Judiciário
Portaria do Ministério Saúde que dificulta ‘aborto legal’ é objeto de ação no STF
Para entidade, norma transfere aos profissionais de saúde “atividade policial e de investigação”
“Sob o aspecto legal, moral e humanitário a norma se presta a prolongar o estupro e seus efeitos físicos, mentais e psicológicos transformando o Estado no longa manus (executor indireto) do estuprador – fazendo, a portaria, um uso hábil e sutil das mesmas técnicas do estuprador, constrangendo, ameaçando e impingindo dor e sofrimento físico e mental à vítima como forma de demovê-la”.
Esta é a síntese da argumentação do Instituto Brasileiro de Organizações Sociais de Saúde (Ibross) em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta terça-feira (1º/9), contra a portaria do Ministério da Saúde que estabeleceu novo procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez (“aborto legal”) nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). O ministro Ricardo Lewandowski foi sorteado como relator da ação.
Na ADI 6.552, a entidade – representativa de 21 associadas que gerenciam mais de 800 unidades de saúde – destaca que, em termos operacionais, “a norma transfere ao profissional médico e demais profissionais das instituições de saúde, a atividade policial e de investigação que extrapola o atendimento assistencial à saúde por meio do SUS”.
Na petição inicial, o advogado do Ibross, Piétro Sidoti, solicita a concessão de medida cautelar para a suspensão imediata da Portaria 2.282/2020-MS. No mérito, alinha ainda os seguintes argumentos:
– “A portaria foi editada sem que se apurasse a possibilidade estrutural das unidades de saúde de todo o país – desconsiderando não apenas questões humanitárias e sociais, como questões técnicas estruturais que se levadas adiante com a vigência da portaria inviabilizarão o aborto legal no país”
“Tais profissionais e mesmo as instituições de saúde em que trabalham não possuem qualquer treinamento ou preparo para atuarem na persecutio criminis e, portanto, os efeitos na atuação assistencial – levada ao cabo o cumprimento da norma inconstitucional – serão catastróficos e colapsarão o sistema de saúde no que tange a esses procedimentos”.
– “A temporariedade é outro fator que denuncia a inconstitucionalidade da norma e demonstra o uso político e ideológico do Estado para dificultar o aborto legal. Isto, porque, a mesma foi editada dias após o dramático caso do aborto realizado em uma menor de 10 (dez) anos, estuprada desde os 6 (seis) anos de idade.
Nesse caso resta bastante claro que o estado, não apenas criou inúmeros obstáculos ao aborto previsto em lei, como deixou de garantir o sigilo de informações dos dados da menor e do local onde o aborto legal seria realizado”.
– “Como se pode observar é inequívoca a inconstitucionalidade da norma que confronta preceitos constitucionais pétreos, como também, tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e simboliza não apenas o retrocesso nas políticas de proteção à mulher, a criança e ao adolescente, como às demais vítimas de violência sexual que cresce exponencialmente num país que sinaliza para a criminalização da vítima e não do agressor.”
– “Centenas de mulheres, crianças e adolescentes são vítimas diárias das mais variadas formas de violência, incluindo violência sexual e estupro, e deixarão de procurar assistência médica – justamente pelos obstáculos que a norma impinge, pela prolongação do sofrimento imposto pelas ‘fases’ assim denominadas pela norma que nada mais fazem além de humilhar e prolongar o sofrimento da vítima”.
Controle policial
No fim da tarde, cinco partidos também levaram uma ação ao Supremo questionando a medida que impõe barreiras ao acesso à interrupção da gestação decorrente de estupro. PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT. As legendas oposicionistas apontam que as determinações deslocam a centralidade da atenção ao abortamento da saúde ao controle policial, pressupõem como regra a violação do dever profissional de segredo, padronizam procedimentos que classificam de torturantes e distorcem informações indispensáveis. Leia a íntegra.
A Portaria em questão (i) obrigou profissionais de saúde e responsáveis pelos estabelecimentos de saúde a notificarem a autoridade policial e a entregar-lhes evidências sempre que, no acolhimento de pacientes, entendam existir indícios ou confirmação do crime de estupro; (ii) tornou obrigatório o oferecimento da informação, pela equipe médica, ainda que não questionada, acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião antes da realização do aborto; e (iii) inseriu, no texto do Termo de Consentimento informações parciais e incompletas sobre os riscos da realização do procedimento.
“Poucos temas dizem tanto respeito ao coração de proteção de direitos fundamentais quanto os direitos relacionados ao acesso à saúde e à proteção devida às vítimas de violência sexual. Tratam-se de direitos que permitem não apenas que mulheres e meninas vítimas de violência tenham sua saúde física e mental preservadas, como também que não sejam colocadas em posição de desigualdade no acesso aos mais diversos direitos, como o de não serem submetidas a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, e de terem preservados o seu direito à dignidade, à cidadania, à intimidade e ao livre desenvolvimento a personalidade”, dizem os partidos.