Nacional
Análise da autobiografia de Sergio Moro por alguém que a leu
‘Contra o sistema da corrupção’ é fundamental para compreensão das agruras de um servidor público honesto no Brasil
Não conheço nenhuma outra pessoa tão criticada pelo que já escreveu como Sergio Moro. Porém, evidentemente, a maioria dos que criticam suas decisões nunca as leram. A título de exemplo, ouço há anos de muitas pessoas que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado por Moro sem provas. Mas não vejo, da maioria dessas pessoas, uma análise da sentença condenatória prolatada pelo então juiz. Não estou dizendo que havia ou não provas contra o ex-presidente. Não sou o juiz do processo, isso não me cabe. O que estou dizendo é: não é correto dizer haver ou não haver provas em um processo sem tê-lo lido, mas é nesses termos em que se dá o debate público brasileiro atualmente.
Há poucas semanas, o ex-juiz federal e ex-ministro Sergio Fernando Moro lançou sua autobiografia, “Contra o sistema da corrupção” (editora Primeira Pessoa). Se a história se repetir, o livro será criticado por muitos que nunca o lerão. Penso, assim, ser válida uma análise crítica da obra por alguém que a leu.
Minha leitura da autobiografia de Sergio Moro se deu com base no princípio da boa-fé, ou seja, parto do pressuposto de que ele está a dizer a verdade em seu livro. Isso é apenas uma suposição. Somente o ex-colega de magistratura sabe quantas verdades e mentiras contou. Mas não convém ler alguém presumindo que esteja a mentir.
Dito isso, a toada de quase todo o livro é de tristeza ao leitor, pois escancara, na visão do autor, a vitória de interesses ilegítimos e pouco republicanos em detrimento do interesse público.
A obra retrata a visão de um homem que viu seu trabalho, ano após ano, ser derrotado. Como juiz, por alguns magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF). Como ministro da Justiça, por parlamentares e pelo atual presidente da República.
Um homem que, por conta desse mesmo trabalho, relata ter mentido aos filhos, de então dois e sete anos de idade, acerca do porquê ter de viver com escolta policial. Embora a verdade deva ser um imperativo categórico na vida de todos, concordo com Moro a respeito de não ser adequado dizer ao filho de dois anos que o pai estava correndo risco de vida pelo trabalho honestamente desempenhado como juiz de primeira instância.
Moro ainda confessa enxergar certa hipocrisia naqueles que se dizem horrorizados em face do atual desrespeito aos magistrados do STF, mas que se calaram quando era o magistrado da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba a ser desrespeitado. É uma crítica justa. Moro poderia ter, inclusive, ido mais longe.
Aliás, esse é um sentimento que permeia todo o livro. Moro é comedido nas críticas, em especial ao STF. Na vida real, Moro é alvejado com balas de canhão por petistas, bolsonaristas e também por alguns magistrados, mas ele não reage com a mesma intensidade.
Apenas em um único momento da obra, por exemplo, deixa mais evidente seu pensamento a respeito de seu principal opositor no Supremo Tribunal Federal, ao dizer ser irônico que um presidente (Bolsonaro) eleito sob a promessa do combate à corrupção e da defesa à Operação Lava-Jato tenha tecido elogios a seu opositor, bem como com ele se encontrado várias vezes.
E ao criticar (sempre de forma comedida) decisões de ministros do Supremo, Moro não diz uma única palavra sobre as pessoas que contribuíram decisivamente para o atual quadro do STF – os presidentes da República que indicaram os ministros e os senadores que aprovaram tais indicações.
Exceção feita ao atual presidente da República (bastante criticado pelo autor), Moro preocupa-se mais em defender suas escolhas e decisões ao longo de sua vida profissional (em especial a famosa Operação Lava-Jato) do que em atacar seus detratores. Moro claramente não é um adepto da máxima futebolística “a melhor defesa é o ataque”. Desconfio, inclusive, que não ligue muito para futebol.
Em uma de suas defesas, Moro trata do convite para ser ministro da Justiça e Segurança Pública do atual governo federal. Moro acreditou, ingenuamente a meu ver, que ocupando o cargo de ministro de Estado conseguiria combater a corrupção e evitar retrocessos a respeito dos quais nada poderia fazer se continuasse como magistrado.
Não desejo diminuir o cargo de ministro, tampouco os resultados obtidos por Moro, a exemplo da relevante diminuição do número de homicídios no país. Mas o cargo de ministro é comissionado, demissível ad nutum. Um ministro é, com elevado respeito, um longa manus do presidente, portanto, a decisão de combater ou não a corrupção é de quem indica, não do indicado.
São páginas e mais páginas em que Moro discorre (em tom de lamento) acerca da ida do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Banco Central, da troca do presidente do Coaf, da omissão do governo federal em tentar reverter a decisão liminar do STF de paralisar por meses as investigações com dados do Coaf, da aprovação do juiz de garantias, da imposição de maiores formalidades para a manutenção de prisões preventivas, da fatídica (de acordo com o autor) intervenção do presidente da República na Polícia Federal, do fim da prisão após condenação em segunda instância, da nova Lei de Abuso de Autoridade etc. Note-se que tudo isso foi feito em desacordo com seu pensamento e absolutamente nada foi evitado, em que pese fosse Moro o ministro da Justiça, o que confirma o raciocínio do parágrafo anterior.
Ao insinuar, agora, uma candidatura a cargo eletivo (independente de qual efetivamente venha a ser), Sergio Moro parece ter entendido a lição. Se é verdade que todo o poder emana do povo [1], também o é que quem o exerce de fato é o eleito pelo povo, e não o indicado pelo eleito.
Já outras situações parecem ainda não ter sido bem compreendidas pelo ex-ministro. Logo após relatar a sanção presidencial ao juiz de garantias, diz a respeito daquele momento: “Talvez eu devesse ter renunciado ao cargo de ministro” (pág. 193). Custo a crer que Moro tenha utilizado o advérbio talvez, bem como o verbo dever no subjuntivo, após tudo o que aconteceu.
Não encontrará o leitor da obra, portanto, uma autobiografia em que o autor admite seus erros [2], por mais que sejam esses inerentes à natureza humana. Penso, honestamente, que a maioria das pessoas [3] no lugar de Moro teria provavelmente errado mais. Considero ser muito difícil manter um equilíbrio total sabendo que sua vida corre risco em razão de seu trabalho, e ainda destaco o fato de Moro (diferentemente de outros juízes ou ministros de Estado) ter tido seu trabalho analisado com lupa por políticos, jornalistas e advogados [4], o que contribui para a impressão negativa que alguns podem ter a respeito de sua atuação na magistratura. Entendo que não teria havido nenhum demérito se Moro tivesse admitido alguns erros, mas não foi essa sua escolha.
Apesar dessa falta de mea culpa, o livro tem muitos méritos, a exemplo de ser um grande convite à seguinte reflexão: por que a sociedade brasileira deixou o combate à corrupção regredir?
Acredito que grande parte da resposta esteja na pág. 124 do livro, embora Moro não pareça adotá-la como correta. Ao comentar a famosa Operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália, menciona que o jurista Gherardo Colombo “passou a argumentar que somente a educação poderia resolver o problema da corrupção”. É também como penso. A contrarresposta dada a tal pensamento é quase sempre a mesma: “Não podemos esperar 20 anos até que mudanças educacionais tenham efeito”. O problema é que ouvimos esse discurso há mais de 20 anos. E, passado tanto tempo, não temos educação de qualidade, tampouco combate efetivo à corrupção.
Em arremate, trata-se de texto muito bem escrito e revisado (não consegui localizar um único erro material de digitação no livro), com um final mais suave do que o restante da obra – a partir da Lava-Jato, Moro lista importantes avanços na iniciativa privada no combate à corrupção e conclama o cidadão brasileiro a participar dessa luta – e cuja leitura me parece fundamental para que, diante da cruel realidade corrupta e patrimonialista brasileira, tenha-se a compreensão das agruras diárias de um servidor público honesto, com ideais republicanos.
São essas as qualidades que Moro se atribui em seu livro, sempre justificando suas atitudes na incessante busca pelo interesse público. Fica ao crivo do leitor enxergar o autor da biografia ora comentada dessa forma ou não.
[1] Artigo 1º., parágrafo único da Constituição Federal de 1988.
[2] Sequer no episódio que ficou conhecido como Vaza-Jato.
[3] Incluo-me nessa maioria.
[4] Muitos advogados, licitamente, foram contratados e remunerados para revogar, junto às instâncias superiores, as decisões de Sergio Moro. Sendo assim, as críticas de tais profissionais ao trabalho do juiz da Lava-Jato devem ser vistas com parcimônia e não podem ser interpretadas como verdades absolutas. Algumas críticas tenho por corretas, muitas outras, não. Cada um há de fazer o seu juízo de valor.
AUTOR
BRUNO VALENTIM BARBOSA – Mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), Juiz Federal, presidiu no âmbito do Poder Judiciário as duas primeiras fases da Operação Vagatomia, uma das maiores da Polícia Federal entre os anos de 2019 e 2020