Educação & Cultura
Para além de Ângela Davis: 6 mulheres negras que construíram o pensamento feminista no Brasil
“Por que no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos EUA? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”, questionou Davis em 2019.
A professora e filósofa feminista Ângela Davis, 75, que é vista como ícone do feminismo negro no mundo, repetidamente recusa este lugar. Em 2019, quando veio ao Brasil lançar o livro Uma Autobiografia, publicado originalmente em 1974 nos Estados Unidos, disse se sentir “estranha” por ser escolhida para este papel também no Brasil.
“Por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês poderiam aprender comigo”, disse, durante uma palestra em São Paulo.
Sempre que tem oportunidade, Davis cita a antropóloga Lélia Gonzalez, morta em 1994, em seus discursos. Segundo ela, Lélia, que foi uma das criadoras do MNU (Movimento Negro Unificado) e autora de livros como O Lugar do Negro (1982) já pensava o conceito de interseccionalidade muito antes do termo se popularizar na academia. O termo é utilizado para explicar a sobreposição de preconceitos de raça, gênero e classe em sociedade.
“Nós, nos Estados Unidos, necessitamos ter acesso a essas escritas, ideias e práticas que constituem o feminismo negro brasileiro muito mais do que vocês necessitam das nossas referências”, afirmou Davis, ovacionada pela plateia.
Davis também citou a socióloga Luiza Bairros, a doutora em educação Sueli Carneiro, a socióloga Vilma Reis, a escritora Conceição Evaristo, a ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, a socióloga Ângela Figueiredo e lembrou a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018.
Não é novidade que as discussões sobre feminismo têm despertado maior interesse do público nos últimos anos no Brasil e no mundo e que uma consequência disso é que editoras têm enxergado novas possibilidades de mercado na publicação ou tradução de livros de intelectuais feministas.
Mas a pergunta de Davis parece seguir sem resposta: por que, no Brasil, referências norte-americanas e europeias do feminismo são mais conhecidas do que as intelectuais que viveram – e ainda vivem – por aqui?
Especialistas ouvidas pelo HuffPost Brasil sinalizam que esta falta de visibilidade e acesso é, na verdade, sintoma de uma cultura marcada pela valorização de uma outra lógica única e eurocêntrica de produção intelectual.
“Até hoje é dificílimo você garimpar os escritos de Lélia Gonzalez, de Beatriz Nascimento, duas mulheres importantíssimas para o feminismo no Brasil e que são citadas por Angela Davis. O mercado editorial faz escolhas. As pessoas, no Brasil, continuam conhecendo mais ela do que Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus”, diz Giovana Xavier, autora do livro Você pode substituir mulheres como objetos de estudo por mulheres negras contando a sua própria história.
Ao longo da história, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro, por exemplo, só tiveram livros publicados de forma independente e em editoras organizadas por coletivos do movimento negro como Selo Negro Edições, Editora Malê, Filhos da África e os selos criados recentemente como “Feminismos plurais”, da editora Pólen, idealizado por Djamila Ribeiro.
Para a historiadora e professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o acesso a essas autoras é importante para que mais pessoas ― dentro ou fora da academia ― possam ler mulheres negras que, pela escrita, reafirmaram sua própria história e pensaram um outro projeto de mundo.
“Nós temos o nosso pensamento negro feminista. É importante que novas gerações entrem em contato com isso. O feminismo negro não se resume a Angela Davis, ele é alimentado por um papel histórico das mulheres brasileiras.”
Levantamento feito pelo Gelbc (Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea) da UnB (Universidade de Brasília) analisou mais de 600 romances de autoria nacional publicados entre 1965 e 2014 por grandes editoras. O estudo constatou que mais de 70% foram escritos por homens e 90% por pessoas brancas.
“Porque os conteúdos das intelectuais e feministas brasileiras continuam confinados aos blogs, às mídias ativistas, por exemplo? Esses espaços também são importantes, é claro. Mas é significativo também que estes livros possam estar no mercado editorial formal”, critica Xavier.
Um exemplo de movimentação é o fato de que a obra de Carolina Maria de Jesus será publicada pela editora Companhia das Letras, uma das maiores do País. Diversos de seus escritos nunca foram publicados ou estão fora de circulação. Segundo a editora, o projeto terá supervisão de Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina, e da escritora Conceição Evaristo.
“O feminismo, como o pensamento crítico em geral, é muito perigoso para os jogos de poder. Conceição Evaristo disse: ‘o imaginário brasileiro, pelo racismo, não concebe reconhecer que as mulheres negras são intelectuais’. As publicações que temos hoje são apenas o começo”, diz Bhuvi Libânio, pesquisadora e tradutora de livros como Eu não sou uma mulher?, de bell hooks e A Mística Feminina, de Betty Friedan, ambas norte-americanas.
“Essas obras [tanto de brasileiras, quanto estrangeiras] incentivam o pensamento crítico e é só por meio dele, de muita reflexão e diálogo — e cada vez mais diálogo —, que poderemos quebrar os muros que nos separam.”
Neste 25 de julho, quando é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, assim como o Dia de Teresa de Benguela, mulher escravizada que se tornou líder de um povoado no Brasil colonial, o HuffPost lista 6 feministas negras brasileiras para você conhecer mais.
1. Luiza Bairros
Luiza Bairros foi – e ainda é – uma das referências mais importantes do feminismo negro no Brasil. Socióloga, ela foi ministra da Secretaria da Igualdade Racial no primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), entre 2011 e 2014. Na época, trabalhou pela implementação do Estatuto da Igualdade Racial e denunciava a violência contra jovens negros no País.
Natural de Porto Alegre e morando em Salvador desde 1979, ela foi um dos nomes mais atuantes no País em temas ligados a negritude e gênero. Doutora em sociologia pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, ela também trabalhou em projetos da ONU (Organização das Nações Unidas) durante sua carreira. Morreu em 2016, aos 63 anos, vítima de um câncer de pulmão.
2. Nilma Lino Gomes
Primeira mulher negra a comandar uma universidade pública federal no Brasil – a Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), no Ceará –, Nilma Lino Gomes vê a educação como determinante para transformação social. “Todo ataque à universidade pública resulta em aumento de desigualdades para as mulheres negras”, disse em entrevista ao HuffPost.
Pedagoga, Lino Gomes, é ex-ministra das Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial. Ela ocupou o cargo entre 2015 e 2016, durante o segundo mandato da então presidente Dilma Rousseff. Hoje é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Nome importante para o feminismo no Brasil, também escreveu livros sobre educação e identidade. Entre eles, A mulher negra que vi de perto: O processo de construção da identidade racial de professoras negras (Coleção Griô/Texto) e Sem Perder A Raiz – Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra (Autêntica).
3. Lélia Gonzalez
Lélia Gonzalez foi filósofa, antropóloga, professora, escritora, intelectual, militante do movimento negro e feminista. Pioneira, ela teve uma atuação de liderança tanto por ter participado do IPCN (Instituto de Pesquisa das Culturas Negras), uma das primeiras organizações deste tipo no País, quanto por ser uma das fundadoras do MNU (Movimento Negro Unificado) e ter formado o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras.
Nascida em Minas Gerais, Lélia morou grande parte de sua vida no Rio de Janeiro. Ela foi a primeira mulher negra a sair do País como representante do movimento negro, em 1979 – e chegou a se candidatar a cargos eletivos nos anos 80, mas não foi eleita. É autora de livros como O lugar de negro, de 1982, (com coautoria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg) e Festas populares, de 1989. Morreu em julho de 1994, aos 59 anos, vítima de um infarto em sua casa no Rio.
4. Beatriz Nascimento
No livro Eu sou Atlântica – Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, o escritor Alex Ratts reúne textos da intelectual e fala sobre sua história de vida. Ela foi uma pesquisadora, historiadora, ativista e poeta negra nascida em Aracaju (SE), em 1942 – mas foi no Rio de Janeiro que ela fez morada.
Filha de uma dona de casa e de um pedreiro, Beatriz se formou em história pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Depois, foi professora na rede pública de ensino do estado e cursou pós-graduação também em história pela UFF (Universidade Federal Fluminense).
Em seus trabalhos, Beatriz questionou as narrativas históricas sobre a condição de mulheres e negros escravizados e buscou reconstituir a história dos quilombos no País. Morreu em 1995. Apesar de sua relevância, ela ainda é pouco conhecida e somente uma pequena parte de sua produção encontra-se disponível. Em 2018, o livro Beatriz Nascimento: intelectual e quilombola. Possibilidade nos dias de destruição, que recupera sua trajetória, foi lançado pela UCPA (União dos Coletivos Pan-Africanistas) de São Paulo.
5. Sueli Carneiro
Doutora em filosofia da educação pela USP (Universidade de São Paulo), Sueli Carneiro, 70, além de ser fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra, é uma das principais intelectuais brasileiras, que articula questões de raça e gênero em seus trabalhos que contribuem para o movimento feminista.
Autora de Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, que reúne textos produzidos de 1999 a 2010, Carneiro também teve alguns de seus principais textos reunidos pela primeira vez no livro Escritos de Uma Vida, organizado pela filósofa Djamila Ribeiro e publicado pela editora Pólen em 2019.
6. Neusa Santos Souza
Neusa Santos Souza foi uma psiquiatra, psicanalista e escritora brasileira. Neusa publicou, entre outros escritos, o livro Tornar-se Negro – As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social (Graal, 1983). Com ele, se tornou referência na área para pensar as dificuldade emocionais da população negra sobre a própria imagem diante dos efeitos do racismo.
“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas”, escreve Souza em Tornar-se Negro.
Nascida na cidade de Cachoeira, na Bahia, assim como outras intelectuais citadas, Souza escolheu o Rio de Janeiro para se estabelecer. Lá, se tornou mestre em psiquiatria pela UFRJ. Sua tese deu origem ao livro citado. Em 2008, aos 60 anos, cometeu suicídio. Na época, a Fundação Palmares lamentou sua morte e a colocou como a “primeira referência sobre a questão racial na psicologia”.