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Judiciário

Filipe Martins e a pilatização da Justiça

A tendência de banalização na denegação sem conhecimento de habeas corpus pelos mais diversos subterfúgios, mesmo diante de ilegalidades patentes, tende a tornar-se uma regra. Qual o destino do habeas corpus na prática forense brasileira?

“Querendo Pilatos satisfazer o povo, soltou-lhes Barrabás e entregou Jesus, depois de açoitado, para que fosse crucificado”. (Marcos 15,15)


Filipe Martins está preso há mais de 5 (cinco) meses sob a alegação de que teria fugido do Brasil para os Estados Unidos para escapar da aplicação da Justiça devido a suposto envolvimento com Crimes Contra o Estado Democrático de Direito. No entanto, tal narrativa já foi desmentida por provas incontrastáveis, de modo que a prisão cautelar não tem o mais mínimo fundamento. Ainda assim, prossegue preso e um Habeas Corpus impetrado em seu favor foi negado sob a alegação simplista de que uma decisão proferida monocraticamente por um membro do Supremo Tribunal Federal não pode ser atacada pela via heroica. 1

O Ministro responsável pelo indeferimento do Habeas Corpus foi Flávio Dino, mas será que a raiz desse mal está somente nele? É claro que responder com um minguado despacho denegatório a uma petição de Habeas Corpus de 114 (cento e quatorze) páginas 2 é algo desalentador e inadmissível. Porém, se quisermos compreender a origem da permissividade dessa espécie de postura jurisdicional, precisamos não somente analisar o teor da decisão do Ministro Flávio Dino, mas a postura da nossa jurisprudência, inclusive da Suprema Corte, em reiteradamente restringir o cabimento do Habeas Corpus, ensejando uma válvula de escape sempre à disposição do magistrado que pretenda “lavar suas mãos” diante da ilegalidade, do abuso e, especialmente, da injustiça.

Por isso se faz menção no título e na epígrafe ao personagem bíblico de Pilatos. A jurisprudência brasileira vem há tempos construindo uma barreira contra a eficácia do Habeas Corpus, especialmente contra decisões de magistrados ou tribunais superiores, bem como alegando que a existência de recurso para combater a decisão afastaria o remédio constitucional. Isso nada mais é do que a criação de um mecanismo de fuga do enfrentamento de casos em que flagrantes ilegalidades são cometidas por autoridades judiciais. Uma maneira de “lavar as mãos” diante da iniquidade para não precisar ferir suscetibilidades ou se comprometer, assegurando aos magistrados uma zona de conforto onde o corpo e mesmo o intelecto até podem descansar, mas, se uma consciência existe, então estará sempre e sempre atormentada.

Esse mecanismo permite ocultar uma ditadura judicial no seio de “instituições formalmente democráticas”, manipulando aparências e emprestando um verniz de “legalidade e legitimidade” a abusos e suas perpetuações. Já não basta (certamente nunca bastou) que um Estado esteja assentado nas “instituições formais certas”, é preciso ter em conta o que efetivamente impede seus líderes e autoridades em geral (incluindo as judiciais e mais elevadas), de subverter essas mesmas instituições. 3

Embora o procedimento esteja sob sigilo, não sendo possível acessar diretamente o teor completo da decisão de Flávio Dino, 4 encontram-se na imprensa excertos desta, dando uma clara compreensão de seu conteúdo (resta saber por que o público em geral não tem acesso direto a tais decisões e até mesmo advogados lutam com dificuldades, mas setores da imprensa sempre têm acesso quase imediato).

Abramos aspas para o Ministro Flávio Dino:

“Enfatizo que ação constitucional de habeas corpus não se qualifica como instrumento processual hábil a combater ato de Ministro ou órgão fracionário da Corte, que deve ser objeto de insurgência pelas vias recursais próprias”. 5

E para que não haja dúvida de qualquer natureza, segue a notícia estampada no site do Supremo Tribunal Federal:

Por motivos processuais, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), rejeitou habeas corpus apresentado pela defesa de Filipe Martins, ex-assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República, investigado pela tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito.

O Habeas Corpus (HC) 242944 foi apresentado contra decisão do ministro Alexandre de Moraes, tomada na Petição (PET) 12100, que manteve a prisão preventiva decretada contra Martins. A defesa pedia a liberdade do ex-assessor e apontava, entre outros pontos, o excesso de prazo na prisão cautelar.

Na decisão, Dino ressaltou que, de acordo com a jurisprudência do Supremo, é inviável habeas corpus contra decisões de ministro ou de órgão colegiado do Tribunal, inclusive quando proferidas em procedimentos penais de competência originária do Supremo. Esse entendimento foi reafirmado recentemente por unanimidade pelo Plenário, durante o julgamento do AgR no HC 233.916/RS, de relatoria do Min. André Mendonça. 6

Resta evidenciado que o Ministro Flávio Dino não apenas negou provimento ao Habeas Corpus impetrado, como nem sequer o conheceu. Ou seja, o indeferiu de plano por alegação de que seria incabível, sem analisar nada sobre seu mérito. Dessa forma, confortavelmente, se evadiu da obrigação de perquirir e fundamentar a razão pela qual deveria permanecer preso o paciente sem que os fundamentos de sua prisão subsistam.

Flávio Dino, como muitos outros, fez uso da instituição jurisprudencial da evasiva instrumental para evitar o enfrentamento do mérito, sobrepondo forma a conteúdo. Essa espécie de evasão nada mais é do que um subterfúgio de um “non liquet” mal disfarçado. 7 “Non liquet” este que, diga-se de passagem, é vedado no nosso ordenamento jurídico, inclusive sob a modalidade de procrastinação ou protelamento de decisões, mormente quando a liberdade de alguém está em jogo e a ilegalidade/abuso é patente.

No próprio Supremo Tribunal Federal encontramos decisões que impedem essa espécie de procrastinação indevida e alongamento de restrição de liberdade ilícita. Senão vejamos:

Ora, nosso País é um dos signatários da ‘Convenção americana sobre direitos humanos’, assinada em San José, Costa Rica, no dia 22.11.1969, e cujo art. 8.º, 1, tem a seguinte (…) redação: ‘‘Toda pessoa tem direito de ser ouvida’ com as devidas garantias e ‘dentro de um prazo razoável’ por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei anterior, ‘na defesa de qualquer acusação penal contra ela formulada’ (…).

Por via de consequência, dúvida não pode haver acerca da determinação (…) na Carta Magna brasileira em vigor, do término de qualquer procedimento, especialmente o relativo à persecução penal, em ‘prazo razoável’.

Essa, aliás, é concepção que se universalizou, sobretudo a partir da ‘Convenção Europeia para salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais’, como anota JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, asserindo que, desde a edição, em 04.11.1950, desse diploma legal supranacional, ‘‘o direito ao processo sem dilações indevidas’ passou a ser concebido como um direito subjetivo constitucional, de caráter autônomo, de todos os membros da coletividade (incluídas as pessoas jurídicas) à ‘tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável’, decorrente da proibição do ‘non liquet’, vale dizer, do dever que têm os agentes do Poder Judiciário de julgar as causas com estrita observância das normas de direito positivo’. 8

Mesmo considerando as diversas barreiras ao conhecimento de Habeas Corpus erigidas pela jurisprudência, o próprio STF tem consignado que há que reconhecer alguma atenuação ao descabimento do remédio constitucional. Essa atenuação tem sido apontada, a exemplo do que ocorre com o teor da Súmula 691, STF, 9 como os casos de decisões repressivas “teratológicas” na quais a ilegalidade é patente, não permitindo que uma cegueira formalista dê assentimento a situações absurdas de abuso.

Sobre o tema se manifestou anteriormente o Ministro Lewandowski:

Nesse sentido, anoto que a superação do referido verbete sumular constitui medida excepcional, a se legitimar quando a decisão atacada se mostra teratológica, flagrantemente ilegal ou abusiva. No caso sob exame, verifico estar-se diante dessa situação, apta a superar a súmula em questão, diante do evidente constrangimento ilegal a que está submetido o paciente. 10

Como bem expõe Nunes:

A superação do óbice ao conhecimento do Habeas Corpus impetrado contra decisão de ministro da corte, com o consequente implemento da ordem de ofício, está relacionada à constatação de flagrante ilegalidade. Em obediência ao princípio da proteção judicial efetiva (artigo 5º, inciso XXXV, CF), a aplicação analógica da Súmula 606 pode ser afastada nas situações em que a decisão impugnada for teratológica, manifestamente ilegal ou abusiva. Portanto, ainda que a análise em sede de Habeas Corpus tenha cognição limitada, se, a partir dos elementos já produzidos e juntados aos autos, restar evidente a ilegalidade, deve­ se resguardar os direitos violados com a concessão da ordem.

Aliás, no HC 91.551/RJ, o Tribunal Pleno concedeu um HC de ofício voltado contra ato de integrante do Supremo, ministro Cezar Peluso, proferido no bojo do Inquérito nº 2.424/DF, em que determinada a instauração de inquérito policial para apurar o vazamento de dados sigilosos da investigação por parte de profissionais da advocacia. Na ocasião, a maioria dos ministros atestou a impropriedade de os advogados figurarem como investigados considerada a ausência de indícios de participação em prática delituosa.

Assim, ainda que exista um entendimento consolidado acerca do entrave processual ao cabimento de HC contra ato de ministro, o contexto revelado (…) impõe, em preservação ao direito fundamental à liberdade de locomoção, o reexame do tema pelos ministros da atual composição, por meio da afetação de um ou mais processos de Habeas Corpus para apreciação do Plenário do STF (artigo 21, IX, e 22 do RISTF).

Além disso, e antes mesmo da revisão dos precedentes acerca da inadequação do HC contra pronunciamento de ministro da corte, deve-se proceder à análise verticalizada da presença de manifesta ilegalidade ou teratologia no ato coator, vez que o fato de ter sido proferido por integrante do STF não tem o condão de afastar a incidência do artigo 654, § 2º, do CPP e do artigo 193 do próprio Regimento Interno (grifo nosso). 11

Assim sendo, o mínimo que se pode esperar de um tribunal e de seus componentes individuais, diante de alegada flagrante ilegalidade em prejuízo da liberdade de uma pessoa, é que não se fique ao rés do chão de uma fundamentação meramente formalista, sustentada em uma construção jurisprudencial evasiva. No mínimo seria necessária uma contundente e robusta justificação para afastar a situação teratológica e justificar a decisão com fulcro tão somente na vedação formal jurisprudencial.

No caso concreto sob análise seria aplicada mais especificamente a Súmula 606, STF por analogia. 12 Assim como não se admite HC para o Tribunal Pleno contra decisão de órgão fracionário, também não se admitiria o mesmo remédio contra decisão monocrática de Ministro.

Esse posicionamento se funda na alegação de que a competência para o processo e julgamento do Habeas Corpus deve obedecer ao “Princípio da Hierarquia” que estabelece que “não se pode reputar competente o mesmo juiz que autorizou a coação, ou que a ordenou, nem o seu igual, nem, ‘a fortiori’, o juiz inferior a ele”. 13

Dessa forma, percebe-se que se considera que o Tribunal Pleno não seria superior aos órgãos fracionários e nem mesmo a um de seus Ministros isoladamente.

Admitir esse entendimento, especialmente sem levar em consideração as características de patente ilegalidade e abuso de casos concretos, é ferir de morte, por um contorno espúrio, princípios constitucionais basilares.

Lembremos inicialmente do “Duplo Grau de Jurisdição”. Na dicção de Bonfim:

Princípio segundo o qual as decisões podem ser revistas por órgãos jurisdicionais de grau superior, por meio da interposição de recursos. Abrange tanto as questões de fato quanto as questões de direito, alcançando as sentenças e as decisões interlocutórias. 14

Obviamente não desconhecemos o fato de que o Habeas Corpus não é um recurso processual penal, mas uma “ação autônoma de impugnação”. Não obstante, certamente o duplo grau de jurisdição é a ele aplicável e, como se pode ver, não se trata tão somente de recursos a órgãos de “segundo grau”, mas da possibilidade de reexame de quaisquer matérias decididas por órgãos jurisdicionais monocráticos ou colegiados.

Considerar, portanto, que um órgão fracionário ou um Ministro não é inferior ao Tribunal Pleno, ainda mais sem a devida consideração de casos concretos teratológicos, é apequenar o alcance do Habeas Corpus e do Duplo Grau de Jurisdição de forma inadmissível.

Ademais, tal postura desconsidera o “Princípio da Colegialidade” típico dos órgãos jurisdicionais superiores. Ora, se os julgamentos em reexame dos juízes singulares são submetidos a órgãos colegiados, é porque se considera que um colegiado tem maior capacidade de tomar uma decisão acertada do que um indivíduo. Dessa forma resta induvidoso que, por princípio, o Tribunal Pleno é necessariamente superior aos órgãos fracionários que o compõem e, principalmente, a cada um de seus membros. Não fosse assim, não existiria fundamento para a colegialidade. Há um excesso de poder quando se pretende equiparar, sem mais nem menos, um magistrado ao Tribunal Pleno de que faz parte. Ocorre uma visível concentração de poder ilegítima. E o recurso a essa argumentação, mesmo passando ao largo da consideração de casos gritantes de abuso conduz ao cultivo do indiferentismo diante de flagrantes ilegalidades e, em última análise a uma espécie de “descriminalização informal do Abuso de Autoridade” para alguns privilegiados.

Finalmente, é preciso lembrar sempre que o sustentáculo de toda a ordem jurídica é a existência de uma efetiva proteção judicial, de modo que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito possam ser afastadas da devida prestação jurisdicional. Diante do “Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição” nem mesmo a lei pode “excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito” (artigo 5º., XXXV, CF). Será que poderia então fazer isso uma Súmula, ainda que do STF? Ou um de seus Ministros com sustento em uma decisão meramente formal sem a devida apreciação da questão de fundo?

Poder-se-ia afirmar que não houve afastamento da questão do Poder Judiciário, já que um Ministro tomou, de qualquer forma, uma decisão denegatória, mas isso seria o cúmulo do cinismo porque exatamente o ato do Ministro em negar sequer o conhecimento do “writ” seria considerado como a devida prestação jurisdicional, o acesso do cidadão à Justiça! Nesse passo, a negativa do acesso à devida prestação jurisdicional, o bloqueio do duplo grau de jurisdição e a desconsideração da colegialidade seriam apontados como satisfações de um devido processo legal, numa inversão digna de um drama kafikiano. O cidadão se posta qual o camponês diante da porta da Lei descrita por Kafka. Essa porta que não se abre nunca, ou, quando se abre já não serve de nada. 15

Essas decisões do STF sob comento são perigosas e indesejáveis, na medida em que nos sugere a seguinte indagação perturbadora:

Qual o destino do Habeas Corpus na prática forense brasileira?

Fato é que tem havido um progressivo apequenamento da viabilidade do remédio heroico, revelando uma tendência perversa em fechar de todas as maneiras possíveis e imagináveis as portas desse meio defensivo do direito fundamental de liberdade frente a abusos e ilegalidades.

Toma-se a liberdade de transcrever a manifestação de Maia Filho:

Eu me pergunto qual será o futuro do Habeas Corpus, e me respondo que é um futuro no qual minguará a sua utilidade; ele somente será usado, ou admitido o seu emprego, em casos escancaradamente ilegais ou abusivos, mas aí é óbvio o seu cabimento. Os magistrados evitam analisar as peças que instruem os pedidos de HC, não sei se por temor de encontrarem o que não desejam (a demonstração da ilegalidade ou da abusividade da prisão ou da ameaça de prisão) ou porque entendem ser a prisão ou ameaça de prisão devidas, dada a gravidade do ilícito, por exemplo. Mas o futuro do Habeas Corpus corre sérios riscos; eu penso que não o teremos mais por muito tempo como remédio heroico de préstimo valiosíssimo e rápido, capaz de eliminar, prontamente, uma prisão ilegal ou abusiva, ou a ameaça dessa mesma prisão. 16

O Habeas Corpus é chamado propriamente de “remédio heroico” porque é um instrumento hábil a viabilizar a reparação de injustiças que ferem o direito de liberdade das pessoas. Sua configuração como garantia constitucional corre o risco de ser banalizada pela criação jurisprudencial de barreiras ao seu uso. Exigências como o prévio esgotamento de vias recursais ou mesmo o impedimento de seu manejo perante a coisa julgada, sua inaplicabilidade a decisões de certas autoridades judiciais, são irracionais ou fruto de uma deliberada abertura de portas para o exercício de um poder ilimitado, incompatível com a democracia. Ora, se há injustiça, deve sempre haver um meio para corrigi-la o mais rápido e eficientemente possível. Não cabe à jurisdição criar proteções para a injustiça por meio da restrição do uso de um instrumento tão valioso como é o Habeas Corpus.

Como bem lembra Cambi, “a construção de sistema jurídico ideal decorre do equilíbrio entre os valores da segurança jurídica e da justiça”. 17

Será que alguém concorda que uma injustiça se cristalize somente por causa da coisa julgada ou da não utilização tempestiva dos meios recursais pertinentes? Ou porque partiu de um determinado magistrado ou órgão? Não é isso sobrepor forma a conteúdo? Não é inverter a instrumentalidade das formas, dando protagonismo a estas em detrimento do fim maior do Direito, que é a consecução da Justiça?

Nenhuma crítica haveria se o Supremo Tribunal Federal, por meio do Ministro Flávio Dino ou do seu pleno, ao analisar as razões do Habeas Corpus, o indeferisse mediante fundamentação adequada. O problema é simplesmente fechar os olhos à avaliação de uma suposta ilegalidade ou abuso, deixando de apreciar a ação impugnativa.

Por isso é que tem razão o Ministro Marco Aurélio ao ponderar a ocorrência de um “retrocesso em termos de garantias constitucionais” (HC 110152/MS, rel. Min. Cármen Lúcia, 8.5.2012 – HC-110152). 18

E o pior não é somente o caso específico sob análise e sim a sua repercussão em decisões por todos os tribunais e juízos, principalmente em se tratando de um posicionamento emanado do mais elevado órgão jurisdicional brasileiro. Há o perigo de que essa espécie de pensamento se dissemine por meio de uma jurisprudência precedentalista acrítica no bojo da qual as decisões emanadas de órgãos superiores são simplesmente repetidas sem a necessária reflexão. Então a tendência de banalização na denegação sem conhecimento de Habeas Corpus pelos mais diversos subterfúgios, mesmo diante de ilegalidades patentes, tende a tornar-se uma regra.

Como bem lembra de forma irônica Schmidt, muitas vezes presenciamos o que o autor denomina de “teletubismo jurídico” na repetição da expressão cunhada pelo Desembargador Amilton Bueno de Carvalho. Trata-se de uma “doença crônica que atinge parte dos operadores jurídicos brasileiros”, podendo ser descrita como “um transtorno de personalidade argumentativa neutra que, em termos semelhantes àqueles ETs gordinhos do programa infantil, leva o doente do método de – novo – dedutivo. (…). Em seu estágio terminal, leva à petrificação dos neurônios e à incapacidade do uso do ‘por quê’”. 19

Infelizmente já percebemos que essas decisões do STF, similares à ora comentada, geraram seus frutos venenosos imediatamente. Elas se reproduzem como uma metástase jurídica no seio do Tribunal Supremo e estão matando a proteção devida ao direito fundamental à liberdade, uma vez que não se pode discutir o fato de que o Habeas Corpus é o instrumento jurídico – processual mais eficaz e célere para garantir o sagrado direito de ir e vir, de modo que se sobrepõe a qualquer outra medida (recursos, agravos regimentais etc.).

Por isso não é possível que se permaneça inerte diante de omissões perante abusos notórios. Inicie-se por dar às coisas seus verdadeiros nomes. Não se trata de análise de questões fáticas e de direito de um caso concreto e do indeferimento fundamentado do “writ”, mas de abuso que se sobrepõe a outro abuso, de inércia diante da ilegalidade mais escancarada e, ao fim e ao cabo, de uma descriminalização insidiosa do Abuso de Autoridade mediante um mecanismo de cegueira deliberada e indiferentismo propiciado pela repetição irresponsável de decisões padronizadas escapistas.

Em sua obra “Auto –de – fé”, Canetti se expressa pela boca de seu personagem Kien, com a seguinte afirmação:

“Basta darmos os nomes certos às coisas para que percam sua sinistra magia”. 20

Chamemos então a “Pilatização” da Justiça brasileira daquilo que ela realmente é: repasto para a disseminação do abuso e da omissão perante o abuso, da ilegalidade e da indiferença diante da gritante injustiça, caminho largo e confortável para a tirania e a violência.

E saibamos que não são somente alguns magistrados que estão se aproveitando e “lavando as mãos” diante da injustiça. Há outras importantes instituições e autoridades fazendo o mesmo (OAB, Ministério Público, Academia Jurídica, os chamados “juristas” etc.). Na verdade, participam dessa “Pilatização” da Justiça brasileira todos aqueles que se calam, se omitem, ou pior, são coniventes diante desse quadro dantesco.

Sobre o autor

Imagem do autor Eduardo Luiz Santos Cabette

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós – graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

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