Educação & Cultura
Folclore nas artes: como organizar o estudo nos Anos Iniciais do Fundamental
Em agosto, celebramos o Dia do Folclore, uma data importante para o trabalho e planejamento docente. Inspire-se em práticas para abordar a temática sob a perspectiva das artes
O calendário escolar é repleto de datas comemorativas e o Dia Nacional do Folclore, celebrado em 22 de agosto, é uma delas. Em muitas escolas, durante esse mês, cabe aos professores de Arte a preparação de material decorativo, figurinos típicos e da própria festa. Entretanto, é preciso atenção para que a importância da data seja respeitada, assim como a valorização do componente curricular enquanto área de estudo para o trabalho com o tema.
O termo Folclore surgiu como um neologismo criado pelo inglês William John Thoms, então bibliotecário da Câmara dos Lordes, em Londres. Em 22 de agosto de 1846, uma carta assinada por ele foi publicada na revista Athenaeum e nela aparecia pela primeira vez a expressão folklore, junção dos termos ingleses folk (em tradução literal, povo, mas geralmente usado para designar grupos em ambientes rurais, ligados à agricultura e com pouca instrução) e lore (sabedoria ou conhecimento).
Desta forma, o intuito de Thoms era dar um novo nome para o saber tradicional do povo e incentivar seu estudo. Deu certo: o Dia Nacional do Folclore está incorporado ao calendário escolar de muitos países. Conheça mais sobre a instituição dessa data aqui.
Andriolli Costa, jornalista, professor e consultor de folclore, ressalta a importância de se considerar, a partir do fato histórico que fez surgir o termo, os novos significados que ele ganha através do tempo. “O termo folclore surge em um contexto romântico e burguês, onde o folk, o povo, era visto como objeto de interesse, não como parte integrante da cultura. Hoje, precisamos considerar que também estamos dentro dessa dinâmica do popular. Não existe quem esteja apartado do folk”. Assim, estando intimamente ligado à vida cotidiana de todos, o folclore não deve ser trabalhado apenas em uma data específica, salienta o especialista.
O que diz a BNCC?
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) enfatiza em diversos trechos a necessidade de que as vivências e experiências das crianças em seu contexto familiar, social e cultural sejam respeitadas e utilizadas pela escola para a construção de novos conhecimentos.
A primeira competência específica de Arte para o Ensino Fundamental cita as “produções artísticas e culturais do seu entorno social, dos povos indígenas, das comunidades tradicionais brasileiras e de diversas sociedades”. No trabalho com o folclore nos Anos Iniciais, assim como em outras temáticas, é interessante partir do que está próximo do aluno. Ou seja, as manifestações folclóricas que ele já conhece ou pode observar com facilidade em seu entorno.
“Geralmente, quando estudamos cultura, falamos mais da cultura erudita e da indústria cultural. Já a cultura que é passada de geração para geração de forma mais espontânea, é quase renegada dentro do ensino formal. As pessoas têm o folclore dentro de casa e não se dão conta. Precisamos entender a importância da cultura popular tradicional para a composição da identidade cultural de uma cidade, região, país. Para as crianças, um bom trabalho com o folclore mostra que elas pertencem àquele lugar, que seus antepassados cresceram ali e legaram uma cultura”, comenta Marlei Sigrist, folclórologa, pesquisadora, membro da Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore (CSMFL) e autora do livro Chão batido: a cultura popular de Mato Grosso do Sul : folclore, tradição.
Arte e folclore, uma parceria que pode durar o ano todo
Para que as manifestações populares sejam trabalhadas durante o ano todo, Marlei recomenda que os professores dos Anos Iniciais vejam o folclore não enquanto um conteúdo, mas como rica fonte de materiais para o desenvolvimento de diversas habilidades. “É importante que a criança tenha contato com as manifestações folclóricas. Já as questões mais teóricas em torno disso podem esperar. Se o folclore auxiliar várias áreas de conhecimento, a criança vai sentir que ele está ligado a tudo: história, língua, meio ambiente, artes”, diz a especialista.
Para fazer isso, o professor de Arte pode começar planejando quais habilidades precisa trabalhar com a turma e, a partir delas, selecionar manifestações tradicionais e elementos da cultura popular para ajudar a desenvolvê-las. Mesmo que a habilidade não cite o repertório tradicional, nada impede que o professor dê preferência para elementos da cultura popular ao selecionar os materiais com os quais construirá suas aulas.
Como na BNCC o componente curricular Arte está centrado em quatro linguagens (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), não é difícil encontrar manifestações folclóricas que abarquem uma ou mais delas. Mitos, lendas, canções, danças, artesanatos, festas populares e brincadeiras são exemplos de manifestações folclóricas presentes no cotidiano e que podem ser levadas para as aulas de Arte em diversos momentos. Por exemplo, ao selecionar uma festa popular, o professor poderá trabalhar sua visualidade, as letras e ritmos de suas músicas, sua dança e a performance do festejo escolhido.
“Arte e cultura popular são inseparáveis. É importante dar valor para o saber tradicional e para as práticas populares. A escola precisa mostrar que a cultura popular não é inferior à erudita. Às vezes, as crianças pensam assim porque o menosprezo à própria cultura foi repassado a elas”, diz Andriolli. “Temos que dar valor ao que está próximo. O folclore é como se fosse um móvel antigo que você herdou, deixou parado em casa e foi jogando muitas coisas por cima sem nem perceber. Quando alguém vai lá e passa um verniz, você dá valor a ele, e essa é uma função da educação: dar um novo olhar para esse conjunto de manifestações ”.
Um cuidado importante para os professores dos Anos Iniciais é pesquisar manifestações folclóricas da cidade ou região em que a escola está localizada. Além de valorizar os saberes locais, essa atitude é importante pois facilitará a identificação e o entendimento dos alunos sobre o que está sendo estudado.
Por exemplo, o congado é uma importante manifestação popular brasileira, mas caso não seja próprio da região da escola, poderá ser estudado apenas por vídeos e materiais escritos. O mesmo pode ser feito com lendas como a do Saci, do Curupira e da Mula Sem-Cabeça que fazem parte do imaginário nacional e podem dar espaço para outras narrativas tradicionais da região.
Além de construir seu próprio repertório – relembrando narrativas que ouviu ao longo da vida, por meio de grupos tradicionais dos quais participa e pesquisas realizadas –, também é interessante que o professor investigue quais manifestações folclóricas os alunos e suas famílias conhecem. Talvez eles não saibam que isso faz parte do folclore de um povo, mas o professor pode traçar estratégias para levantar o repertório de tradições populares da comunidade escolar.
Segundo Marlei, o folclore só existe onde tradicionalmente acontece. Quando transposto para outro lugar, não se vive mais o folclore, e sim uma projeção dele. Sendo assim, para que o folclore não seja transformado apenas em objeto de estudo e de reprodução em ambiente escolar, é interessante organizar visitas a lugares importantes para a memória da comunidade e, quando possível, convidar mestres da cultura local (músicos, contadores de história, artistas) para se apresentarem na escola.
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Reduzir a Arte à organização de festas para o Dia do Folclore
Assim como os demais, a Arte deve ser valorizada enquanto componente curricular e área de estudos importante para a formação do sujeito. Caso a escola resolva fazer uma festa para esse dia, a função do professor de Arte deve ser a de organizar a apresentação do trabalho que foi desenvolvido com os alunos ao longo de várias aulas, e não a de ensaiar algo exclusivamente para a ocasião ou de apenas produzir material decorativo.
Confundir folclore com cultura indígena
Há muitas narrativas indígenas famosas e bastante recontadas pelas escolas, como a da Iara e do Curupira. Elas fazem parte do folclore nacional, mas isso não significa que folclore seja sinônimo de cultura indígena. Além de desrespeitar uma cultura, esse pensamento gera desinformação e afasta os alunos do olhar para as manifestações folclóricas que o cercam.
Resumir folclore a uma mera curiosidade
Ao apresentar lendas e tradições para as crianças, alguns adultos dizem que são apenas “historinhas” e “mentirinhas”. As histórias não são “mentirinhas” contadas para diversão, mas carregam significados importantes para uma comunidade. Por exemplo: que diálogo podemos estabelecer entre a história do Curupira e a importância da preservação ambiental?
Cópias de desenhos
Pedir que o aluno copie ou apenas pinte o desenho de um personagem folclórico faz com que ele reconheça a imagem, mas não ajuda a conhecer a narrativa, seu propósito e importância. A partir do que foi estudado, os estudantes precisam ser convidados a se expressar criativamente através de diversos tipos de linguagens artísticas.
Narrativas, encenações e danças: conheça experiências práticas para a valorização do folclore
O professor Paulino Rocha Barbosa cresceu no Arquipélago do Bailique (AP) e partiu para a capital do estado, Macapá, para estudar Pedagogia. Depois de concluir seus estudos, voltou para a região ribeirinha para realizar o sonho de contribuir com a educação local.
Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Progresso ele se tornou responsável por um projeto de leitura com os alunos do 5º ano. Ao começar a desenvolver esse trabalho, ele percebeu que o desafio estava não só na falta do hábito de leitura da turma, mas também no repertório oferecido pela escola.
“Percebemos que a escola tinha muitos livros de literatura infantil, e alguns estavam até embalados ainda. Disponibilizei todos para os alunos, mas eles não gostavam muito de ler aquelas histórias. Comecei a tentar entender o porquê, até que uma aluna me deu uma pista: disse que não gostava das histórias dos livros, mas, sim, daquelas que os pais e avós contavam. Então, eu percebi que no imaginário deles as narrativas do lugar eram muito importantes. Essa aluna sabia contar muitas dessas histórias, como a Lenda do Caranguejo Amazônico, e quando ela fazia isso chamava atenção de todo mundo, que também tinha histórias para compartilhar”, relembra Paulino sobre o projeto “Pequenos autores: navegando entre mitos e lendas das ilhas que bailam”, realizado em 2018.
Os alunos começaram a trazer histórias tradicionais de casa, contar oralmente para a turma e complementar as narrativas uns dos outros. Depois, eles registravam por escrito, cada um à sua maneira, e trabalhavam questões gramaticais com o professor. Para ampliar o alcance do projeto, todos os estudantes também eram incentivados a levar a história para ler em casa para a família. Depois, faziam uma roda de leitura para as turmas da Educação Infantil.
Segundo o professor, no contato que tiveram com os livros de literatura infanto-juvenil, os alunos perceberam que quase todos possuíam ilustrações. Assim, também quiseram ilustrar todas as histórias que escreviam. O material foi unificado e transformado em um livro. O projeto também previa transformar esse material em uma radionovela, cuja narração e personagens seriam desenvolvidos pelos próprios alunos, mas um problema de saúde de Paulino inviabilizou sua continuidade.
“A educação tem um currículo definido que, muitas vezes, parece partir de cima pra baixo, daquilo que a gente acha que é bom pro aluno. Nesse projeto, fizemos o contrário. A referência foram os rios amazônicos, as histórias dos avós e dos pais, que em alguns casos nem são alfabetizados. O que fizemos foi abrir as portas da escola para essas histórias populares”, conta Paulino, que percebeu um envolvimento significativo das famílias e um avanço muito grande na alfabetização da turma.
Já na Escola Municipal Professora Adeir de Oliveira, em Campo Grande (MS), a professora de Arte Cristiane Aparecida de Luca Lima desenvolve projetos sobre folclore desde 2007. Ela já foi responsável por iniciativas que uniam todas as turmas e componentes curriculares, da Educação Infantil aos Anos Finais do Fundamental. Hoje, o projeto está menor, mas não deixa de acontecer. Cristiane participa de grupos de dança folclórica e leva para os alunos do 4º ao 9º ano aulas teóricas e práticas de danças tradicionais no Mato Grosso do Sul, como o Siriri, a Catira e a Ciranda Pantaneira.
“No início, sempre noto uma certa dificuldade. Os jovens só querem fazer as danças que estão nas redes sociais, então temos que conquistá-los. Mas considero que tive uma adesão boa, quase metade deles quis praticar e ensaiar para uma apresentação que faremos”, diz a professora. Segundo ela, quem não quer dançar, participa do projeto de outras maneiras. Além das aulas sobre a história das danças e das músicas, todos assistem a vídeos, fazem pesquisas, podem dirigir a apresentação e criam artes visuais que retratam as manifestações populares.
Em algumas turmas, também estão sendo desenvolvidas pequenas peças de teatro sobre narrativas da região, como a Lenda do Minhocão, que sai à noite pelo Pantanal e devora pescadores.
“Como eu tenho essa familiaridade com dança, desenvolvo esse trabalho há anos e gosto de focar no regional. Todo começo de ano os alunos novos já perguntam se faremos “aquelas danças”. Mas tem professor que só trabalha com as lendas folclóricas mais famosas e eu recebo alunos que só conhecem a Lenda do Saci e do Lobisomem, mas não as nossas lendas regionais. Se o professor não for um pesquisador e um inventor de atividades, nunca vai sair da mesmice”, diz a professora Cristiane.