CIÊNCIA & TECNOLOGIA
Regulação das plataformas digitais, anonimato e o sistema constitucional brasileiro
Significado jurídico-constitucional da vedação do anonimato no art. 5º, IV CF e suas consequências práticas
Outubro de 1859. Estava escrito, na edição semanal do Jornal O espelho: “a palavra, esse dom divino que fez do homem simples matéria organizada, um ente superior na criação, a palavra foi sempre uma reforma. Falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é o monólogo; escrita no livro, é ainda criadora, é ainda prodigiosa, mas é ainda o monólogo; esculpida no jornal, é prodigiosa e criadora, mas não é o monólogo, é a discussão”. Uma crônica que trata do poder transformador da imprensa, do diálogo e da esperança na humanidade. O autor, hoje sabemos, era Machado de Assis, mas o leitor da época se deparava com o vazio ao final da leitura: nenhuma assinatura.
A relação entre o anonimato, liberdade de expressão do pensamento e democracia é bem estreita. Os norte-americanos foram convencidos por Publius das virtudes da Constituição escrita. Sob o manto desse pseudônimo falavam Alexander Hamilton, John Jay e James Madison. Com base no anonimato surgiu o direito constitucional tal qual o conhecemos. Os tempos mudaram, os perigos e medos aumentaram. Hoje, a figura e a palavra anônimas são fontes de receio.
Por que alguém teria interesse em não assinar um texto de sua própria autoria? Esse não seria um indício de que quem escreve tem más intenções, que quer se esconder nas sobras do anonimato para atacar suas vítimas? Não seria plausível ou até legítimo supor que quem se utiliza da palavra anônima é potencialmente um autor perverso, sem escrúpulos e que sua fala deve ser censurada, não importa o conteúdo?
Desde 1891, o direito constitucional brasileiro segue essa lógica. Desde então, à exceção da Emenda constitucional n. 1/1969 à Constituição de 1967, os textos constitucionais brasileiros garantem a livre manifestação do pensamento, vedado o anonimato (art. 5º, IV CF). Trata-se de dispositivo constitucional, cuja parte final (“in fine” ou 2º subperíodo) que é frequentemente interpretado como uma cláusula de exclusão da proteção constitucional à liberdade de expressão do pensamento, de tal sorte a gerar algo sui generis no debate nacional quando comparado ao direito estrangeiro e internacional e a criar um desafio ao bom senso: uma mesma expressão de ideia ou opinião acompanhadas de seus eventuais suportes fáticos pode ser considerada proibida ou garantida, a depender de o autor ter ou não ter se identificado.
Um exemplo dessa compreensão envolveu o atual Governador de São Paulo. Em 2016, João Dória processou o Facebook para remover uma página que convocava os leitores a participarem de uma virada cultural em sua casa. No caso, mesmo considerando que o conteúdo da manifestação não configurava ilícito, o magistrado determinou a identificação do responsável com base na vedação do anonimato. Em seu entender, a Constituição Federal incontestavelmente veda o anonimato por força do seu art. 5º, IV.[1]
Outro exemplo, ainda mais recente, está na fala do Senador Ângelo Coronel (relator do PL 2630/20, conhecido como “PL das Fake News”), para quem a “nossa Constituição não está sendo cumprida. É vedado o anonimato. Não podemos permitir hoje que a pessoa entre numa plataforma, abra sua conta, crie um nome falso, crie uma caricatura e saia daí em diante depreciando, denegrindo, ferindo a honra das pessoas”.[2] No substitutivo por ele apresentado, propunha-se a exigência de identificação prévia, com documento de identidade válido e número de celular cadastrado no Brasil, de todos os usuários da respectiva plataforma (art. 7º).[3] Essa proposta não foi mantida no texto aprovado pelo Senado, mas nada impede que ela seja ressuscitada pela Câmara dos Deputados.
Nadando contra a maré, há quem defenda que não é possível fazer uma leitura da Constituição brasileira que vede completamente a expressão anônima. Existe, afinal, o sigilo da fonte, o sigilo de deliberações do júri e se admitem denúncias anônimas. Isso não significaria que o anonimato é de algum modo admitido e, às vezes, até ordenado (contexto do tribunal do júri)?[4]
Há alguns problemas aqui. Primeiro, porque, em que pese fazer parte de outros direitos fundamentais (art. 5º, IX c.c. XIV CF e art. 5º, IX c.c. XIII CF), o sigilo da fonte diz respeito ao modo de colheita das informações – assim como a prova não equivale à fonte da prova; a informação não é igual à fonte da informação. Segundo, porque em denúncias anônimas não se comunicam pensamentos ou ideias; são, ao contrário, comunicados fatos, que estão protegidos pelo sigilo das comunicações interindividuais (art. 5º, XII CF).
No meio do tiro cerrado e sem poder se defender, quem sofre é a liberdade de expressão do pensamento, que deixa de ter parâmetros constitucionais claros, e o titular do direito, que não sabe mais se pode ou não se exprimir sem se identificar. É preciso, então, investigar e refletir novamente sobre o significado jurídico-constitucional específico da vedação prevista no art. 5º, IV CF, a fim de realocar sua compreensão sobre bases mais sólidas.
Para isso, devemos desatar uma confusão bem comum. É comum se dizer que os direitos fundamentais previstos no art. 5º, IV e 5º, IX CF são complementares.[5] Por esse entendimento, o resultado é a exclusão da proteção constitucional em relação a obras de arte (quadros, esculturas, músicas, obras literárias, teatrais, cinematográficas etc.) anônimas, por exemplo.
Mas nem é necessário nem correto pensar assim, seja porque muitas obras de arte expressam apenas impressões e sensações do artista e não necessariamente pensamentos cuja manifestação é especificamente protegida pelo art. 5º, IV CF, seja porque nem toda obra de arte é divulgada (manifestada) por seu criador, sem que com isso deixe de ser arte. Por isso, o primeiro ponto que deve ser lembrado é que a vedação do anonimato se refere apenas ao direito fundamental de livre manifestação do pensamento. Em termos práticos, isso significa que quando uma situação ensejar a incidência concorrente de outros direitos fundamentais, como o do art. 5º, IX CF, a vedação em tela será relativamente inócua, pois absolutamente não se refere à liberdade de comunicação social e artística.[6]
Fora isso, quando a Constituição fala em “vedação do anonimato”, o conteúdo da norma por ela determinada representa um dever de identificação daquele(a) que pretende expressar seu pensamento (sinônimo de opinião = juízo de valor). O enquadramento dogmático dessa aparente cláusula restritiva poderia variar. Infelizmente, grande parte da literatura especializada absolutamente não se preocupa com tal enquadramento jurídico-dogmático que, todavia, é imprescindível à sua correta interpretação por órgãos judiciais, especialmente pelo “juiz constitucional” (STF).
Uma das alternativas viáveis, talvez a mais promissora em face do propósito de salvar uma escolha redacional do constituinte especialmente infeliz, é enxergar nela um dever fundamental (de identificação) acoplado à liberdade individual (liberdade de manifestação do pensamento).[7]
Veja-se que o art. 5º CF está alocado no Capítulo I do Título II da Constituição, que trata não apenas dos direitos, mas também dos deveres fundamentais. Entre as variadas espécies de deveres, existem aqueles que acompanham o direito fundamental do titular.[8] Esse é o caso da vedação do anonimato. Disso são tiradas algumas consequências.
Primeiro, deveres fundamentais não são autoaplicáveis. Uma intermediação legislativa para se exigir uma ação qualquer do particular é imprescindível, esteja ela prevista ou não na Constituição como dever fundamental. Isso não somente porque o art. 5º, §1º CF assegura aplicabilidade imediata apenas às normas definidoras de “direitos”, mas não de “deveres” fundamentais. Ao contrário, também porque o conteúdo de deveres é geral e indeterminado, característica da qual resulta a impossibilidade de sua exigência por via judicial sem violação do princípio da separação das funções (“poderes”) estatais. Isso quer dizer que, na ausência de intermediação legislativa, não é possível impor o dever de identificação a quem se expressa.
Enfim, a depender da abrangência da exigência imposta por lei e da quantidade de informações solicitadas para a identificação dos que expressam seu pensamento, haverá uma gradação da intervenção na própria liberdade de manifestação de pensamento – se para se manifestar for exigido a transferência de todos os dados da vida privada, muito provavelmente todos se calarão. Por isso é necessário tomar ciência do efeito resfriador, ou desencorajador (Chilling effect), que as determinações de identificação pessoal como concretização desse dever fundamental (de identificação) podem causar sobre o livre trânsito de ideias e a possibilidade de exercício autônomo e consciente da correspondente liberdade individual por seu titular. Essas são as linhas elementares que precisam ser consideradas para operacionalizar corretamente o inciso IV e, assim, permitir a reconstrução de sua função dogmática.