Internacional
Bienal de Veneza sob o signo da guerra no Oriente Médio
Dirigido pelo brasileiro Adriano Pedrosa, festival de arte reflete os conflitos no resto do mundo. Palestinos exigem exclusão de Israel; África quer descolonização. Francisco é primeiro papa a visitar a Bienal
A Bienal de Veneza é um dos festivais internacionais de artes plásticas mais prestigiosos do mundo. Em 2024, ela se realiza de 20 de abril a 24 de novembro, paralelamente à Documenta de Kassel. Na edição anterior, a cidade italiana dos canais bateu recordes, atraindo mais de 800 mil amantes das artes, dois terços vindos do exterior.
Na 60ª edição, o exacerbamento do conflito no Oriente Médio confere uma nova tensão ao evento. Um coletivo de ativistas pró-palestinos, Art Not Genocide Alliance (ANGA – Aliança Arte Não Genocídio) tem reivindicado a exclusão de Israel. Em carta aberta, criticou os “padrões duplos” dos organizadores que, tendo condenado a guerra de agressão russa na Ucrânia, agora silenciam sobre as operações militares de Israel na Faixa de Gaza. O documento online já reúne quase 24 mil signatários.
A Bienal rejeitou os apelos por boicote: seus curadores já teriam decidido sobre a concepção e os participantes da exposição central muito antes dos atentados de 7 de outubro de 2023 em solo israelense pelo grupo fundamentalista islâmico Hamas, que suscitaram a retaliação em Gaza.
Israel protesta, pavilhão da Rússia segue vazio
Mas agora as portas do pavilhão israelense permanecerão fechadas, de qualquer modo. A artista que o protagoniza, Ruth Patir, nascida em Nova York em 1984, anunciou em nota, na terça-feira (16/04), que a mostra só será inaugurada “quando for alcançado um acordo de cessar-fogo e libertação de reféns”.
“A decisão da artista e dos curadores é não se cancelarem, nem a exposição; em vez disso optaram por assumir uma posição de solidariedade com as famílias dos reféns e a ampla comunidade que está exigindo mudança em Israel”, consta do website de Patir. Israel mantém desde 1950 um pavilhão nacional em Veneza.
A obra M/otherLand (um jogo de palavras entre “Terra-Mãe” e “Outra terra”) contém uma instalação de vídeo com antigas estatuetas de museu: “mulheres quebradas voltam à vida e participam de uma procissão, numa expressão pública coletiva de luto, dor e cólera. O ponto de vista da câmera é o de um observador ou testemunha da cena, alegando, portanto, uma visão subjetiva, corpórea, dos eventos mundiais.”
Enquanto isso, o pavilhão permanente da Rússia ficará mais uma vez vazio. A Bienal não excluiu o país oficialmente, mas após a invasão em ampla escala da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, os artistas e curadores russos selecionados renunciaram a participar sob a bandeira nacional. A Ucrânia está presente com a mostra coletiva Net making (Fabricação de redes).
Estrangeiros por toda parte, luz sobre a descolonização
Intitulada Stranieri ovunque – Foreigners everywhere, a mostra principal tem curadoria do brasileiro Adriano Pedrosa, que é o primeiro diretor da Bienal de Veneza proveniente do Sul Global. Sua meta é mostrar arte de regiões menos privilegiadas e menos industrializadas.
Assim, o foco primário da mostra – que se estende pelo parque Giardini della Biennale, os galpões do estaleiro histórico Arsenale e outras locações da cidade na Laguna – são “artistas, eles mesmos, estrangeiros, expatriados, diaspóricos, émigrés, exilados ou refugiados”, explicou Pedrosa em comunicado.
O título da 60ª edição, da qual participam 330 artistas, inspira-se num trabalho do coletivo parisiense Claire Fontaine, apresentando o slogan “Estrangeiros por toda parte” em 53 idiomas diferentes, em letreiros de neon que agora iluminam o Arsenale. Lá também a maioria dos 88 países que não tem pavilhão próprio apresenta suas exposições.
Quatro nações estreiam em 2024 no mais antigo festival de arte do mundo: Benin, Etiópia, Tanzânia e Timor-Leste; enquanto Nicarágua, Panamá e Senegal terão pela primeira vez seu pavilhão. O continente africano tem reforçado de maneira especial sua presença em Veneza: Gana e Madagascar estrearam em 2019, Uganda, Camarões e Namíbia seguiram-se em 2022.
Antes da abertura da edição, o curador do Benin, o crítico de arte nigeriano Azu Nwagbogu, declarou à imprensa que pretende lançar nova luz sobre a descolonização da arte: além da restituição de objetos, ele quer promover uma “restituição de saber”. Com a ajuda de uma “biblioteca de resistência”, pretende dar voz às mulheres em temáticas como identidade africana, ecologia e ciência.
Indagado se acha que as vozes africanas estão suficientemente representadas em Veneza, ele disse que “gostaria de ver muitas mais”: “mais importante, eu gostaria de ver mais infraestrutura cultural construída e apoiada no continente [europeu] e mais apoio àqueles eventos imponentes que já construímos por toda a África”.
Alemanha “no limiar”, estreia do papa
Entre os 28 pavilhões permanentes nos Giardini, o programa da Alemanha abre com uma instalação do diretor de teatro Ersan Mondtag, de Berlim, e do artista israelense Yael Bartana: sob o título Thresholds (Limiares), eles empreendem uma exploração do passado e do futuro inspirada por diversos conceitos artísticos.
A curadora alemã em 2024 é a arquiteta natural de Istambul Çağla Ilk, codiretora do salão de arte Kunsthalle Baden-Baden. Quanto ao título da mostra, ela explica que no limiar “não há certeza sobre nada”.
Por sua vez, o Vaticano é responsável por uma das exposições que mais despertam atenção em 2024: seu pavilhão se localiza no presídio feminino de Veneza, dentro do qual detentas acompanharão os visitantes num itinerário artístico. O papa Francisco prometeu visitar o pavilhão, como primeiro pontífice na Bienal de Veneza em toda a história do evento.
Indígenas: estrangeiros em sua própria terra
O pavilhão do Brasil exibirá a exposição Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam, de Glicéria Tupinambá e convidados, com curadoria de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana. Durante a mostra, o local será renomeado para Pavilhão Hãhãwpuá, termo dos Pataxó para o território que, depois da colonização, ficou conhecido como Brasil, mas que já teve muitos outros nomes.
A exposição brasileira destaca a memória da floresta, da capoeira e dos pássaros camuflados, como uma metáfora das lutas dos povos indígenas brasileiros e suas estratégias de ressurgimento e resistência.
A artista Glicéria Tupinambá traz a perspectiva do tema geral da Bienal, “estrangeiros por toda parte”, para a realidade dos povos indígenas do Brasil, cuja história inclui séculos de marginalização em seu próprio território.