Judiciário
A cautelaridade administrativa na nova Lei de Licitações: mais do mesmo
A possibilidade de adoção de medidas cautelares administrativas no bojo do processo licitatório
Como temos insistido[1], o aspecto de uma atuação preventiva da Administração Pública, em particular por meio de medidas cautelares administrativas, vive o paradoxo de ser uma matéria ainda desconhecida e vista como um certo tabu (como indisponibilizar ou apreender bens sem que tenha havido a finalização de um processo administrativo?) ao mesmo tempo em que é usada cotidianamente em vários setores da atuação administrativa (a utilização de medidas cautelares pelos PROCONs ou por entidades de proteção ambiental, a exemplo do IBAMA, é prática corriqueira).
Nesse tocante, a nova legislação que rege as licitações e contratos da Administração Pública (atualmente ainda o Projeto de Lei 4.253/2020, que foi aprovado pelo Senado em 10/12 e segue para sanção presidencial), que veio a substituir a famigerada Lei nº 8.666/93, reproduz expressamente o traço da cautelaridade administrativa nas licitações e contratos já existente na legislação prévia.
Uma primeira amostra disso pode ser notada no artigo 103, inciso V, da nova Lei, que trata das prerrogativas da Administração. O inciso prevê que pode o Poder Público ocupar provisoriamente bens móveis e imóveis e utilizar pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, nas hipóteses de: a) risco à prestação de serviços essenciais; b) necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas contratuais pelo contratado, inclusive após extinção do contrato. A situação de risco da alínea “a” e a expressa menção a “acautelar” na alínea “b” são indicativos de que se está a tratar de provimentos acautelatórios.
Vê-se que essa previsão não é uma novidade, já que o artigo 58, inciso V, da Lei nº 8.666/93, tinha redação praticamente idêntica, identificando que a Administração Pública possui a prerrogativa de, “nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, na hipótese da necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas contratuais pelo contratado, bem como na hipótese de rescisão do contrato administrativo”.
Quanto à primeira parte do dispositivo, a doutrina brasileira tendia a se manifestar no sentido de que, com o advento da Lei nº 8.987/95, houve uma revogação tácita da parte que prevê a ocupação provisória de bens em casos de serviços essenciais, já que a Lei nº 8.666 estaria tratando justamente dessa hipótese de delegação de serviços públicos, o que a outra lei mencionada disciplinou de maneira específica[2].
O que irá dizer essa mesma doutrina agora que, em legislação posterior, a previsão se repete? Nos parece certo que não houve revogação tácita, como queriam crer os que defendiam essa possibilidade. Ou, ainda que tivesse havido essa revogação tácita, parece que, por haver agora legislação posterior, ela teria trazido intencionalmente essa figura da ocupação cautelar, como um espécie de “repristinação expressa”.
No que se refere à ocupação de bens para acautelar a apuração administrativa de faltas contratuais, esta sempre permaneceu válida (agora é reiterada pelo legislador), embora se encontre em autores, como Marçal Justen Filho, o entendimento de que seria inconstitucional. Para o administrativista, essa solução seria incompatível com a Constituição, uma vez que, fora o caso de requisição, o apossamento da propriedade privada dependeria de autorização judicial[3].
Sem embargo da colocação acima, nos parece que a afirmação de que o “apossamento da propriedade privada” somente poderia ocorrer por ordem judicial não se encontra adequada à luz do nosso ordenamento jurídico. Há diversos dispositivos legais que autorizam a Administração Pública a restringir a propriedade (por meio de apreensões, embargos, interdições, indisponibilidades etc.) como medida cautelar (não definitiva). Pode-se indagar, é claro, se esse provimento cautelar específico seria proporcional, se não haveria alguma outra medida menos gravosa para se alcançar o mesmo objetivo etc., o que poderia torná-lo, eventualmente, inconstitucional. Mas descartá-lo simplesmente porque afeta a propriedade privada pela via administrativa não é um argumento capaz de se sustentar.
Além disso, vê-se a intenção legislativa em manter essa figura acautelatória como um instrumento válido a ser utilizado pelo gestor público, já que, tendo o legislador a oportunidade de afastá-lo, optou, em revés, por mantê-lo na novel lei de licitações.
Por outro lado, pecou a nova legislação em não tornar expressa a possibilidade de adoção de medidas cautelares administrativas no bojo do processo licitatório. Seria de todo recomendável que a lei tivesse trazido expressa a possibilidade de se suspender uma licitação no caso de receio de algum dano ou indício de alguma irregularidade (fora a possibilidade de suspensão contratual, a legislação parece trabalhar somente com o binômio simplista de revogação e anulação da licitação). Não obstante, já na vigência da legislação antecedente havia a adoção de medidas cautelares pela própria Administração em relação a contratos e licitações[4], tendo por fundamentação jurídica a norma extraída do artigo 45 da Lei nº 9.784/99, que se trata do permissivo normativo para a existência de um poder geral de cautela administrativa.
De maneira ilustrativa, cite-se, sob a invocação do artigo 45, o caso de suspensão de um certame licitatório em razão de uma empresa licitante, que talvez pudesse se sagrar vencedora, ter sido a responsável pela inexecução de inúmeros outros contratos administrativos, gerando considerável dano ao Erário. Como a apuração dessas inexecuções contratuais ainda estava em curso, sem a aplicação de uma penalidade, optou o gestor por suspender cautelarmente a licitação até a apuração definitiva das possíveis infrações, já que havia um risco de dano à Administração Pública caso essa empresa vencesse o certame.
Deve-se destacar que essa cláusula aberta do poder geral de cautela, plenamente aplicável às licitações e aos contratos administrativos, não constitui um “cheque em branco” para o Poder Público adotar medidas cautelares da forma que bem lhe aprouver. Quatro aspectos mínimos – para não descer nas minúcias de todos os nuances da cautelaridade[5] – devem estar presentes para a aplicação desse artigo: a) é necessária a comprovação de uma situação de urgência, de perigo na demora (periculum in mora), a justificar um ato cautelar; b) é preciso que se demostre que há indicativos mínimos, porém sólidos, a evidenciar que a situação de urgência e todo o contexto que a permeia de fato é verossímil, em uma ideia de fumaça do bom direito (fumus boni iuris); c) a medida cautelar necessita ser proporcional. Deve-se levar em consideração a finalidade do provimento cautelar (adequação), se não há meios menos gravosos de se alcançar a mesma finalidade (necessidade) e se o fim perseguido pelo medida cautelar possui uma relevância superior a todos os danos gerados pelo provimento acautelatório (proporcionalidade em sentido estrito); d) por fim, é essencial que a medida cautelar venha acompanhada da devida motivação-justificação, não sendo possível uma alegação genérica e abstrata para tal fim.
Apesar de, como visto, não ser uma verdadeira novidade a possibilidade de cautelares administrativas em relação às licitações e e aos contratos (infelizmente acabou a nova lei só reproduzindo os termos da sua antecessora), espera-se que com a reiteração textual feita pelo legislador, autorizando o uso de provimentos acautelatórios, as medidas cautelares administrativas adotadas sejam mais qualificadas e adequadas ao ordenamento jurídico e que possamos desmistificar o poder cautelar administrativo.
[1] Vide https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-ainda-desconhecida-cautelaridade-administrativa-19072020
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos.15.ed. São Paulo: Dialética, 2012, p.847.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos.15.ed. São Paulo: Dialética, 2012, p. 846.
[4] Nem estamos falando dos temidos provimentos cautelares aplicados pelos Tribunais de Contas – alguns legítimos e tantos outros em desrespeito ao texto constitucional. Falaremos sobre isso e as inovações da nova lei em um próximo artigo
[5] Para um maior aprofundamento sobre a temática da cautelaridade administrativa, vide os nossos CABRAL, Flávio Garcia. Natureza jurídica das medidas cautelares administrativas patrimoniais. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura., v.8, p.173 – 201, 2019 e CABRAL, Flávio Garcia. Os pilares do poder cautelar administrativo. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 18, n. 73, p. 115-139, jul./set. 2018 . Ademais, encontra-se no prelo nossa obra “Medidas cautelares administrativas: regime jurídico da cautelaridade administrativa”, que será publicada no início do ano de 2021.
FLÁVIO GARCIA CABRAL – Pós-Doutor em Direito pela PUCPR; doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP; professor e procurador da Fazenda Nacional.
Jota