Internacional
Ben Ferencz: promotor de Nurembergue e visionário do TPI
Benjamin Ferencz, que morreu aos 103 anos, ajudou a levar membros do círculo de Hitler à Justiça. Nas décadas seguintes, ganhou proeminência como um dos principais defensores da criação do Tribunal Penal Internacional
Ele fez história em duas frentes: como soldado dos EUA, o jovem Benjamin Ferencz desenterrou evidências vitais para os julgamentos de Nurembergue, sem as quais a promotoria dos EUA teria dificuldades em levar a liderança nazista ao banco dos réus em 1945.
Mais tarde, como advogado, Ferencz liderou uma campanha apaixonada pela criação de um tribunal internacional, e sua determinação obstinada valeu a pena: o Tribunal Penal Internacional (TPI) foi estabelecido em Haia em 2002. Lá, chefes de Estado podem ser processados por cometer crimes de guerra, sendo o presidente russo, Vladimir Putin, o mais recente alvo do tribunal e certamente o mais ambicioso até o momento.
Serviço militar – de Camp David a Omaha Beach
Ferencz teve um começo bastante desfavorável depois de se alistar no Exército dos Estados Unidos: o culto Ferencz, que frequentou a Harvard Law School com uma bolsa de mérito, começou como datilógrafo em Camp David, no estado americano da Carolina do Norte. Na época, ele não sabia usar uma máquina de escrever nem disparar um rifle. Em vez disso, ele foi designado primeiro para limpar banheiros e esfregar latrinas e pisos.
As coisas mudaram na primavera de 1944. A unidade de combate de Ferencz foi transferida para a Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial. Em 6 de junho de 1944, o Dia D, Ferencz e seus companheiros desembarcaram na praia de Omaha, na costa norte da França. A invasão aliada da Normandia havia começado, sinalizando o fim da dominação nazista na Europa Ocidental.
Durante o avanço das tropas americanas, Ferencz e sua unidade romperam a Linha Siegfried, também conhecida em alemão como Westwall, lutando na linha de frente da Batalha das Ardenas. No final do avanço, na primavera de 1945, ele cruzou a ponte de Remagen sobre o rio Reno com seus companheiros americanos vitoriosos.
No quartel-general do 3º Exército dos Estados Unidos, liderado pelo general George Patton, no final da guerra, procuravam-se pessoas com experiência jurídica para obter provas dos crimes de guerra cometidos pelos nazistas. Finalmente, o jovem advogado encontrou uma função mais adequada às suas habilidades.
Ferencz e sua equipe vasculharam meticulosamente as informações sobre as autoridades nazistas e visitaram campos de concentração liberados pelo Exército dos EUA. O que ele descobriu em Buchenwald, Dachau, Mauthausen e outros campos ia além de sua imaginação sobre a extensão dos crimes atrozes dos nazistas e seu aparato de assassinato.
Primeiros mandados de prisão contra líderes nazistas
“O importante era garantir as evidências, as listas de prisioneiros, os nomes dos líderes do campo e dos responsáveis da SS”, relatou Ferencz em suas memórias publicadas em 2020. “Com base nisso, emitimos mandados para prender as pessoas. Obtivemos todas as evidências e dirigimos diretamente para o próximo campo.”
No caminho, eles encontraram unidades do Exército Vermelho que eliminaram sumariamente oficiais da SS detidos. Naquele momento, o advogado uniformizado percebeu que ele — filho de emigrantes judeus húngaros — não estava preocupado com vingança, mas com justiça.
A princípio, foi apenas um espectador do primeiro julgamento de Nurembergue contra os principais criminosos de guerra do regime nazista, iniciado em 20 de novembro de 1945. Seu retorno à vida civil nos Estados Unidos já havia sido planejado. “No início do julgamento, as fileiras estavam cheias. O público sentou-se no andar de cima da galeria. Mas, à medida que o julgamento avançava, as cadeiras esvaziaram. Os alemães quase não mostraram mais interesse.”
“Procuramos todos os arquivos nazistas”
De volta aos EUA, o ex-soldado se viu inicialmente desempregado; nenhum escritório de advocacia queria confiar a ele um caso. Então, um telegrama inesperado do Pentágono convocou-o para trabalhar com o general Telford Taylor, um advogado que foi nomeado pessoalmente pelo então presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, para ser o encarregado dos julgamentos subsequentes de Nurembergue. Taylor nomeou o experiente Ferencz para sua força-tarefa na Alemanha.
“Os EUA descobriram que o julgamento de Nurembergue dos 22 principais líderes nazistas não poderia explicar completamente como algo assim poderia ter acontecido em um país civilizado como a Alemanha”, lembrou Ferencz no documentário alemão Um Homem pode Fazer a Diferença (2015). “A primeira tarefa que recebi de Taylor foi ir a Berlim e coletar evidências dos monstruosos crimes nazistas de lá.”
A capital devastada pela guerra tornou-se a sede da equipe de investigação dos EUA. Berlim, por sua vez, havia sido dividida em setores separados pelas quatro potências ocupantes – EUA, Reino Unido, URSS e França. Cada um tinha seus próprios métodos de aplicação da lei.
Ferencz e sua equipe de 50 investigadores apreenderam pilhas de documentos e material incriminador da extensa burocracia nazista. O quartel-general da Gestapo em Berlim, em particular, provou ser um “uma mina de ouro legal”, disse Ferencz.
Procurador-chefe no “Julgamento dos Einsatzgruppen”
Na primavera europeia de 1947, um funcionário encontrou três pastas grossas nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha, rotuladas como “Ereignismeldungen aus der UdSSR — Berichte von der Ostfront” (“Despachos da União Soviética — relatórios da Frente Oriental” ).
“Eram relatórios de unidades especiais da SS, disfarçados por um nome aparentemente sem sentido: “Einsatzgruppen (grupos operacionais). Ninguém sabia o que eram”, lembrou Ferencz mais tarde. Ele imediatamente reconheceu a importância política da descoberta: “Parecia inofensivo, mas o conteúdo dentro estava carimbado ‘Material Secreto do Reich’.”
Os Einsatzgruppen operaram atrás das linhas ocupadas pelos nazistas, particularmente na frente oriental na Segunda Guerra Mundial. Eles não eram unidades de combate, mas esquadrões da morte móveis da SS que atuavam contra as populações locais ocupadas que os nazistas consideravam que deveriam ser chacinadas de imediato.
Essas provas forneceram base legal para um dos maiores julgamentos de assassinatos da história: em 15 de setembro de 1947, Ferencz fez seu pronunciamento de abertura na sala 600 do Tribunal de Nurembergue. Aos 27 anos, ele era o procurador-chefe mais jovem envolvido com os 12 julgamentos de Nurembergue realizados após o primeiro. Os réus eram 24 homens do “SS Einsatzgruppen”, representando um total de 3 mil membros.
No final, quatro das sentenças de morte do tribunal foram executadas. Muitos dos criminosos nazistas na Alemanha Oriental e Ocidental cumpriram penas de prisão curtas, e alguns foram libertados mais cedo. A Guerra Fria entre nações comunistas e as potências ocidentais havia começado, deixando os horrores da Segunda Guerra Mundial em segundo plano.
Tribunal Penal Internacional
Para Ferencz, que nasceu em 1920 nos Cárpatos – atualmente no território da Romênia – de pais judeus e que cresceu em extrema pobreza em Nova York, essas experiências na Alemanha do pós-guerra foram formativas. Como representante da Conferência de Reivindicações Materiais Judaicas Contra a Alemanha (Jewish Claims Conference), ele mais tarde trabalhou incansavelmente pelo acordo de reparação entre Israel e a Alemanha Ocidental, que foi assinado em Luxemburgo em 1952. E ele representou legalmente as reivindicações de trabalhadores escravizados, especialmente da Europa Oriental, que os nazistas haviam explorado.
Em 2010, Ferencz foi premiado com uma das Cruzes de Comandante da Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha por seu compromisso vitalício com o direito internacional.
Mas ele provavelmente recebeu sua homenagem mais importante em 20 de novembro de 2020, marcando a ocasião do 75º aniversário dos julgamentos de Nurembergue, no qual apresentou um discurso principal por meio de vídeo. Como sinal de respeito, o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, só discursou após o ex-promotor.
Benjamin Ferencz, ou Ben Ferencz, o último promotor sobrevivente dos julgamentos de nazistas por crimes de guerra em Nurembergue, morreu na última sexta-feira (07/04), aos 103 anos.