Saúde
Por que a hanseníase ainda não foi erradicada?
Doença, conhecida no passado como lepra, não é extremamente contagiosa e tem tratamento. Mesmo assim, ainda atinge cerca de 200 mil pessoas por ano em todo mundo – e Brasil é o segundo país com mais casos
A hanseníase, conhecida no passado como lepra, já não deveria existir. No início da década de 1990, a Assembleia Mundial da Saúde, órgão decisório da Organização Mundial da Saúde (OMS), estabeleceu como meta a erradicação da doença até o ano 2000.
Era um plano ambicioso, impulsionado pela introdução bem-sucedida do chamado Multidrug Treatment (MDT), uma combinação de vários medicamentos que fez com que o número de casos de hanseníase caísse significativamente.
No entanto, cerca de 200 mil pessoas ainda são diagnosticadas com hanseníase todos os anos. Mais da metade dos casos conhecidos estão na Índia, seguida pelo Brasil e pela Indonésia.
Entre janeiro e novembro de 2023, o Brasil diagnosticou ao menos 19.219 novos casos de hanseníase – 5% a mais que ao total de notificações registradas no mesmo período de 2022. Os dados são do Painel de Monitoramento de Indicadores da Hanseníase, do Ministério da Saúde.
Para conscientizar a população em geral e as autoridades públicas em particular sobre a importância do diagnóstico precoce e do enfrentamento ao preconceito contra a hanseníase, no Brasil, desde 2016, o mês de janeiro é dedicado à campanha Janeiro Roxo. Já em todo o planeta, o último domingo de janeiro marca, anualmente, o Dia Mundial de Combate à Hanseníase.
Doença longe de ser erradicada
Há poucos sinais de erradicação, apesar de a doença não ser altamente contagiosa nem intratável.
“Os especialistas classificam a hanseníase como uma doença muito enigmática”, disse Rajib Dasgupta, professor de medicina social na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Delhi, na Índia.
“Enigmática porque, mesmo depois de alguns séculos conhecendo a doença, tratando-a ou pelo menos controlando-a, ainda existem várias lacunas importantes no conhecimento. Ainda não sabemos muitas coisas sobre a hanseníase com confiança”, explica.
O que se sabe e o que ainda não se sabe
A hanseníase é uma das doenças mais antigas do mundo. Pesquisadores encontraram referências a essa enfermidade em histórias que datam de centenas de anos antes de Cristo. A primeira evidência médica da doença infecciosa surgiu em 1873, com a descoberta de seu patógeno causador, a bactéria Mycobacterium leprae, pelo pesquisador norueguês Gerhard Armauer Hansen. Em homenagem a ele é que hoje em dia a doença se chama hanseníase.
Suspeita-se que a bactéria tenha se espalhado pelo mundo por meio de rotas comerciais.
A enfermidade geralmente afeta pessoas com sistema imunológico enfraquecido – por exemplo, que sofrem de desnutrição. Essa é considerada uma das razões pelas quais a bactéria é encontrada principalmente em grupos sociais mais pobres na Índia, Brasil e Indonésia. Um sistema imunológico saudável geralmente consegue vencer essa doença.
“A hanseníase está sempre agrupada em certas populações vulneráveis, que estão localizados muito remotamente e têm menos acesso a tratamentos [médicos]”, destaca Dasgupta.
Período de incubação de muitos anos
O Mycobacterium leprae é provavelmente transmitida de pessoa para pessoa através de gotículas. A transmissão requer um contato prolongado e próximo – além de um sistema imunológico enfraquecido.
Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) dizem que um sistema imunológico adulto saudável pode combater as bactérias em 95% dos casos.
Se a pessoa for infectada, pode não ficar doente imediatamente. O período de incubação – ou seja, o tempo entre a infecção e o aparecimento de qualquer sintoma inicial – pode ser entre dois e quatro anos. Mas também pode levar 20 anos.
Esse período prolongado de incubação dificulta muito seu controle e erradicação, destaca Dasgupta. Uma doença é considerada sob controle quando o número de infecções em um país cai para menos de uma em cada 10 mil pessoas.
“Se esta referência for alcançada, os programas são reduzidos. Controles e medidas que ainda estavam em operação são enfraquecidos”, destaca Dasgupta, que trabalhou em vários programas de combate e controle de doenças infecciosas na Índia.
Desta forma, quando finalmente termina o período de incubação e a doença irrompe, as pessoas podem ficar em situações em que não há medidas rápidas ou especialistas para tratar os pacientes. E é aí que mais pessoas são infectadas.
“O número de casos que estamos vendo agora são menores do que a carga real na comunidade”, disse Dasgupta. “Pode haver um pouco mais de más notícias do que parece”, destaca.
Quais são os sintomas?
Uma vez que uma infecção de hanseníase irrompe, alguns sintomas comuns facilitam a detecção: pode haver alterações visíveis na pele ou danos nos nervos que podem ser detectados pela perda da sensação de dor.
No entanto, a perda de sensibilidade nas extremidades pode levar a mais lesões e inflamação crônica – e se chegar a esse estágio antes de um diagnóstico, isso pode significar a amputação de membros. Às vezes isso se torna inevitável.
Assim, em casos extremos, as pessoas com hanseníase podem ficar com deficiências físicas. Mas também há outro problema, o social. Por muitas centenas de anos, as pessoas com hanseníase foram tratadas de maneira desumana e, ainda hoje, sofrem estigma social.
Por essa razão, em 1995, o Brasil aboliu, por lei, que o termo lepra fosse usado em documentos oficiais para se referir à doença. Desde então, é usado o termo hanseníase, a fim de diminuir o estigma social.
A hanseníase é incurável?
Não. A hanseníase pode ser tratada e curada. As pessoas podem se recuperar e continuar com suas vidas normalmente.
O tratamento envolve uma combinação de medicamentos e, dependendo da gravidade da infecção, pode levar de seis a 12 meses para a cura.
O tratamento é conhecido como poliquimioterapia e consiste em três medicamentos – rifampicina, dapsona e clofazimina.
O problema é que o diagnóstico muitas vezes chega tarde. As bactérias podem ser detectadas no fluido linfático e no tecido da pele, mas nem sempre é um método confiável e muitas infecções permanecem sem diagnóstico até que os sintomas comecem a aparecer.
E ainda há outro desafio: “este germe não pode ser facilmente cultivado em laboratório ou em modelos animais. E, portanto, obter conhecimento por meio de experimentos controlados em laboratório é quase impossível”, explica Dasgupta.
Se pudessem obtê-los, os pesquisadores usariam esses dados para desenvolver novos medicamentos ou mesmo vacinas contra a hanseníase.
Considerando tudo isso, a hanseníase ainda é, como descreve Dasgupta, “um campo minado”.