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O que está por trás da queda de braço entre Aras e a Lava Jato
Procurador-geral defende reforma no MP para combater excessos e entra em colisão com força-tarefa de Curitiba. Para especialistas, confronto vai além de disputa interna e pode enfraquecer combate à corrupção.
Recentes declarações do procurador-geral da República, Augusto Aras, deram um novo tom à disputa travada entre ele e a força-tarefa da Lava Jato. A queda de braço, que na semana passada rendeu acusações públicas, vai além de uma disputa de poder no Ministério Público e do combate a supostos excessos cometidos em Curitiba, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil.
Uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) e a necessidade de o presidente Jair Bolsonaro fortalecer a sua base de apoio no Congresso também estão no centro do conflito, que pode ter consequências negativas, como o enfraquecimento do combate à corrupção ou o aparelhamento político do Ministério Público para perseguir opositores do governo.
A queda de braço, que veio à tona em junho, teve início jána escolha do novo procurador-geral por Bolsonaro. Aras não estava na lista tríplice para o cargo, elaborada a partir de eleição interna pelos membros do Ministério Público Federal, rito que vinha sendo seguido desde o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.
Decidido a colocar um freio na Lava Jato, Aras pediu em junho a uma aliada, a subprocuradora Lindôra Araújo, que fosse a Curitiba copiar os bancos de dados da força-tarefa local, chefiada pelo procurador Deltan Dallagnol. Incomodada com a presença de Araújo e a falta de um pedido formal com o objetivo da visita, a força-tarefa fez uma reclamação à corregedoria do órgão.
O procurador-geral passou então a manifestar apoio a uma reforma no Ministério Público para centralizar o comando de operações contra a corrupção, em uma nova estrutura permanente, em Brasília, chamada Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado e cujo chefe seria indicado por Aras. Depois, afirmou que a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba era uma “caixa de segredos” e tinha um banco de dados com 38 mil nomes e 50 mil documentos aos quais outros órgãos da PGR não tinham acesso.
A disputa saiu do Ministério Público e chegou ao STF, onde também há ministros que defendem limitar a Lava Jato. Um deles é o atual presidente da Corte, Dias Toffoli. Em 9 de julho, no recesso do Judiciário e a pedido da PGR, ele determinou que as forças-tarefas da Lava Jato em Curitiba, São Paulo e Rio compartilhasse seus bancos de dados com o comando da instituição. Toffoli afirmou que a medida era necessária para preservar a unidade do Ministério Público e apurar eventuais irregularidades cometidas pelas forças-tarefas.
Nesta terça-feira, o ministro Edson Fachin, alinhado ao grupo pró-Lava Jato, revogou a ordem de Toffoli e suspendeu o compartilhamento. O caso será decidido pela Segunda Turma ou pelo plenário do Supremo, que esclarecerá se o chefe do Ministério Público pode ou não ter acesso aos bancos de dados das forças-tarefas.
O jogo de Aras
A disputa entre Aras e Lava Jato é, em parte, resultado do desenho institucional do Ministério Público, que garante aos seus membros independência funcional. Os promotores e procuradores decidem individualmente o que devem ou não investigar, a despeito da orientação do chefe do órgão. Ao mesmo tempo, a Constituição afirma que o Ministério Público deve perseguir uma unidade para seu planejamento estratégico e a tomada de ações conjuntas.
De acordo com o cientista político Jorge Chaloub, da Universidade Federal de Juiz de Fora, a Constituição de 1988 fortaleceu a “capilaridade” do Ministério Público por entender que isso deixaria o órgão mais acessível às demandas dos cidadãos. Mas, segundo ele, erros da Lava Jato teriam mostrado que essa pulverização pode trazer alguns problemas.
Aras quer uma maior centralização no órgão e não está sozinho nessa iniciativa. Ele conta com apoio de setores do próprio Ministério Público, que incluem procuradores mais antigos ou que acham que a força-tarefa passou dos limites, e do Palácio do Planalto, que tem interesse em controlar a Lava Jato para atender aos congressistas do Centrão que o apoiam no Congresso.
“É muito claro que o Aras está comprometido com a ideia de colocar um freio na Lava Jato. Politicamente, isso pode ter relação com o que ele imagina que Bolsonaro aspire, uma contenção que ajudaria nos esforços de composição com o Centrão, pois muitos dos partidos do Centrão são alvos da Lava Jato”, afirma Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP.
Parte do Supremo também é simpática a limitar a força-tarefa. Além de Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski têm críticas aos métodos da operação. Da mesma forma, celebram a investida contra a Lava Jato os petistas, que viram seu maior líder ser condenado e preso pela operação, e advogados criminalistas que apontam abusos na condução das investigações e processos em Curitiba.
Aras está ciente do arco favorável ao seu movimento e joga com ele. A declaração de que a Lava Jato seria uma “caixa de segredos” foi proferida em uma conferência virtual organizada pelo grupo Prerrogativas, que reúne advogados críticos à operação e é coordenado por Marco Aurélio de Carvalho, próximo ao PT e defensor de Fábio Luís Lula da Silva, um dos filhos de Lula.
Completa o cenário o interesse do procurador em uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro já afirmou que ele está cotado “para uma terceira vaga” que possa abrir na Corte durante seu mandato. “Aras aproveitou uma oportunidade de ocasião, tem interesse em uma vaga no Supremo e percebeu que atuar internamente contra a Lava Jato poderia representar a opinião de procuradores mais antigos e acenar para Bolsonaro”, avalia Chaloub.
O flanco aberto pela Lava Jato
Além da articulação de forças contrárias à força-tarefa de Curitiba, a Lava Jato também sofre hoje pelos próprios erros que cometeu e pelo refluxo da pauta anticorrupção na opinião pública.
Os procuradores de Curitiba aproveitaram a onda anticorrupção que balançou o país de junho de 2013 até o impeachment da presidente Dilma Rousseff, durante a qual se tornaram protagonistas no debate público, construíram uma aliança estratégica com parte dos meios de comunicação e contribuíram para fortalecer forças antipetistas.
Esse movimento, diz Chaloub, não se trata de algo inédito na história do país, mas reeditou a influência dos bacharéis no cenário político, que lideravam durante o Império e a Velha República.
“O Brasil tem uma tradição histórica de bacharéis em direito no mundo da política, e no pós-1988 houve um fortalecimento do Judiciário e do Ministério Público como instituições que poderiam disputar sentidos políticos. A Lava Jato tem a intenção de promover uma reforma moral por meio do direito, eles se veem como representantes sem mandato, que querem de alguma forma purificar a sociedade”, afirma.
Mas a revelação de detalhes sobre como a força-tarefa de Curitiba operava, por meio do mensagens no que ficou conhecido como escândalo da Vaza Jato, minou a credibilidade de seus integrantes. As práticas incluíam estratégias combinadas entre Dallagnol e o então juiz Sergio Moro, procuradores planejando formas de enriquecer por meio de palestras e planos para criar uma fundação privada para administrar os recursos recuperados da Petrobras.
Dallagnol é alvo de diversas representações no Conselho Nacional do Ministério Público, e Moro aceitou ser ministro da Justiça de Bolsonaro após o capitão reformado ter sido eleito como antítese de Lula, político que ele havia condenado à prisão e retirado da disputa eleitoral. Em abril de 2020, Moro deixou o governo.
“Hoje as pessoas estão mais dispostas a reconhecer que a Lava Jato tem defeitos. No seu auge, apontar qualquer tipo de impropriedade na conduta do Moro ou da força-tarefa de Curitiba te rendia o rótulo de ser, na melhor das hipóteses, conivente, e na pior, colaborador ativo de corruptos”, afirma Mafei.
Ele diz que há méritos na operação, como desmontar um esquema de corrupção que existia na Petrobras relacionado à construção de alianças políticas no Congresso. Mas também há pontos “indefensáveis”, com a relação entre Moro e Dallagnol. “Nenhuma pessoa aceitaria ser julgada por um juiz que orienta a parte contrária à sua”, diz.
Para Chaloub, neste cenário complexo, nenhum dos lados está correto. “O fato de Aras estar excedendo suas atribuições e comungando da intenção de Bolsonaro de destruir instituições de 1988 não faz com que a Lava Jato não tenha excessos”, diz.
Os riscos para o Ministério Público e o combate à corrupção
Apesar de identificarem erros da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e a necessidade de correção de rumos no Ministério Público, os especialistas ouvidos pela DW Brasil veem riscos na investida conduzida por Aras neste momento.
“Quando Aras diz que quer criar uma unidade única de combate à corrupção, ele quer centralizar, acabar com a multiplicidade. Isso pode levar a economia de recursos, mas há o risco de facilitar que alguém tenha o poder de parar uma investigação. Esse é o dilema”, afirma a pesquisadora Raquel Pimenta, pesquisadora da FGV Direito SP.
Na avaliação da presidente do Conselho Orientador do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, Maria Tereza Sadek, se o procurador-geral ganhar a disputa por poder no Ministério Público, haverá “claramente um enfraquecimento” da instituição. A cientista política prevê, no entanto, que Aras seguirá enfrentando dificuldades no Conselho Superior do órgão, onde não tem maioria.
Já Mafei receia que os erros cometidos pela Lava Jato em Curitiba acabem por comprometer todo o modelo de forças-tarefas do Ministério Público, que em si traria benefícios como priorização, planejamento e alocação de equipes para temas definidos como prioridades da instituição.
“O perigo é que, a pretexto do que foi feito de errado em Curitiba, tudo o que foi feito por equipes que trabalham de forma diferente vá embora junto”, lembrando que as forças-tarefas da Lava Jato em São Paulo e Rio de Janeiro se diferenciam da homóloga paranaense, “nada que se assemelhe ao grau de politização e de certo narcisismo acusatório que veio de Curitiba”. “Se alguém cometeu um abuso, existem mecanismos tanto disciplinares como judiciais para corrigir e punir”, diz.
Por fim, há o risco, mais grave, de que a centralização buscada por Aras possa levar à instrumentalização política do Ministério Público por Bolsonaro, diz Chaloub.
“Como Bolsonaro já está tentando politizar a polícia e investigar opositores, é claro que existe o temor de que Aras, ao tentar restringir a Lava Jato, acabe aparelhando o Ministério Público no sentido de se tornar uma polícia política que irá perseguir opositores. Seria o pior dos mundos”, afirma.