompanhamento anual com um urologista
No ano passado, no entanto, por conta da pandemia do novo coronavírus, acabou adiando a ida ao médico.
“Evitei sair de casa durante vários meses por medo da Covid-19, não queria me expor. Mas em julho deste ano, comecei a sentir muita vontade de urinar, inclusive de madrugada. Acordava várias vezes para ir ao banheiro. Era algo bem incômodo e resolvi marcar uma consulta”, conta.
O médico, então, pediu uma série de exames e logo Oliveira recebeu a confirmação do temido diagnóstico: câncer de próstata com risco intermediário caminhando para avançado.
“Apesar de ser um tumor pequeno, inicial, ele estava se preparando para crescer e se espalhar. Segundo o doutor Fernando Croitor, que me acompanha desde o início, se nada fosse feito, e rápido, possivelmente ele me mataria em até 5 anos. Eu estaria com 63 anos, justamente a idade que meu avô tinha quando morreu. A história iria se repetir”, relata.
No dia 17 de outubro, o jornalista, natural de São Paulo, mas que vive em Brasília (DF) há bastante tempo, fez a cirurgia para a retirada da próstata e, pelos resultados iniciais que recebeu, aparentemente está livre da doença.
Mas deverá seguir fazendo um acompanhamento mais de perto por, pelo menos, 10 anos.
O encarregado de montagem mecânica Douglas Barbosa Gonçalves, de 62 anos, morador de Guaratinguetá (SP), também foi diagnosticado com câncer de próstata este ano, e mais um a sofrer com os impactos da crise da Covid-19.
Mas, no seu caso, não foi o receio de sair de casa e se expor ao vírus que provocou o atraso no resultado e na realização do tratamento, e, sim, a demora em conseguir marcar uma consulta pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
“Faço exames de rotina há 20 anos e, em 2020, comecei a ter problemas para urinar, mas só surgiu uma vaga para passar com o médico em dezembro. Estava tudo parado por causa da pandemia. No início de 2021 soube que estava com a doença e fiz a cirurgia apenas em junho”, narra Gonçalves.
Impactos da pandemia
As histórias de Oliveira e Gonçalves só corroboram um movimento que tem sido percebido desde que a pandemia começou: a queda no número de diagnósticos e a interrupção de tratamentos de câncer de próstata, o que possivelmente resultará no agravamento dos casos nos próximos anos.
Para se ter uma ideia, de acordo com uma pesquisa realizada pela Astellas Farma Brasil em conjunto com o instituto Inception, e divulgada com exclusividade pela BBC, 2 em cada 3 urologistas asseguraram que a ida ao consultório diminuiu em 2020.
Pelo levantamento, que consultou 60 especialistas (45 oncologistas e 15 uro-oncologistas) de todas as regiões do país e das redes pública e privada, a maior queda foi relacionada ao rastreamento da doença (entre 10% e 30%).
Em 2019, cada médico diagnosticou em média 89 pacientes com câncer de próstata. No ano passado, esse número baixou para 69. Este ano, 78% dos respondentes acreditam que o diagnóstico será, em média, 34% maior.
Os participantes do estudo indicaram que no período avaliado a realização do exame de toque diminuiu 75%, dos exames de imagem 70%, e da dosagem do PSA 45%. O acompanhamento da patologia, no caso das pessoas já diagnosticadas, também baixou, em torno de 2%.
Para 38% dos profissionais, o volume de pacientes deve voltar ao normal entre 6 meses e 1 ano. Já 27% acham que isso acontecerá entre 3 e 6 meses, 18% entre 1 e 3 meses, 10% mais de 1 ano e 7% imediatamente.
Outro levantamento, este feito pela Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) com base em dados do Ministério da Saúde referentes ao SUS, também revelou redução no rastreamento e tratamento do câncer de próstata como consequência da Covid-19: 21,5% nas cirurgias, 27% na coleta de PSA, 21% na realização de biópsia e 15,7% nas interações.
Em relação às consultas com um urologista, foram realizadas 2.816.326 em 2020 contra 4.232.293 em 2019. Este ano, elas seguem baixas: até julho, foram apenas 1.812.982.
No Estado de São Paulo, dados da SBU – Seção de São Paulo coletados junto a cinco instituições responsáveis pelo atendimento de pacientes do sistema público – Hospital Amaral de Carvalho, de Jaú; Instituto do Câncer da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto; Hospital A.C.Camargo Cancer Center, de São Paulo; Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Hospital São Paulo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – mostrou queda de 33,41% no diagnóstico de novos casos de câncer de próstata em 2020.
Roberto Soler, urologista e diretor médico da Astellas Farma Brasil, assinala que essa redução geral se deu por uma conjunção de fatores “Nos primeiros meses da pandemia, as pessoas se fecharam em casa, e aí acabaram postergando a marcação de consultas e a realização de exames, deixando para fazer isso quando o risco de contaminação pelo coronavírus fosse menor. Além disso, os próprios hospitais, clínicas e consultórios suspenderam por um período os procedimentos eletivos.”
Em se tratando especificamente do câncer de próstata, há ainda um agravante, aponta Marcelo Wroclawski, urologista e vice-presidente da SBU – Seção de São Paulo: o preconceito que os homens têm em relação ao exame de toque retal, importante para o rastreamento da enfermidade, e o medo do tratamento, pois muitos acreditam que invariavelmente sofrerão com algum tipo de disfunção sexual ou urinária em decorrência dele.
“É preciso acabar com esse tabu de que o exame pode afetar a masculinidade. É a mesma coisa que encostar um estetoscópio no peito para auscultar o coração ou colocar um palito na língua para ver a garganta. E em relação às complicações da doença, elas podem acontecer, mas é preciso deixar claro que houve um grande desenvolvimento tecnológico na saúde nos últimos anos, diminuindo significativamente essas ocorrências”, afirma o médico.
Prevenção é o diagnóstico precoce
No Brasil, o câncer de próstata é o segundo mais comum entre os homens, atrás apenas do câncer de pele não-melanoma. De acordo com dados do Instituto Nacional de Câncer (Inca), a estimativa é de 65.840 novos casos em 2021, correspondendo a 29,2% dos tumores incidentes no sexo masculino.
Nos estágios iniciais, a neoplasia costuma não apresentar sintomas. Quando eles surgem, e aí os mais comuns são dificuldade para urinar, necessidade de urinar mais vezes durante o dia ou à noite, sangue na urina, diminuição do jato de urina e dor ou ardor ao urinar, é sinal de que já está em fase avançada.
Sendo assim, a indicação é se consultar anualmente com um urologista a partir dos 50 anos para quem não tem histórico familiar da enfermidade e dos 45 anos para quem tem.
“Não há prevenção para o câncer de próstata, mas há o diagnóstico precoce. Quando o homem procura o médico, o grande objetivo dessa consulta periódica é conseguir detectar a doença no estágio o mais inicial possível, pois isso aumenta a chance de cura”, indica Wroclawski. “Doenças localizadas tem mais de 90% de chance de cura, ao passo que as avançadas têm mortalidade bastante significativa”, acrescenta.
O especialista informa que o fato de a doença não poder ser evitada se deve aos seus fatores de risco, sendo que os três principais são imutáveis: envelhecimento, raça e histórico familiar.
Em se tratando da idade, quanto mais velho for o homem, maior a chance de ele ser acometido pela doença – grande parte dos diagnósticos se dá a partir dos 65 anos. O vice-presidente da SBU – Seção de São Paulo sugere que isso provavelmente acontece devido à degeneração celular provocada pelo envelhecimento.
No caso da raça, os negros são os mais suscetíveis. Nos brancos, a estimativa é de que 1 em cada 9 tenha câncer de próstata. Nos negros, esse índice é de 1 em cada 4 ou 5, e eles, geralmente, têm a neoplasia com mais frequência, em idade mais jovem e de forma mais agressiva.
Ainda não se sabe com clareza quais as razões, mas uma possível explicação é que neles ocorre uma mutação nas células e isso favorece o quadro.
Já no quesito histórico familiar, homens cujos parentes, sobretudo pai e irmãos, tiveram câncer próstata, têm o dobro de chance de receber o mesmo diagnóstico. A resposta para isso também está na genética.
Além desses fatores de risco, a alimentação é outro que começa a ser levado em conta no surgimento da doença.
“Populações com dieta rica em gordura animal e derivados de leite são mais propensas ao câncer de próstata do que as que comem mais raízes, verduras e castanhas”, comenta Stênio de Cássio Zequi, líder do Centro de Referência em Tumores Urológicos do A.C.Camargo Cancer Center e professor livre docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), da Universidade de São Paulo (USP).
Segundo o médico, prova disso é que a sua incidência é maior entre americanos, canadenses e escandinavos dos que entre os homens do extremo oriente – culturalmente, este segundo grupo tem o hábito de comer de forma mais saudável.
“Nos Estados Unidos, a prevalência é de 100 casos para cada 100 mil habitantes, enquanto na Índia, no Japão e na China é de 1 a 5 casos para cada 100 mil habitantes. Os asiáticos, quando migram para a América, têm mais câncer de próstata do que seus parentes que ficaram na Ásia, mas menos do que os nativos americanos. Já os seus filhos, que aderem aos hábitos ocidentais, praticamente empatam na quantidade”, complementa o especialista.
Ainda que não seja possível prevenir a neoplasia, a recomendação de urologistas e oncologistas é levar uma vida de modo mais saudável possível, incluindo aí dieta equilibrada e rica em verduras, legumes, vegetais, castanhas, nozes, fibras e raízes, prática regular de exercício físico, controle do peso corporal, não fumar e evitar o consumo de bebida alcóolica.
Tratamento individualizado
Mesmo sendo altamente prevalente, este tipo de câncer na maioria dos pacientes cresce de forma lenta e não ameaça a saúde.
Mas há situações em que o tumor evolui rapidamente e as células cancerígenas se espalham para outros órgãos e tecidos – condição chamada de metástase -, podendo levar à morte.
“Existem vários níveis de agressividade no câncer de próstata, desde tumores de baixo ou muito baixo risco, que não trazem risco para o paciente e podem nunca precisar de tratamento, apenas acompanhamento médico periódico, passando pelos intermediários até chegar aos mais avançados”, explica Zequi.
Os exames utilizados para investigar a neoplasia são o toque retal, no qual são avaliados a forma, a textura e o tamanho da próstata, e o PSA, que mede, pelo sangue, a quantidade da proteína produzida pela glândula.
A confirmação, no entanto, é feita apenas através de uma biópsia (retirada de pequenos pedaços da próstata que são analisadas em laboratório).
“Exame de toque retal alterado e/ou PSA alterado não significam câncer. São apenas indícios de que eventualmente possa haver câncer, e são informações que se complementam, não se sobrepõem. Se suspeitarmos analisando esses dados, bem como o histórico do paciente, aí é preciso solicitar a biópsia. É ela que vai identificar se o indivíduo tem ou não a doença”, elucida Wroclawski.
Uma vez feita a confirmação e determinada a gravidade do tumor, o médico deverá avaliar o caso individualmente e decidir junto com o paciente qual caminho seguir.
Zequi relata que nos tumores de baixo risco nem sempre existe a necessidade de tratamento. “O paciente pode ficar em um programa de vigilância ativa, que envolve a realização periódica de exames para acompanhamento. Se com o tempo este tumor der sinal de progressão, aí sim inicia-se o tratamento.”
Para doença localizada (que só atingiu a próstata e não se espalhou para outros órgãos, as principais condutas terapêuticas são a cirurgia (prostatectomia radical) para remoção da próstata e a radioterapia (emissão de radiação para destruir as células cancerígenas).
Os tipos de operação disponíveis hoje em dia são a aberta, a laparoscopia e a robótica. Esta última costuma ser mais precisa e proporcionar uma recuperação mais rápida e com menor risco de danificar as estruturas relacionadas ao controle da urina e da função sexual, evitando, assim, os temidos efeitos colaterais, que são incontinência urinária (incapacidade de controlar a urina) e disfunção erétil (impotência sexual).
Nos casos de tumores locais de risco intermediário ou mais avançados ou que já invadiram estruturas adjacentes, o tratamento, normalmente, combina operação, radioterapia e hormonioterapia (bloqueio da via de produção da testosterona).
A terapia hormonal também é a indicação mais frequente nos cânceres metastáticos, ou seja, que já se espalharam para outras partes do corpo. “Infelizmente, com o tempo, o tumor cria mecanismos de resistência e esse tipo de tratamento deixa de ser eficiente. Quando isso acontece, os médicos podem lançar mão de quimioterapias específicas para câncer de próstata e drogas orais”, comenta Soler, da Astellas Farma Brasil.
Além disso, está começando a ser estuada no país a aplicação da terapia focal para casos específicos de patologia. Esse método é feito com crioterapia, ultrassom de alta intensidade (HiFu), ablação a laser, braquiterapia e outras formas de energia e se dirige exclusivamente às lesões (alvos) cancerígenas.
“O tratamento realmente é muito individualizado. Costumo dizer que se dez pacientes entrarem no consultório em um dia, provavelmente vou indicar dez tratamentos diferentes”, destaca Zequi.
“É sempre importante a análise de cada caso separadamente e que paciente e médico tenham uma conversa franca para evitar falsas expectativas, tirar dúvidas e seguir com o melhor plano”, finaliza.