AGRICULTURA & PECUÁRIA
‘Passaporte da imunidade’ em Fernando de Noronha não impede contaminação no arquipélago
Pessoas com anticorpos podem transmitir o novo coronavírus e há risco de exame falso positivo
Embora falhas na efetividade de um ‘passaporte da imunidade’ tenham sido apontadas por cientistas e sanitaristas, o arquipélago de Fernando de Noronha (PE) resolveu adotar essa estratégia para voltar a receber turistas. A partir desta terça-feira (1º), poderão entrar nas ilhas pessoas que já se contaminaram com o novo coronavírus e não têm mais sintomas.
A comprovação poderá ser feita de duas formas. O turista deve enviar o resultado do exame sorológico com IgG positivo. Esse tipo de anticorpo é detectado em caso de infecções mais antigas. O teste deverá ser feito pelos métodos de quimioluminescência, eletroquimioluminescência ou ELISA imunoensaio, com menos de 90 dias da data do embarque. Não é aceito o teste rápido.
Outra opção para o turista é enviar o resultado do exame molecular (RT-PCR) positivo com mais de 20 dias da data do embarque. Esse documento deverá ser anexado ao pagamento da Taxa de Preservação Ambiental (TPA), que agora só poderá ser feito online, em até 72 horas antes do embarque.
Com 3.100 residentes permanentes, Fernando de Noronha depende economicamente do turismo. O arquipélago foi fechado para visitantes em 21 de março. Para tentar suprir as necessidade econômica dos moradores, a administração promoveu ações como distribuição de cestas básicas, vale gás, peixes, além do estímulo à agricultura familiar.
A ideia por trás do passaporte da imunidade é de que se a pessoa já se contaminou uma vez, ela estaria imunizada. Mas há uma série de falhas na aplicação desse tipo de medida.
Consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a médica Raquel Stucchi afirma que há risco de resultado falso positivo de IgG. “Pode cruzar com outros coronavírus, com vacina da gripe, com dengue. Tem muito falso positivo. Tinha de avaliar o título de IgG. Esse resultado não é só positivo ou negativo. Números muito altos de IgG indicam fortemente infecção recente, mas tem esses falsos positivos”, afirmou ao HuffPost Brasil.
De acordo com ela, cobrar o resultado do PCR positivo há mais de 20 dias poderia ser mais eficaz como medida de controle sanitário, porém junto com exame de casos sintomático após o desembarque no arquipélago para saber se houve reinfecção.
Reinfecção pelo novo coronavírus
Casos de suspeita de reinfecção pelo SARS-CoV-2 têm sido relatados, mas no último dia 24 foi divulgado pela primeira vez um estudo científico em que se comprovou esse fenômeno. O trabalho dos pesquisadores de Hong Kong foi publicado na revista científica Clinical Infectious Diseases.
Na primeira infecção, em março, o paciente chegou a ser internado e teve sintomas típicos da covid-19: febre, tosse e dor de cabeça. A segunda infecção foi assintomática. Com amostras dos vírus das duas infecções, os cientistas fizeram o sequenciamento genético e descobriram que se tratavam de patógenos de diferentes cepas.
O sistema imunológico funciona tanto pela produção de anticorpos como pela ação das chamadas “células T”. Esse tipo de linfócito ataca células infectadas por parasitas intracelulares, como vírus. Um tipo específico de célula T, libera citocinas, que matam as células infectadas, impedindo a proliferação do patógeno. Ambas as respostas imunológicas agem em conjunto.
A ação das células T pode ser especialmente importante no combate à covid-19 porque há registros de pessoas que se infectaram e com redução de anticorpos para o vírus após alguns meses.
De acordo com os pesquisadores de Hong Kong, é possível que a primeira infecção tenha ativado as células T, de modo que a segunda infecção foi mais leve. O paciente teve anticorpos neutralizantes do novo coronavírus detectados 5 dias após ter sido internado por causa da reinfecção.
Nesse caso, “as células T não impediriam a transmissão, mas impedem a doença”, de acordo com a microbiologista Natalia Pasternack, fundadora do Instituto Questão de Ciência. “A única coisa preocupante é a possibilidade de realmente não ser tão simples interromper a transmissão do vírus”, escreveu a cientista, em seu perfil no Twitter. A pesquisadora ressaltou que ainda são necessários novos estudos sobre o tema.
Quanto ao passaporte da imunidade em Fernando de Noronha, Pasternack afirmou ao HuffPost Brasil que é possível um agravamento da circulação do vírus no local porque não foi comprovado que pessoas que já se contaminaram e se recuperaram deixam de transmitir o novo coronavírus. “Há riscos certamente porque não sabemos se pessoas que já tiveram podem transmitir ou não”, disse a microbiologista.
Reinfecção x reativação do vírus
A virologista da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Clarissa Damaso reforça que a presença de anticorpos não significa imunidade. “Não se sabe o quanto IgG positivo significa voltar ou não a ter a infecção de novo. Vírus respiratório você pode fazer reinfecção. Isso é normal”, afirmou ao HuffPost Brasil. Se a pessoa está infectada, em tese, ela poderia transmitir, mesmo se assintomática.
Além da possibilidade de se contaminar de novo, é possível que ocorra uma reativação do vírus. “A pessoa pode persistir com certa quantidade de vírus no organismo. Tem pessoas que mantêm o vírus muito tempo”, completou a pesquisadora. Na avaliação de Damaso, a única forma de garantir que a pessoa não transmite é com um resultado de PCR negativo.
A pessoa pode persistir com certa quantidade de vírus no organismo. Tem pessoas que mantêm o vírus muito tempo.Clarissa Damaso, virologista da UFRJ
A epidemia em Fernando de Noronha
A decisão de abertura do arquipélago para turistas foi tomada em um momento em que a epidemia está controlada em Noronha e há certa melhora no quadro geral em Pernambuco, ainda que alguns números sigam altos. Na semana encerrada em 29 de agosto, foram registrados 6.124 casos e 183 óbitos em Pernambuco. Porém, há 3 semanas, há queda nos novos casos e há 4 semanas, redução nas mortes.
Em coletiva de imprensa na última semana, o secretário de Saúde de Pernambuco, André Longo, disse que Noronha é um “caso de sucesso do ponto de vista do controle da covid-19”. “Não há transmissão comunitária na ilha há um bom tempo. E nós assim precisamos manter. É óbvio que esse passo que vai ser dado busca a segurança e reativação das atividades econômicas no arquipélago”, afirmou.
O primeiro caso do novo coronavírus em Fernando de Noronha foi registrado em 27 de março. Até 16 de agosto, foram registrados 103 casos e nenhum óbito. De acordo com sistema de monitoramento da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), segundo a quantidade de casos detectados, o arquipélago ocupa a 133ª posição na comparação com outros municípios de Pernambuco e o 2.911º lugar no ranking nacional.
De acordo com o monitoramento, o recorde de registros ocorreu em 10 de junho, quando 31 casos foram notificados. O último caso registrado foi em 3 de agosto.
Além de fechar para turistas, também foram impostas restrições aos moradores. Desde 5 de abril, aqueles que estavam no continente não puderam mais entrar. O retorno para esse grupo voltou a ser permitido a partir de 13 de junho, primeiro em voos quinzenais e depois semanais. Antes do embarque, todos precisavam apresentar resultado negativo em exame feito no continente, na semana da viagem.
No desembarque, era necessário seguir um protocolo. Os passageiros recebiam uma pulseira de identificação que só deveria ser removida pela equipe de vigilância em saúde no fim da quarentena ou quando saísse o resultado do segundo teste, realizado na ilha, confirmando a ausência do vírus.
De acordo com gestores locais, 42 casos foram identificados em estudo epidemiológico em curso no arquipélago, que deve ser concluído em 2021. Desse total, 17 pessoas que testaram positivo, mais 3 que tiveram contato com elas, vieram do continente, desde a reabertura do aeroporto.
A retomada das atividades começou em junho, com reabertura de bares, restaurantes e lanchonetes. Além da permissão para turistas, o governo local anunciou a autorização para a 32ª edição da Regata Internacional Recife-Fernando de Noronha (Refeno), em outubro. Um protocolo sanitário para o evento será divulgado, de acordo com a administração.