Judiciário
O debate da prescrição no STF e no TCU
Entre a segurança e a insegurança jurídica
No último dia 19 de outubro, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou a Resolução nº 344/2022, definindo prazo prescricional de cinco anos para as pretensões punitivas e ressarcitórias. A decisão pacifica anos de divergência jurisprudencial entre o TCU e o Supremo Tribunal Federal (STF).
A segurança jurídica é um dos pilares do Estado democrático de Direito. Por essa razão, é que o Estado deve não só a observar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, mas também a proteção da confiança legítima dos administrados[1], impondo, dessa forma, a previsibilidade e a estabilidade das ações e comportamentos estatais.
Dentre as formas de se garantir a segurança jurídica, encontra-se a estabilização, no tempo, de situações fáticas, o que se materializa no instituto da prescrição. Vale dizer: não pode o administrado manter-se sujeito a investigações e tomadas de conta por parte das Cortes de Contas por tempos indefinidos. Nesse contexto, a uniformização de entendimentos entre o STF e o TCU quanto ao prazo prescricional tanto da pretensão ressarcitória, quanto da sancionatória da Corte de Contas é um passo relevante para a segurança dos administrados.
É verdade que a matéria é ainda mais complexa se considerarmos a existência de Tribunais de Contas nas demais esferas federativas – atualmente, são 33 tribunais de contas de diferentes entes federativos. Ainda mais se considerarmos que o STF já entendeu ser concorrente dos estados membros a competência para legislar sobre normas de processo administrativo.
Na ocasião, o STF julgou improcedente a ADI nº 6.019, ajuizada pela Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR) questionando o artigo 10, inciso I, da Lei nº 10.177/1998, do Estado de São Paulo, que estabelecia o prazo decadencial de dez anos para o exercício, pela Administração Pública, do poder-dever de autotutela. Isso significa que, no caso da prescrição da pretensão de ressarcimento e sancionatória das cortes de contas, podem os estados membros definir seu prazo prescricional.
Dessa forma, se o particular deve observar diferentes prazos prescricionais a depender do ente federativo envolvido, ao menos, quando é o mesmo ente, a existência de prazos isonômicos confere maior segurança jurídica. É nesse contexto que, em 11/10/2022, o plenário do TCU[2] se reuniu em sessão extraordinária para discutir a elaboração de ato normativo sobre prescrição para os processos em trâmite na Corte, em consonância com a jurisprudência do STF. A Resolução nº 344/2022, aprovada em 19/10/2022, estabelece o prazo quinquenal, além de determinar os marcos iniciais e interruptivos para a contagem do prazo.
Como a alteração do entendimento quanto ao prazo prescricional – agora reduzido para cinco anos – pode afetar diversos processos em trâmite, a Resolução prevê, em seu art. 14, a prioridade para processos com maior risco de prescrição das pretensões punitiva ou ressarcitória. Nesses casos, os processos terão andamento urgente e tratamento prioritário pelas unidades técnicas e pelos gabinetes.
O debate encerra uma divergência jurisprudencial antiga entre TCU e STF.
Por um lado, a jurisprudência do STF é pacífica no sentido de que se aplica a prescrição quinquenal tanto para a pretensão ressarcitória, quanto para a sancionatória do TCU. Assim, o prazo prescricional aplicável, por analogia, é o quinquenal da Lei nº. 9.873/1999 a pretensões ressarcitórias e sancionatórias do TCU[3], ainda que houvesse dificuldades para a definição de causas interruptivas da prescrição por analogia.
Ao julgar o mérito do RE nº 636.886 (tema 899, da repercussão geral), o STF entendeu que “a regra de prescritibilidade no Direito brasileiro é exigência dos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, o qual, em seu sentido material, deve garantir efetiva e real proteção contra o exercício do arbítrio, com a imposição de restrições substanciais ao poder do Estado em relação à liberdade e à propriedade individuais, entre as quais a impossibilidade de permanência infinita do poder persecutório do Estado.” Assim, o Tribunal entendeu que somente são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429/1992 (tema 897 da repercussão geral).
Lógica semelhante é aplicável pelo STF para prescrição sancionatória. No MS 32201[4], julgado pela 1ª Turma, e no MS 35.512[5], julgado pela 2ª Turma, o Tribunal afastou a aplicação do prazo decenal previsto pelo art. 205 do Código Civil para aplicar a Lei 9.873/1999, que estabelece o prazo de 5 anos para prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta.
Por outro lado, a jurisprudência histórica do TCU divergia por completo do STF. Enquanto o STF aplicava o prazo quinquenal para a prescrição sancionatória e ressarcitória do TCU, a Corte de Contas aplicava o prazo decenal, nos termos do art. 205 do Código Civil, para prescrição sancionatória e entende ser imprescritível a pretensão ressarcitória.
No interim entre o julgamento do tema 899 e da aprovação da Resolução 344/2022 do TCU, no Acórdão nº 2775/2022, o Ministro Relator, Aroldo Cedraz, reconheceu a necessidade de revisão da jurisprudência da Corte de Contas. Na ocasião, contudo, o Relator aplicou a jurisprudência histórica do TCU, no sentido de considerar imprescritível as ações de ressarcimento ao erário, tendo em vista a pendência, à época, de fatores relevantes para a segurança jurídica das tomadas de contas, em especial quanto a questões essenciais, como o prazo prescricional, o início da contagem e as hipóteses de interrupção[6].
A discussão não foi simples. Embora no tema 899 o STF tenha definido a prescritibilidade das pretensões ressarcitórias, não se definiu de maneira clara a aplicação da prescrição para as hipóteses de processos em trâmite no TCU. Isso porque o Tribunal restringiu-se quanto à prescrição da pretensão de ressarcimento que seja lastreada em decisão proferida pelo TCU (fase executória do débito).
Contudo, já havia decisões isoladas do STF quanto a aplicabilidade do prazo prescricional de 5 anos inclusive para processos em trâmite no TCU. No MS 35.294/DF e 35.539/DF, julgados em 14/06/2021, o Ministro Relator, Marco Aurélio, entendeu que “a evocação da segurança jurídica, como garantia da cidadania diante de guinadas estatais, confere relevância à passagem do tempo”. Por essa razão, decidiu ser dever do Tribunal de Contas da União observar o lapso de cinco anos para proceder à notificação daquele que busca responsabilizar por dano ao erário.
A existência de decisões isoladas do STF no sentido de aplicar a prescrição quinquenal a todos os processos de controle externo indica também que a Resolução 344/2022 do TCU veio em boa hora. Resta agora acompanhar como a Corte irá lidar com a tramitação dos processos em via de prescrição.
[1] Cf. COUTO E SILVA, Almiro. O Princípio da segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasileiro e o Direito da Administração Pública de Anular seus próprios atos administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei nº 9.784/99). Revista Eletrônica de Direito do Estado – REDE, nº 2, abr./jun. 2005; BAPTISTA, Patrícia Ferreira. A Tutela da Confiança Legítima como Limite ao Exercício do Poder Normativo da Administração Pública – A proteção às expectativas legítimas dos cidadãos como limite à retroatividade normativa, Revista de Direito do Estado, nº 3, jul.-set. 2006.
[2] TCU. Plenário. Processo 008.702/2022-5. Relator Min. Antonio Anastasia.
[3] A título exemplificativo, destacam-se STF – RE 636.886, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Data de Publicação DJe 24/06/2020; STF, MS 35294 / DF, Relator Marco Aurélio, j. em 06.03.2018, DJe 08.03.2018; STF, MS 35971 TP/DF, Relator Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento 14/02/2019
[4] STF, MS 32201, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, j. em 21/03/2017, DJe 07.08.2017.
[5] MS 35.512-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, SEGUNDA TURMA, DJe 21/6/2019
[6] TCU. Segunda Turma. Acórdão nº 2775/2022. Relator Min. Aroldo Cedraz. Sessão de 31/05/2022.