CIÊNCIA & TECNOLOGIA
Como robôs sexuais e carnes veganas podem mudar o mundo ao seu redor
Jornalista Jenny Kleeman explora os desdobramentos filosóficos, éticos e morais das inovações que mexem com os quatro pilares da humanidade
Criatura de águas profundas, Jenny Kleeman se adaptou com facilidade à densidade literária. A jornalista inglesa, que fez carreira como documentarista para grandes veículos, como a BBC, lançou há poucos meses o seu primeiro livro, “Sex Robots and Vegan Meat”, ainda sem tradução para o português.
A obra explora os desdobramentos éticos e morais de tecnologias que afetam os quatro pilares da humanidade: o nascimento, o sexo, a comida e a morte.
Para mergulhar de cabeça na temática, Jenny dedicou cinco anos de sua vida para investigar inovações e conversar com quem as desenvolve, nos bastidores. A jornalista também encontrou pessoas que se colocam a favor e contra esses avanços, na esperança de trazer uma narrativa igualmente provocativa e isenta.
Em entrevista à IT Forum, porém, Jenny se mostrou humana, demasiadamente humana – a ponto de confessar seus vieses e de abocanhar sua própria hipocrisia. “Sei que o consumo de carne animal não é correto ou sustentável, mas ainda o faço. Em quantidades menores, é verdade, mas ainda o faço”, disse.
Acompanhe a seguir o bate-papo que tivemos com a jornalista inglesa sobre seu mais recente trabalho e sobre como a tecnologia deve mudar a humanidade.
IT Forum – Quando você decidiu escrever “Sex, Robots and Vegan Meat”, porque decidiu abordar as áreas do sexo, comida, nascimento e morte? Por que não escrever um livro para cada temática?
Jenny Kleeman – Essa é uma pergunta muito boa e a resposta mais honesta é: porque eu acho que esses são os quatro pilares fundamentais da existência humana, que desde os primórdios chegam ao mundo através de corpos, sobrevivem comendo animais mortos, buscam relações sexuais e não têm nenhum controle sobre sua morte. Isso é o que nos une aos homens das cavernas – é que todos nós tivemos o mesmo tipo de experiência. Então eu estava interessada nisso; estava interessada em saber o que significa ser humano e como essas tecnologias podem estar prestes a mudar o que significa ser humano.
IT Forum – E você apurou material para mais de uma obra…
J.K. – Sim, eu poderia ter escrito quatro livros, um para cada área. Foi muito difícil decidir o que ficaria de fora, mas eu percebi que todas essas temáticas se unificam em uma questão, que é: o que acontece quando seres humanos tentam controlar o que sempre esteve fora de seu controle? Quais são as consequências não-intencionais de se tentar isso? Foi então que, em vez de escrever quatro livros, eu resolvi que escreveria um que abordaria tudo isso de uma vez só.
IT Forum – Você fala de tecnologias incríveis, como a ectogênese, que é a gestação fora do corpo humano. Não acha que todas essas inovações podem acabar nos afastando do que nos faz humano?
J.K. – Acho que estamos redefinindo os elementos da nossa existência. O alimento, o sexo, o nascimento e a morte nos fazem animais, sabe? São áreas que compartilhamos com todos os seres vivos. O que nos faz humanos é a nossa habilidade de inovar e usar tecnologia. Mas eu diria ainda que o que nos separa dos demais animais não é apenas isso, mas também a nossa capacidade de nos organizar socialmente e de compartilhar ideias.
IT Forum – A tecnologia seria a nossa resposta final, então?
J.K. – O livro reflete sobre a tensão entre apostar na tecnologia para resolver problemas ou apostar no fato de que podemos mudar nosso comportamento e nos adaptar para resolver problemas. Essas duas coisas nos fazem humanos. O perigo, ao meu ver, não é pensar na tecnologia como uma solução fácil para tudo. É mais fácil comprar uma máquina que faça tudo para você do que se preparar, mudar e se adaptar. Existe uma tensão entre esses dois caminhos. Tudo isso me leva a pensar nas nossas definições do que é ser humano. O que nos faz humanos é nascer do corpo de uma mulher? É a nossa capacidade de ter empatia? Nossa habilidade para mudar? Nosso desejo por inovação? Ou seria tudo isso junto?
IT Forum – Antes que nos aprofundemos ainda mais nesse assunto, fico pensando que muita gente que nos lê agora provavelmente não teve a chance de acompanhar o seu livro, visto que ele ainda não foi traduzido para o português. Poderia dar à nossa audiência uma pequena amostra, ou resumo, da obra?
J.K. – O livro examina quatro invenções diferentes nas áreas de nascimento, comida, sexo e morte. Comecei com sexo e olho para robôs sexuais: como seria a vida se você pudesse ter um parceiro humanóide hiper-realista que existe apenas para você, apenas para o seu próprio prazer? Um parceiro que quer exatamente o mesmo que você, gosta das mesmas coisas e que nunca diga não ao sexo quando você estiver com desejo.
IT Forum – E então passamos para a comida…
J.K. – Na parte alimentar eu falo sobre o cultivo de “carne” em laboratórios: como seria o mundo se pudéssemos comer carne sem matar animais? Uma carne perfeita, projetada exatamente como você deseja, sem sofrimento animal e nenhum dos danos aos planetas que obtemos com a agricultura industrial convencional.
IT Forum – A seção dedicada ao nascimento é uma das mais intrigantes.
J.K. – Ali falamos sobre úteros artificiais. E se pudéssemos ter bebês sem que nenhuma mulher precisasse engravidar? Como isso afetaria a dinâmica entre os sexos e como isso afetaria os direitos das mulheres? Já na parte final do livro discutimos sobre máquinas de eutanásia: e se pudesse haver um dispositivo que proporcionaria uma morte perfeita, pacífica e indolor no momento de sua escolha?
IT Forum – Qual foi a sua metodologia de apuração?
J.K. – Ao longo dos cinco anos de elaboração desse livro, conheci as pessoas que desenvolviam essas tecnologias. Conheci pessoas que querem usá-las. Conheci pessoas em campanha contra essas inovações e explorei quais são as consequências não-intencionais de tentar controlar o nascimento, a comida, o sexo e a morte com a tecnologia.
Leia também: Tecnologia e inovação: instrumentos dos autistas pela igualdade
IT Forum – O livro foi publicado em julho de 2020, quase um ano atrás. Sabendo que a tecnologia avança a uma velocidade surpreendente, sente que há alguma necessidade de edição?
J.K. – É curioso que me pergunte isso, porque a versão de bolso está sendo lançada agora no Reino Unido e ela vem com um epílogo atualizado. Senti a necessidade de mudar isso por diferentes razões. A primeira é porque o epílogo original dizia que nenhuma das invenções abordadas estava disponível no mercado. Mas entre julho e agora isso mudou, e algumas das tecnologias estão disponíveis. Há também a pandemia que, de muitas maneiras, acelerou a necessidade dessas inovações. O que poderia ter mais distanciamento social do que fazer sexo com um robô? Queremos, mais do que nunca, controlar nossas mortes, agora que enfrentamos o caos de uma pandemia. E, de muitas maneiras, a própria pandemia foi causada por nosso relacionamento com os animais e floresceu em lugares onde a carne é vendida em feiras e mercados. Todo mundo sabe que essas doenças são zoonóticas; elas vêm de animais, então eu atualizei isso também. Como jornalista, sofro um pouco com esse processo, sobretudo porque é meu primeiro livro e publicar um livro é muito diferente de fazer jornalismo.
IT Forum – O que exatamente “dói” para você?
J.K. – Os livros devem ter uma vida útil de cinco anos, e então eu fico querendo atualizá-lo para que ele cumpra esse ciclo, mas sei que é inviável. De qualquer forma, estou satisfeita com o resultado e me alegra saber que, daqui pra frente, posso escrever artigos para me referir aos temas do livro sempre que há novidades nessas áreas.
IT Forum – Concordo contigo que, como jornalista, temos a necessidade de revisitar trabalhos antigos e atualizar com alguma nova informação. Isso mostra que nossa necessidade de controle, como seres humanos, vai muito além dos nossos instintos. Como você lida com a sua necessidade de poder e controle?
J.K. – Suas perguntas são tão certeiras, porque falava há pouco justamente de como esse livro é sobre esse tipo de patologia do desejo humano de controlar tudo. Eu não sou uma exceção: também tenho a mesma necessidade patológica de controlar, ou pelo menos de dominar e conhecer. Todos nós sentimos o impulso de dominar o que nos cerca. Embora eu tenha plena consciência de que sinto isso, devo aceitar que nunca serei capaz de dominar tudo, nem no trabalho, nem na vida.
IT Forum – Algumas tecnologias que você aborda no livro estão no mercado, outras estão prestes a estrear no mercado e algumas ainda são realidades distantes. Acha que o nosso maior desafio agora é mais ético e moral, ou é mais tecnológico mesmo? Quero dizer, para avançarmos, precisamos de mais tecnologia ou de mais discussão?
J.K. – Acho que, para algumas das invenções, discussão. Para úteros artificiais, é definitivamente uma questão ética e legal. Robôs sexuais já estão no mercado, carne cultivada em laboratórios também. Então eu acho que essas tecnologias são inevitáveis, a questão é ter uma discussão sobre elas antes que cheguem às nossas lojas, à nossa porta. Para que, quando for a hora, tenhamos as ferramentas para um consumidor crítico. Todas essas tecnologias dependem de uma espécie de sistema capitalista por meio do qual atendem a uma necessidade de mercado. E nós, no final das contas, como consumidores, temos o poder de dizer que não queremos ou não queremos dessa forma. E é sobre isso que o livro trata; trata-se de poder desencadear essas discussões agora. Porque, no momento, estamos tão deslumbrados com a ideia de coisas que parecem ficção científica, que realmente não pensamos nas consequências não intencionais e se queremos ou não fazer parte dessa sociedade a qual estamos caminhando.
A gente percebe que você tenta ser distante e imparcial na sua narrativa, já que você não expressa abertamente nenhuma opinião.
IT Forum – Mas queria saber se, em algum momento deste trabalho, você mudou de ideia a respeito de alguma coisa, por conta de uma entrevista ou tecnologia que abordou no livro.
J.K. – Acho que está bastante claro, nas entrelinhas, o que penso de cada uma das tecnologias que abordo ali, mesmo que não tenha escrito com todas as letras. Eu tive um “problema” quando estava fazendo a seção de carne cultivada em laboratório, porque quando eu comecei a trabalhar nisso, encontrei algumas pessoas realmente notáveis. Bruce Friedrich, do Good Food Institute, é uma delas. O executivo é uma pessoa realmente impressionante e muito moral, que eu conheci bem no começo da minha pesquisa. Ele defende o cultivo de “carne” em laboratório de uma forma eloquente e está preparado para responder a qualquer pergunta. Ele estava tão seguro de que esse seria o futuro do planeta que, depois da nossa conversa, eu estava realmente convencida de que não havia nada problemático nessa questão e eu queria explorar dilemas éticos de inovação. Cheguei mesmo a pensar que poderia não haver uma história ali e que eu tinha acabado de conhecer uma pessoa que, um dia, poderia mudar o mundo e ser o ganhador do Prêmio Nobel…
IT Forum – Mas isso mudou rapidamente…
J.K. – Sim, porque eu logo descobri que nem todo mundo nessa indústria é como ele. Que nem todos são motivados pelos mesmos valores. Sabe, na jornada de construção desse trabalho foram muitas as vezes que o meu destino final era completamente diferente daquele que eu traçava no ponto de partida.
IT Forum – Poderia me dar um exemplo?
J.K. – Na parte de robôs sexuais eu achava que os argumentos contra essa tecnologia seriam os típicos argumentos feministas, de que esses humanóides perpetuariam a objetificação da mulher e etc. Mas então eu cheguei a esse lugar completamente novo. E embora a mulher seja objetificada, eu entendi que o dilema ali era como nós, homens e mulheres, seremos afetados pela possibilidade de termos um arranjo em que apenas um dos envolvidos determina o que quer, quando quer e como quer. Como isso vai mexer com a nossa empatia? Desde a antiguidade sabemos que humanos são fascinados pelo poder absoluto, pela ideia de controlar tudo e todos. Por isso tivemos escravos na Grécia Antiga e na Roma Antiga. Foi aí que eu entendi que a questão dos robôs sexuais não têm, afinal, nada a ver com sexo, mas com poder e controle – e eu não esperava chegar a essa conclusão.
IT Forum – Você acha que todas essas tecnologias podem ser parte de um efeito dominó? No momento em que uma peça “cair”, é só uma questão de tempo para as outras fazerem o mesmo?
J.K. – Acho que as coisas podem mudar muito. Coisas que pareciam ficção científica podem se tornar completamente mundanas. No livro eu falo sobre a fertilização in vitro, por exemplo. A primeira vez que discutimos isso parecia algo totalmente estranho e anormal. Onde já se viu conceber um bebê fora do corpo humano? E agora, se eu me sentar no metrô em Londres, há anúncios para isso nas paredes e muitos dos meus amigos tiveram seus filhos assim. Fertilização in vitro está até disponível no NHS (espécie de SUS inglês). O lance é que, quanto mais dependemos da tecnologia, mais normal será ter tecnologia nessas áreas muito íntimas de nossa vida. Então eu concordo contigo que pode haver uma espécie de efeito dominó. Uma vez que você aceita a intervenção tecnológica em esferas muito privadas de sua vida, fica mais fácil para ela entrar em outras esferas igualmente privadas de sua vida. Estamos nos tornando dependentes da tecnologia.
IT Forum – Dito isso, não acha perigoso que a tecnologia esteja sempre nas mãos de poucas pessoas?
J.K. – É o preço que pagamos para ter conveniência e conforto. Sabe, no livro eu falo de como nos tornamos viciados e dependentes dos nossos celulares. E eu me enquadro nisso também. Eu uso a Siri quando estou cozinhando e um dia um amigo me falou: “então você está disposta a permitir que um telefone ouça todas as suas conversas para que você tenha a conveniência de não ter que usar as suas mãos para manipular o cronômetro?”. E é verdade, essas pequenas incursões em nossas vidas, que nos acostumamos… pagamos um preço por isso, pela comodidade. Então, sim, acho que precisamos pensar sobre quem tem o poder e o que está sendo negociado.
IT Forum – No Brasil a religião é um tema bastante sensível que, por vezes, esbarra em certos avanços e inovações. Você acha que a fé pode ser um obstáculo nas tecnologias abordadas no livro?
J.K. – Acho que a religião esquenta o tom do debate de temas sensíveis, como a eutanásia e tópicos relacionados ao nascimento. Mas vale lembrar que, mesmo em países católicos, a fertilização in vitro acontece e sem nenhum tabu. Mas, sim, acho que em países onde religião e política se misturam, haverá mais proibições para certos tipos de inovação tecnológica. Apesar das resistências, acho que os avanços chegarão a todos os lugares – é só uma questão de tempo e de pressão popular.
IT Forum – E como fica a questão da desigualdade? Acha que o abismo social é mais evidente num mundo tecnológico?
J.K. – Acho que sim. Certamente todas as tecnologias que eu analiso no livro são tecnologias de elite; elas serão muito caras. Mesmo aquelas que supostamente são tecnologias globais. Há uma preocupação, por exemplo, especialmente sobre a carne produzida em laboratório, de que será uma forma de as nações mais ricas afirmarem sua superioridade ética sobre as nações pobres. Porque eles vão poder dizer, “olha só esses países bárbaros que ainda comem animais. Não comemos animais, comemos carne, mas não precisamos de animais”. Da mesma forma, as implicações sociais dos úteros artificiais são enormes.
IT Forum – Por quê?
J.K. – Imagine uma mulher poder continuar trabalhando e não se preocupar com enjoos matinais ou com viagens. Se uma mulher pode continuar sendo economicamente produtiva, porque não está grávida de seu bebê, isso pode levar a um elitismo não desejável. A gravidez natural se tornará um sinal de pobreza ou desorganização. Acho mesmo que há uma grande possibilidade, não apenas em nível individual, mas em nível nacional, de essas tecnologias causarem uma maior disparidade entre pessoas mais ricas e pobres; países mais ricos e países pobres.
IT Forum – E essa disparidade deve também ser notada na relação entre homem e mulher, pelo que você explica no livro…
J.K. – Acho que a relação entre homem e mulher já está mudando. E eu acho que a barreira, as fronteiras entre masculino e feminino já estão se transformando, mas isso é outra coisa. Quero dizer, o tipo de essencialismo biológico da definição de homem e mulher está mudando. Pessoalmente, acho que vai haver uma reação contra isso. Eu sinto que, pelo menos em meu país, temos um problema real em como definimos homem e mulher; masculino e feminino. E eu acho que há uma espécie de pêndulo que oscila de um lado para o outro. Mas acho que a tecnologia será realmente central nesse debate.
IT Forum – Poderia se aprofundar nisso?
J.K. – Você sabe o que é uma mulher? A mulher é alguém que tem útero? Mulher é quem menstrua? Mulher é cromossomicamente feminina? Como você define isso? Acho que as implicações da tecnologia para a diferença entre homens e mulheres serão enormes. Porque, por exemplo, com úteros artificiais, homens e mulheres serão completamente iguais no mundo da reprodução. No momento, os homens precisam fornecer apenas uma célula para ter um bebê. As mulheres precisam fornecer seus corpos por nove meses e depois dar à luz, o que é uma coisa potencialmente muito perigosa. E haverá paridade reprodutiva completa com o útero artificial, o que poderia vir a ter um grande custo para as mulheres, eu diria.
IT Forum – Que custo?
J.K. – Muitos dos nossos direitos e nossos papéis são definidos pelo fato de que carregamos nossos próprios filhos. Então, eu acho que nos próximos 10 ou 15 anos, tudo dependerá da possibilidade dessa tecnologia e de como queremos usá-la. De muitas maneiras, depende do tipo de qualidade do debate que podemos ter sobre igualdade, antes que essas tecnologias cheguem. Queremos usar essas tecnologias para emancipar e para libertar as mulheres? Ou queremos usar essas tecnologias para controlar as mulheres?
IT Forum – Como controlaríamos as mulheres?
J.K. – Podemos usar essa tecnologia para dizer que uma certa mulher é inadequada para carregar um bebê, por exemplo. Podemos escolher colocar seus bebês em um útero artificial porque elas bebem ou fumam, porque praticam esqui na neve, porque gostam de cavalgar ou porque comem o tipo “errado” de comida. É o destino de uma preocupação constante com a qual poderíamos controlar o comportamento das mulheres, eu diria.
IT Forum – Engraçado você falar sobre o tipo “errado” de comida, porque há uma onda crescente de veganismo. Apesar de termos alguns alimentos que sejam uma ótima substituição para produtos de origem animal, ainda consumimos muita carne. Por que acha que somos tão resistentes em abraçar essas tecnologias alimentícias?
J.K. – Bem, eu acho que uma das coisas que eu não esperava ao escrever o livro era… Sabe, sou uma jornalista que segue tudo o que acha interessante, mas não sou necessariamente uma jornalista feminista. Claro, acredito que deveria haver igualdade entre homens e mulheres, mas não escrevi este livro pensando que haveria um ângulo feminista em cada uma dessas tecnologias. No entanto, cada uma dessas invenções revelou algo sobre a dinâmica entre homens e mulheres. E, certamente, quando se tratava de carne cultivada em laboratórios ou da resistência em desistir de comer as quantidades de carne que comemos agora, percebi até que ponto a carne é masculina. E o consumo de carne ou o consumo excessivo de carne é visto como parte do ser homem.
IT Forum – Então tem um caráter cultural?
J.K. – Ser homem é dominar animais, matar animais, fazer fogo e cozinhá-los. E isso é algo que encontro em minha própria casa: quando estava escrevendo o capítulo em que examino todos os danos ambientais causados por comer carne, conversei sobre o tema com meu marido e ele levou para o lado pessoal, porque não queria que eu dissesse que ele não deveria comer tanta carne. Parte da definição de masculinidade vem do consumo de carne e em todos os lugares em que a carne é comida, os homens a comem mais do que as mulheres. Portanto, o consumo excessivo de carne é um problema masculino. A solução que essa tecnologia pretende fornecer é para um problema que é causado, em grande parte, pelo apetite masculino por carne.
IT Forum – E para fechar esse papo, queria fazer uma pergunta um pouco mais elaborada. No Brasil, muita gente acha que problemas relacionados à depressão e outros transtornos emocionais/psicológicos são associados ao ócio. É comum, por exemplo, recomendarmos “uma pia de louça” para quem se queixa de alguma tristeza vista como infundada. A tecnologia tem nos livrado de muitas responsabilidades e permitindo que tenhamos ainda mais tempo disponível. Acha que essas inovações terão algum impacto na nossa saúde mental?
J.K. – Com certeza absoluta essas inovações vão impactar nossa saúde mental. Eu concordo em grau, número e gênero com isso. Antes de começar a fazer esse tipo de reportagem, eu desenvolvi projetos em partes do mundo em desenvolvimento. Fiz até um filme na Amazônia, com os Yanomamis, no Brasil. E lá vi o quão dependente sou da tecnologia, de uma forma que aquelas pessoas não eram. Mas me dei conta do fato de que quando um problema é resolvido, procuramos logo outros problemas para resolver. Em países onde existem problemas existenciais realmente urgentes, não há anorexia, bulimia, transtorno de identidade de gênero… aliás, talvez haja, mas não na mesma dimensão. Quando você está procurando salvar sua vida e sua existência diária, tende a não ficar tão angustiado com outras questões, eu diria. E tenho certeza que essas tecnologias, as implicações de todas essas tecnologias, serão enormes para a saúde mental. Não sabemos quais serão essas implicações, mas está fadado a acontecer. E meu livro é exatamente sobre essas consequências não-intencionais. Tenho certeza que vai causar angústia e crise o fato de você poder ter filhos sem estar grávida; que poderá escolher quando e como morrer; e a ideia de que é possível ter um parceiro que você controla totalmente – tenho certeza que tudo isso terá enormes implicações para a saúde mental. Pessoalmente, acho que há paz em ser capaz de resolver problemas mudando seu comportamento, em vez de terceirizar a solução para bits de tecnologia. E há o perigo de imaginar que a resposta sempre virá de máquinas e invenções, em vez de ter a força e o poder reais que vêm de saber que você pode mudar a si mesmo.
IT Forum – Escolher como e quando morrer… a experiência da morte, assim, controlada, vai alterar a nossa relação com a vida.
Pode ser, mas tudo depende se temos ou não medo da morte. Sabe, num programa de rádio eu tive a oportunidade de conversar com alguns jornalistas brasileiros sobre a pandemia e sobre o número de pessoas morrendo no momento. E eu estava dizendo, “você sabe que as pessoas no Brasil têm medo de ver os números subirem”. E esse jornalista brasileiro me disse que, no seu país, as pessoas têm uma relação diferente com a morte. Não estou dizendo que as pessoas no Brasil têm menos medo da morte, mas que sua população é confrontada de uma forma diferente, eu diria. E acho que todos nós só precisamos ser capazes de ter conversas sobre morrer e envelhecer e o que tudo isso significa. E eu acho que quando tivermos menos medo da morte, então talvez o fim de nossas vidas terá um significado diferente. Será como fechar um livro ou encerrar um capítulo, e não esse grande espetáculo que fazemos porque tememos a morte.
Fonte: Itforum