Internacional
Tabelamento na Argentina gera ceticismo em economistas e crítica de empresários
A menos de um mês de eleição, governo congelou preço de 1.500 itens para tentar conter a inflação. Analistas veem pouca chance de sucesso, e produtores alertam para risco de desabastecimento
O governo argentino determinou nesta quarta-feira (20/10) o congelamento do preço de 1.432 mil itens de alimentação e bens de consumo por 90 dias, para tentar conter a inflação no país, que acumula 52,5% nos últimos 12 meses.
A medida foi bem recebida por muitos consumidores, que poderão usufruir das festas de final de ano com preços fixos, mas diversos economistas são céticos quanto à sua eficácia para reduzir a inflação no longo prazo.
Além disso, entidades que representam o empresariado criticaram o tabelamento e alertam que pode haver desabastecimento de produtos depois que os estoques dos itens hoje disponíveis se esgotarem. Afinal, se os fabricantes estiverem tendo prejuízo, é provável que paralisem a produção, argumentam.
O congelamento foi anunciado em um momento político sensível para o governo do presidente Alberto Fernández, que sofreu em setembro uma dura derrota nas primárias para as eleições de 14 de novembro, quando será renovada parte das cadeiras do Legislativo. A coalizão que comanda hoje o país teve 32% dos votos, contra 41% da oposição, resultado que estremeceu o governo.
Um boletim do Banco Central argentino elaborado a partir da estimativa de grandes consultorias projeta que a inflação de 2021 será de 48,2%. Já o PIB deve crescer 7,6%, após uma recessão de 9,9% no ano passado devido à pandemia de covid-19. Cerca de 40% da população argentina está em situação de pobreza.
“Congelamento tem poucos exemplos de sucesso”
O economista Fernando Couto, professor da Universidade de Buenos Aires, afirma à DW que programas de congelamento de preços podem até fazer sentido por um prazo delimitado, se estiverem inseridos em programas mais amplos de combate à inflação, como uma estratégia de transição para ancorar as expectativas de preços.
Antes de elaborar “um programa anti-inflacionário, seja heterodoxo ou ortodoxo, primeiro é preciso analisar quais são as causas da inflação, que não são as mesmas em todos os países”, diz. “Suponha que tenhamos isso e então criemos um programa: para evitar distorções de curto prazo e para que o programa possa funcionar com mais calma, pode-se chegar a um acordo de preço que possa tirá-los do contexto de ruído, ancorando as expectativas dos consumidores”, afirma Couto.
Segundo ele, as poucas histórias de sucesso no controle de preços para combate a inflação ocorreram nesse contexto, como outra medida dentro de um pacote mais amplo. O governo da Argentina, porém, não anunciou junto com o congelamento um programa de controle de inflação robusto, que atinja motivos estruturais da alta de preços.
“Remendo econômico”
Para o diretor do Centro de Estudos de Produtividade, Ariel Coremberg, nenhum plano foi anunciado pelo governo porque não há nenhum: “Não há política econômica, mas, como dizemos aqui, um ‘remendo’ econômico” mirando as eleições legislativas de novembro.
“Como o diagnóstico é que a culpa pela inflação é de um grupo de empresários monopolistas que, por interesses alheios ao país, aumentam os preços”, as causas reais não são abordadas, e é aplicado “um controle de preços quase soviético”, diz.
Ele afirma que duas causas importantes da inflação na Argentina são a emissão de moeda pelo Banco Central para financiar gastos públicos e o desequilíbrio fiscal do país, ampliado devido às medidas de combate à pandemia.
A emissão de moeda pelo Banco Central da Argentina para bancar o governo voltou a ser feita no último trimestre do governo do presidente Mauricio Macri, no final de 2019, após um período em que o país havia deixado a prática de lado por pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI), e mantida no governo de Alberto Fernández.
“O gasto público está completamente descontrolado. Não há auditoria que resolva, fazendo compras para os vulneráveis, como foi o caso, a quatro vezes os preços controlados do próprio governo. Isso não é financiado com mais dívida pública nem com impostos, porque eles não podem aumentar, mas com pesos ‘crocantes’, como dizemos, emitidos por um Banco Central que depende de Cristina Kirchner”, diz.
Empresários preveem desabastecimento
O congelamento de itens de alimentação e bens de consumo foi adotado após uma reunião com empresários na qual, segundo o secretário de Comércio Interno da Argentina, Roberto Feletti, teria havido “bastante consenso”.
Porém, houve percepção diferente entre os empresários. Antes da confirmação do congelamento de preços, a Coordenação das Indústrias de Produtos Alimentícios, entidade patronal que reúne centenas de empresas do setor de alimentos e bebidas, publicou um comunicado em que dizia “não estarem garantidas as condições para conciliar as possibilidades dos setores com o pedido de estabilização de preços”.
O presidente da Câmara Argentina de Comércio e Serviços, Mario Grinman, afirmou na quarta-feira que o tabelamento de preços provocará falta de produtos nas prateleiras.
“Haverá desabastecimento. Quando um fabricante esgota o estoque do produto que fabricou e provocou prejuízo, ele não voltará a fabricá-lo, não há como”, disse em uma entrevista a uma rádio. Para ele, controles de preço seriam “uma aspirina que alivia a dor momentânea de uma doença muito difícil”.
Em resposta a Grinman, Feletti escreveu em sua conta no Twitter que o governo lamenta “esse tipo de ameaças, que não são a um governo ou a uma política, mas ao povo argentino”.
“Nem ameaças aos argentinos nem desabastecimento (…). Passamos por um momento muito difícil e estamos tentando avançar, com todos fazendo a sua parte, para que a Argentina se torne definitivamente sustentável social e economicamente”, afirmou.
E depois do congelamento?
A teoria econômica em geral desestimula o congelamento de preços, embora em muitos países isso tenha sido utilizado em momentos específicos, como nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, ou para produtos básicos, como o pão na Espanha até recentemente.
Além da potencial escassez apontada por Grinman, o tabelamento pode levar ao desenvolvimento de um mercado negro paralelo, retardar a atividade econômica e criar mais desemprego.
Três meses não é tempo suficiente para que esses efeitos negativos de longo prazo possam ser sentidos. “Mas o que acontecerá em 8 de janeiro, quando a medida deixar de ser aplicada?”, questiona Couto, da Universidade de Buenos Aires.
Se a medida funcionar e não houver aumento da inflação em janeiro, o governo poderá dizer que teve sucesso. Contudo, esses analistas avaliam que o cenário mais provável é que em janeiro a inflação recupere o terreno perdido durante o congelamento, e que o peso se desvalorize novamente em relação ao dólar.