Internacional
As Forças Armadas alemãs estão sucateadas?
Defeitos em tanques de infantaria Puma durante exercícios militares põem em xeque preparação da Bundeswehr. Preocupação com equipamento vai desde fuzis a roupas de inverno
As Forças Armadas da Alemanha (Bundeswehr) enfrentam um novo problema, depois que surgiram relatos no último final de semana de que um exercício de treinamento envolvendo uma de suas principais armas, o moderno tanque Puma, não está apta a ser usada por apresentar uma série de problemas técnicos.
A oposição conservadora rapidamente aproveitou para ver no incidente uma suposta evidência da má administração do chanceler federal, o social-democrata Olaf Scholz e, em particular, da ministra da Defesa, Christine Lambrecht.
“É um pesadelo”, disse o líder do grupo parlamentar democrata-cristão (CDU), Johann Wadephul, à emissora ARD. “O Puma deveria ser o principal sistema de armas do exército alemão. E, se o Puma não está operacional, então o exército não está operacional.”
“A crítica é totalmente justificada”, disse Lambrecht em um comunicado divulgado na segunda-feira (19/12). “Nossas tropas devem poder contar com sistemas de armas robustos e estáveis em combate.”
Lambrecht disse ter encomendado aos departamentos relevantes dos fabricantes de armamentos Krauss-Maffei Wegmann e Rheinmetall uma análise do que deu errado até o final da próxima semana. Os tanques Marder, mais antigos, serão usados em exercícios da Otan por enquanto, como já havia sido planejado, disse ela.
Os tanques Puma são altamente complexos e levaram mais de uma década para serem desenvolvidos. Cada unidade custa 17 milhões de euros (cerca de R$ 94 milhões). Originalmente com luz verde em 2002, o tanque deveria substituir os antigos Marder, que a Alemanha usa desde a década de 1970.
Mas o Puma apresentou problemas técnicos, incluindo uma escotilha com vazamento no teto, linhas de visão restritas para o condutor e problemas eletrônicos. Mesmo quando concluídos, em 2015, nem todos os Puma puderam ser usados.
Munição insuficiente
O novo desastre coroa várias manchetes alarmantes recentes sobre o estado das Forças Armadas da Alemanha. Entre elas, a de que a Bundeswehr só tem munição para dois dias de combates intensos − um número aparentemente vazado por fontes não identificadas nos círculos de defesa.
Se isso for verdade (e tal informação não pode ser confirmada, pois é segredo de Estado), o estoque de munição da Alemanha está bem abaixo dos padrões esperados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que exige que cada membro tenha munição para 30 dias. Só para compensar esse déficit, especialistas em defesa dizem que a Alemanha precisa investir entre 20 e 30 bilhões de euros (entre R$ 110 e 165 bilhões).
O estado do equipamento da Bundeswehr há muito é motivo de preocupação: nos últimos anos, surgiram várias notícias sobre tanques e helicópteros que precisavam de reparos, fuzis que falhavam em clima quente e soldados tendo que treinar no frio sem roupas íntimas térmicas.
Após a invasão russa da Ucrânia, o chanceler federal Olaf Scholz anunciou uma “Zeitenwende” (mudança de era ou paradigma, ponto de inflexão), que foi saudada como uma mudança radical na abordagem do país à política externa e estratégia militar.
Para provar o que quis dizer, Scholz anunciou um aumento no orçamento anual de defesa, tornando-o o maior de toda a Europa, bem como um “fundo especial” único de 100 bilhões de euros (R$ 550 bilhões) para modernizar as Forças Armadas.
Onde foi parar o dinheiro?
Nove meses depois, alguns se perguntam onde está aquela montanha de dinheiro. A disputa das munições provocou uma discussão feia entre o governo e a indústria de Defesa da Alemanha sobre quem deveria ter tomado a iniciativa: cabe à indústria aumentar a capacidade primeiro ou o governo deveria ter feito os pedidos mais rapidamente?
“O que eu espero agora da indústria de armas é que as capacidades sejam aumentadas”, disse Lars Klingbeil, líder do Partido Social Democrata (SPD), de Scholz, à ARD no início de dezembro. “Mas esperar e dizer: vamos ver o que os políticos nos oferecem − essa não é uma atitude com a qual podemos reduzir esses déficits.”
“Se a indústria alemã não consegue gerenciar … então temos que ver o que podemos comprar do exterior, por exemplo, de outros parceiros da Otan, acrescentou Klingbeil.
Hans Christoph Atzpodien, chefe da associação alemã da indústria de segurança e defesa BDSV, rejeitou as declarações de Klingbeil como “bastante equivocadas”. Atzpodien disse à agência de notícias DPA que as principais empresas de armamento alemãs haviam duplicado suas capacidades nas semanas após o início da guerra na Ucrânia.
“É ridículo esse teatro entre a indústria de defesa e o governo”, disse à DW Rafael Loss, analista de defesa do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR, sigla em inglês).
Loss apontou que há regulamentos em vigor que impedem as empresas de armas de produzirem proativamente ou que peçam empréstimos aos bancos sem um contrato estatal.
O analista diz que faltou à Alemanha um senso de urgência para reagir às implicações geopolíticas do ataque da Rússia à Ucrânia. “Outros países se moveram muito mais rapidamente, especialmente na Europa Oriental, na criação de grupos de trabalho relevantes entre o governo e a indústria”, disse Loss.
Os parceiros da Otan no nordeste da Europa já expressaram preocupação de que a Alemanha não seja um parceiro militar com quem se pode contar em uma crise. Em uma conferência em Berlim no final de outubro, o ministro da Defesa da Letônia, Artis Pabriks, perguntou a seus colegas europeus: “Estamos preparados para morrer, e vocês?” Dirigindo-se especificamente aos alemães, ele disse: “Muito dependerá do poder militar de seu país e, sinto muito, seu poder militar não existe atualmente”.
“Para ser justo com Scholz, acho que seu discurso da mudança de era indicou que ele está completamente consciente deste importante desafio”, disse Loss. “Mas parece que o Ministério da Defesa e outras instituições não estão realmente à altura da tarefa de manter todas estas bolas no ar”.
Aquisições apenas começaram
Novas encomendas militares importantes foram feitas pelo governo Scholz. A Alemanha assinou um acordo para comprar 35 caças F-35 fabricados nos Estados Unidos para substituir sua frota envelhecida de Tornados, a um custo de 200 milhões de euros cada um. Mas eles só estarão prontos para serem usados em 2027.
A aquisição militar é sempre um processo longo e outros países da Europa Ocidental enfrentam problemas semelhantes para atualizar seus procedimentos em tempos de paz. Quase tudo o que os militares usam precisa ser encomendado e fabricado primeiro. “Você não pode simplesmente comprar certos sistemas numa prateleira de loja de material de construção”, disse Lambrecht recentemente no Bundestag, durante o debate orçamentário.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, é claro, mudou tudo. As notícias sobre a escassez de munição na Alemanha surgiram em parte porque foram levantadas questões sobre a manutenção de suprimentos para as armas que a Alemanha está enviando para a Ucrânia.
“Precisamos de aproximadamente 15 vezes mais munição para garantir um suprimento contínuo para as armas fornecidas à Ucrânia, enquanto reconstruímos as Forças Armadas alemãs no escopo necessário”, disse Loss.
Mas também há questões subjacentes de longo prazo. Nas últimas décadas, a Bundeswehr vendeu muitos de seus bunkers de armazenamento da era da Guerra Fria − o que significa que, mesmo que tivesse a munição de 30 dias estipulada pela Otan, os militares estariam lutando para encontrar um lugar para guardá-la.
Um histórico de problemas
Por essa razão, o analista de defesa Loss acha que as críticas da oposição conservadora União Democrata Cristã (CDU) soam vazias. “As coisas não foram diferentes nos últimos 16 anos, quando a CDU estava no poder”, disse ele. “É engraçado ver o SPD e a CDU culpando um ao outro pelo triste estado da Bundeswehr, mas acho que ambos compartilham aproximadamente a mesma culpa.”
As deficiências básicas de abastecimento são um problema há muito tempo. A comissária de defesa no Bundestag, Eva Högl, disse recentemente ao semanário Die Zeit que os soldados alemães ainda precisam treinar sem todo o equipamento de proteção necessário, roupas íntimas térmicas e outros itens essenciais.
Ela falou de uma combinação de ineficiência logística, ressaca pós-pandemia e inércia burocrática. “Infelizmente, às vezes também há indiferença e apatia por parte dos funcionários responsáveis na Bundeswehr: ‘Não temos, seja paciente, não é grande coisa, enviaremos em breve’, é o que os soldados ouvem o tempo todo”, disse Högl.
Alguns obstáculos burocráticos estão sendo corrigidos: as regras estão sendo alteradas para que pedidos menores não precisem passar por um processo de licitação em toda a Europa, e os comandantes podem gastar até 5 mil euros sem ter que passar por procedimentos oficiais de aquisição.
Ainda assim, o governo agora prometeu que o equipamento básico deverá ser entregue até o final do ano. Com alguma sorte, os soldados alemães receberão suas meias novas a tempo do Natal, estimam os críticos.