CIÊNCIA & TECNOLOGIA
Como matemáticos tentam ver além do Big Bang
Há cerca de 13,8 bilhões de anos, todo o cosmos consistia em uma pequena bola de energia quente e densa que explodiu repentinamente
Foi assim que tudo começou, conforme a história científica padrão do Big Bang, uma teoria que tomou forma pela primeira vez na década de 1920. A história foi aprimorada ao longo das décadas, principalmente na década de 1980, quando muitos cosmólogos passaram a acreditar que, em seus primeiros momentos, o Universo passou por um breve período de expansão extraordinariamente rápida chamado inflação, antes de se estabelecer em uma velocidade mais baixa.
Acredita-se que esse breve período tenha sido causado por uma forma peculiar de matéria de alta energia que inverte a gravidade, “inflando” o tecido do Universo de forma exponencialmente rápida e fazendo com que ele cresça por um fator de um milhão de bilhões de bilhões em menos de um bilionésimo de bilionésimo de bilionésimo de bilionésimo de segundo. A inflação explica por que o Universo parece ser tão suave e homogêneo quando os astrônomos o examinam em grandes escalas.
Mas se a inflação é responsável por tudo o que pode ser visto hoje, isso levanta a questão: O que, se é que houve algo, veio antes?
Ainda não foi desenvolvido nenhum experimento poderem observar o que aconteceu antes da inflação. Entretanto, os matemáticos podem esboçar alguns cenários possíveis. A estratégia é aplicar a teoria geral da relatividade de Einstein – uma teoria que equipara a gravidade à curvatura do espaço-tempo – o mais longe possível no tempo.
Essa é a esperança de três pesquisadores: Ghazal Geshnizjani, do Perimeter Institute, Eric Ling, da Universidade de Copenhague, e Jerome Quintin, da Universidade de Waterloo. O trio publicou recentemente um artigo no Journal of High Energy Physics no qual, segundo Ling, “mostramos matematicamente que pode haver uma maneira de ver além do nosso Universo”.
Trabalhando em conjunto com Jerome Quintin e Eric Ling, Ghazal Geshnizjani, do Perimeter Institute, examinou as maneiras pelas quais o espaço-tempo pode ser estendido além do Big Bang
Robert Brandenberger, físico da Universidade McGill que não participou do estudo, disse que o novo artigo “estabelece um novo padrão de rigor para a análise” da matemática do início dos tempos. Em alguns casos, o que a princípio parece ser uma singularidade – um ponto no espaço-tempo em que as descrições matemáticas perdem o sentido – pode, de fato, ser uma ilusão.
Uma taxonomia de singularidades
A questão central com a qual Geshnizjani, Ling e Quintin se deparam é se existe um ponto anterior à inflação no qual as leis da gravidade se rompem em uma singularidade. O exemplo mais simples de uma singularidade matemática é o que acontece com a função 1/x quando x se aproxima de zero. A função recebe um número x como entrada e produz outro número. À medida que x fica cada vez menor, 1/x fica cada vez maior, aproximando-se do infinito. Se x for zero, a função não estará mais bem definida: Não se pode confiar nela como uma descrição da realidade.
Às vezes, porém, os matemáticos conseguem contornar uma singularidade. Por exemplo, considere o meridiano principal, que passa por Greenwich, Inglaterra, na longitude zero. Se você tivesse uma função de 1/longitude, ela ficaria maluca em Greenwich. Mas, na verdade, não há nada fisicamente especial no subúrbio de Londres: você poderia facilmente redefinir a longitude zero para passar por algum outro lugar na Terra e, então, sua função se comportaria perfeitamente normal ao se aproximar do Royal Observatory em Greenwich.
“Mostramos matematicamente que pode haver uma maneira de ver além do nosso universo”, disse Eric Ling, da Universidade de Copenhague
Algo semelhante acontece nos limites dos modelos matemáticos de buracos negros. As equações que descrevem buracos negros esféricos não rotativos, elaboradas pelo físico Karl Schwarzschild em 1916, têm um termo cujo denominador vai para zero no horizonte de eventos do buraco negro – a superfície que circunda um buraco negro além da qual nada pode escapar. Isso levou os físicos a acreditar que o horizonte de eventos era uma singularidade física.
Porém, oito anos depois, o astrônomo Arthur Eddington mostrou que, se for usado um conjunto diferente de coordenadas, a singularidade desaparece. Assim como o meridiano principal, o horizonte de eventos é uma ilusão: um artefato matemático chamado de singularidade de coordenadas, que só surge devido à escolha das coordenadas.
No centro de um buraco negro, por outro lado, a densidade e a curvatura vão para o infinito de uma forma que não pode ser eliminada com o uso de um sistema de coordenadas diferente. As leis da relatividade geral começam a se tornar sem sentido. Isso é chamado de singularidade de curvatura. Isso implica que está ocorrendo algo que está além da capacidade de descrição das teorias físicas e matemáticas atuais.
Geshnizjani, Ling e Quintin estudaram se o início do Big Bang é mais parecido com o centro de um buraco negro ou mais parecido com um horizonte de eventos. Sua investigação se baseia em um teorema comprovado em 2003 por Arvind Borde, Alan Guth (uma das primeiras pessoas a propor a ideia de inflação) e Alexander Vilenkin. Esse teorema, conhecido pelas iniciais dos autores como BGV, diz que a inflação deve ter tido um início – ela não pode ter continuado incessantemente no passado. Deve ter havido uma singularidade para dar o pontapé inicial. A BGV estabelece a existência dessa singularidade, sem dizer que tipo de singularidade é essa.
Como diz Quintin, ele e seus colegas trabalharam para descobrir se essa singularidade é uma parede de tijolos – uma singularidade de curvatura – ou uma cortina que pode ser puxada para trás – uma singularidade de coordenadas. Eric Woolgar, matemático da Universidade de Alberta que não participou do estudo, disse que ele esclarece nossa visão da singularidade do Big Bang. “Eles podem dizer se a curvatura é infinita na singularidade inicial ou se a singularidade é mais branda, o que pode nos permitir estender nosso modelo do Universo para épocas anteriores ao Big Bang.”
“Os raios de luz podem de fato atravessar o limite”, disse Jerome Quintin, da Universidade de Waterloo
Para classificar os possíveis cenários pré-inflacionários, os três pesquisadores usaram um parâmetro chamado fator de escala que descreve como a distância entre os objetos mudou ao longo do tempo à medida que o Universo se expande. Por definição, o Big Bang é o momento em que o fator de escala era zero – tudo foi espremido em um ponto sem dimensão.
Durante a inflação, o fator de escala aumentou em uma velocidade exponencial. Antes da inflação, o fator de escala poderia ter variado de várias maneiras. O novo artigo fornece uma taxonomia de singularidades para diferentes cenários de fator de escala. “Mostramos que, sob certas condições, o fator de escala produzirá uma singularidade de curvatura e, sob outras condições, não”, disse Ling.
Os pesquisadores já sabiam que em um Universo com a chamada energia escura, mas sem matéria, o início da inflação identificado no teorema BGV é uma singularidade de coordenadas que pode ser eliminada. Mas o Universo real tem matéria, é claro. Será que os truques matemáticos também possibilitam contornar sua singularidade? Os pesquisadores demonstraram que, se a quantidade de matéria for insignificante em comparação com a quantidade de energia escura, a singularidade poderá ser eliminada. “Os raios de luz podem de fato atravessar o limite”, disse Quintin. “E, nesse sentido, você pode ver além do limite; não é como uma parede de tijolos.” A história do Universo se estenderia além do Big Bang.
No entanto, os cosmólogos acreditam que o Universo primitivo tinha mais matéria do que energia. Nesse caso, o novo trabalho mostra que a singularidade do BGV seria uma verdadeira singularidade de curvatura física, na qual as leis da gravidade deixam de fazer sentido.
Uma singularidade sugere que a relatividade geral não pode ser uma descrição completa das regras básicas da física. Estão sendo feitos esforços para formar essa descrição, o que exigiria a reconciliação da relatividade geral com a mecânica quântica. Ling disse que vê o novo artigo como um trampolim para essa teoria. Para dar sentido ao Universo nos níveis mais altos de energia, disse ele, “primeiro precisamos entender a física clássica da melhor forma possível”.