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Internacional

Corte Interamericana condena Nicarágua em caso sobre povos indígenas

Pela primeira vez, Corte aborda relação entre os artigos 23 e 26 da Convenção Americana em relação ao direito à livre-determinação

Cidade de Bluefields, que abriga a Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields, na Nicáragua

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou a Nicarágua internacionalmente responsável no julgamento do caso dos povos Rama e Kriol, Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields e outros. Os direitos dos povos indígenas têm ganhado relevância nos casos do Tribunal e estão presentes na jurisprudência da Corte desde 2001, mas é a primeira vez que uma sentença aborda a relação entre os artigos 23 e 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos na análise do direito à livre-determinação de povos indígenas como uma expressão do direito à vida cultural.

Na Nicarágua, país multiétnico, multicultural e multilíngue, o caso evoca atenção. Para o julgamento, a Corte analisou uma série de fatos ligados ao reconhecimento e gozo da propriedade coletiva de diversas comunidades indígenas e afrodescendentes, à consulta com elas sobre o projeto de grande escala de um canal interoceânico e à eleição de autoridades ou representantes comunitários.

Os grupos envolvidos são a Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields, a maior comunidade afrodescendente da Nicarágua , com mais de 35 mil integrantes, além de seis comunidades indígenas Rama (Rama Cay, Wirning Kay, Bangkukuk Taik, Tiktik Kaanu, Sumu Kaat e Indian River) e três afrodescendentes Kriol (Monkey Point, Corn River e Graytown).

O sincretismo entre comunidades indígenas e afrodescendentes se deu no país a partir de 1640, em um processo de colonização conturbado, com disputas e conflitos territoriais, além de desmatamento, contaminação de recursos hídricos e perda de biodiversidade.

O Estado nicaraguense pouco fez para atender os meios de vida das comunidades. Ao contrário: os processos de demarcação sempre foram vistos como insuficientes ou parciais. Há alguns anos, comunidades indígenas chegaram a apresentar recursos para questionar a aprovação de um título que reconhecia parcialmente o território tradicional. Nenhum foi aceito.

Além disso, uma lei local outorgou uma concessão a favor de uma empresa para desenvolver uma série de projetos de infraestrutura, entre eles o chamado Grande Canal Interoceânico de Nicarágua, de 286 km de extensão, o triplo do Canal do Panamá, que uniria o mar do Caribe com a costa do Pacífico. O projeto foi tido como de impacto social e ambiental significativo, irreversível e sem precedentes em territórios autóctones. Representantes das comunidades afirmam que o Estado ainda não desistiu da construção.

Ingerência

Em sentença emitida no mês passado (18/11), a Corte considerou que a Nicarágua violou uma série de direitos civis, políticos, sociais e culturais das nove comunidades que compõem o governo territorial Rama e Kriol, bem como da Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields.

“A Corte estabeleceu que a Nicarágua: a) exerceu ingerência indevida na designação de autoridades e representantes comunais e territoriais da Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields e as nove comunidades que constituem os povos Rama e Kriol; b) violou os direitos das comunidades acima mencionadas sobre seus territórios; c) não forneceu uma resposta adequada às diferentes ações judiciais; d) não realizou ações preventivas necessárias quanto ao impacto ambiental gerado pelas atividades dos assentados no território das comunidades e e) aprovou e outorgou a concessão do projeto do Grande Canal Interoceânico de Nicarágua (GCIN) sem um processo de consulta prévia, livre e informada e sem realizar em tempo hábil um estudo de impacto ambiental e social”, escreveu o Tribunal na sentença.

A Corte determinou ainda que o Estado emitiu um título sobre a propriedade comunitária da Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields para uma área menor do que a inicialmente determinada, sem motivação suficiente, após um procedimento administrativo que sofreu atrasos injustificados e no qual a comunidade não foi devidamente ouvida.

E estabeleceu que, apesar do atraso injustificado de mais de 14 anos, a Nicarágua não concluiu o processo de saneamento do território das comunidades Rama e Kriol e não impediu  ocupações de terras por “colonos”. Além disso, o Estado não realizou adequadamente uma consulta prévia, gratuita e informada às comunidades Rama e Kriol e à Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields em relação ao projeto do Grande Canal Interoceânico da Nicarágua e não realizou, em tempo hábil, estudos de impacto ambiental e social relativos ao referido projeto.

Para a Corte, as ações e omissões do Estado nicaraguense significaram uma violação aos direitos políticos, à participação na vida cultural, à propriedade, à consulta prévia, livre e informada, às garantias judiciais, à proteção judicial e a um meio ambiente saudável das comunidades citadas.

Voto concorrente

O vice-presidente do Tribunal, o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, e o juiz mexicano Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot anunciaram voto conjunto concorrente, no qual detalham o ineditismo da sentença. Um primeiro aspecto novo, destacam, é a análise do conteúdo do direito à livre-determinação que, em essência, constitui uma expressão do direito à vida cultural.

“De fato, a sentença aborda, pela primeira vez e de maneira progressiva, a relação entre os artigos 23 e 26 da  Convenção Americana em relação ao direito à livre-determinação dos povos indígenas e tribais.  Embora a Corte IDH tenha  reconhecido anteriormente  a existência do direito  à  livre-determinação  desses  povos e de seus  membros, esta é a primeira ocasião em que um de seus  aspectos, o direito à  autonomia e ao autogoverno, foi aplicado e analisado”, escrevem os juízes em seu voto conjunto.

Já o conteúdo do artigo 26 da Convenção Americana é incorporado à  análise  da  consulta  livre, prévia e informada. Os juízes lembram que a Corte  havia  construído gradualmente a base convencional desse direito a partir dos artigos 13 (direito de acesso à informação), 21 (direito à propriedade) e 23 (direitos políticos) do Pacto de San José.

“Agora, ela também o faz a partir da perspectiva do direito de participar da vida cultural (que  inclui  o  direito  à  identidade  cultural)  contido  no  artigo  26,  o  que  ajuda  a complementar o arcabouço normativo para evitar sobreposições em questões que, em cada caso, podem ser analisadas”, afirmam os juízes Mudrovitsch e Mac-Gregor.

Eles salientaram, ainda, a declaração de violação do direito a um meio-ambiente saudável. A sentença se soma às decisões que desenvolveram esse direito protegido no artigo 26 do Pacto de San José, como no caso Habitantes de La Oroya Vs Peru, do ano passado.

No caso atual, o Tribunal Interamericano considerou  que a Nicarágua não cumpriu o dever de exigir  e aprovar um estudo de impacto ambiental e social antes  de  outorgar a concessão a uma  empresa privada  para  iniciar o desenvolvimento e a construção do Grande Canal Interoceânico da Nicarágua.

Outro aspecto destacado no voto é a indivisibilidade e interdependência dos direitos, para além do conteúdo jurídico próprio de cada um deles. Os juízes se baseiam nessa análise integral para sustentar que cada direito tem seu próprio âmbito de proteção, “o que permite sua incidência simultânea e não excludente, sob uma concepção global e integral da proteção da pessoa humana”.

Para Flávia Piovesan, professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da PUC-SP, o voto é multidimensional e aponta avanços significativos em várias arenas, em uma interpretação dinâmica e evolutiva por parte dos juízes da Corte.

“No voto concorrente, os juízes Eduardo e Rodrigo citam que estão saldando uma dívida do sistema interamericano com relação a esse tema. Os estândares não eram tão sólidos. Essa decisão foi uma oportunidade para a Corte interamericana densificar os estândares americanos em matéria de direito à autodeterminação dos povos indígenas tendo como base os artigo 23 e 26 da Convenção, na associação do direito à livre determinação dos povos indígenas com direitos culturais”, afirma ela.

Outro legado importante, destaca, se refere ao direito à consulta livre, prévia e informada. “A Corte faz uma análise sistemática da Convenção, dialogando com os artigos 13, 23 e 26, para dar uma base convencional ao direito à  consulta livre, prévia e informada, que por vezes a Corte invocava a Convenção 69 da OIT. Agora a Corte reinterpreta a Convenção, para conferir um respaldo convencional sólido ao direito à consulta livre, prévia e informada de povos indígenas”, explica Flávia Piovesan.

Outro ponto relevante, ainda relativo ao artigo 26 lido à luz das obrigações estatais dos artigos primeiro e segundo, diz, é o avanço na jurisprudência interamericana que reconhece o direito autônomo ao meio ambiente saudável.

“Isso vinha desde a Opinião Consultiva 23, de 2017. A Corte mais uma vez fortalece essa visão de que a violação do direito humano ao meio ambiente saudável traz impacto no que se refere ao direito à vida, saúde, moradia, trabalho dentre outros”, diz Flávia Piovesan.

Para o pesquisador Flávio de Leão Bastos, professor da Universidade Mackenzie e advogado que atua perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a sentença se destaca ao conferir um sentido mais amplo e profundo aos direitos indígenas, para além de uma visão ocidentalizada.

“Ela reforça os elementos típicos que dão vida às características culturais próprias projetadas por esses povos, e que são pouco conhecidas pela sociedade não indígena, a sociedade dominante industrializada, que não compreende a relação dos povos originários com suas terras e a territorialidade, que vai além do conceito geográfico, é  ancestral. Uma decisão como esta da Corte é importante porque converte essas referências cosmológicas a uma linguagem mais compreensível para a sociedade e reforça os direitos desses povos, em sua propriedade coletiva e identidade cultural”, afirma ele.

Para o professor, o voto conjunto de Mudrovitsch e Mac-Gregor fortalece essa visão, uma vez que a garantia à autonomia desses povos, como expresso no texto dos juízes, permite que eles ampliem e potencializem suas expressões produtivas, culturais, religiosas e artísticas, o que se converte em benefício para o próprio Estado.

“O autogoverno, a autonomia e a segurança de terras indígenas demarcadas e homologadas não ameaçam de forma alguma a soberania dos Estados. Ao contrário, as reforça, porque um Estado inclui a todos, maiorias e minorias”, afirma. “A sentença estabelece um corte transversal que reúne nessa interpretação uma referência muito clara, que vai além do caso da Nicarágua”.

Decisões do tipo criam precedentes para toda a região, diz, e podem influenciar casos similares em outros tribunais, como na Europa.

Voto dissidente

A juíza chilena Patricia Pérez Goldberg divulgou voto parcialmente dissidente, no qual discorda de que houve violação dos direitos políticos e do direito a participar da vida cultural, reconhecidos nos artigos 23 e 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Discorda, ainda, que houve violação dos direitos às garantias judiciais e à propriedade de determinadas comunidades, do direito à consulta prévia, livre e informada e do direito a um meio ambiente saudável.

“A questão dos povos indígenas já vem de decisões anteriores, como o Caso Comunidade Indígena Maya Q´eqchi´Agua Caliente Vs Guatemala e o caso Comunidade Garífunda de San Juan e seus membros Vs Honduras, onde  Mudrovitsch e Mac-Gregor já manifestavam o que consideram corretamente o desenvolvimento progressivo do artigo 26, e essa posição difere da juíza Goldberg, que junto ao juiz Humberto Sierra Porto representa outra linha de posição forte na Corte”, explica a professora de direito constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carolina Cyrillo, coordenadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos.

“Essa divergência é salutar e uma das marcas mais importantes dessa conjunção entre Mudrovitsch e Mac-Gregor, que deixará a Corte ano que vem. Ambos são constitucionalistas e conduzem a Corte por uma forma de interpretar a proteção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos que é corrente no direito constitucional. De alguma forma, eles traduzem uma dogmática interpretativa própria do direito constitucional para dentro do sistema de proteção dos direitos humanos da Corte, e isso dá uma densidade maior a essas novas decisões”, afirma Carolina Cyrillo.

Reparação

No caso em questão, a Corte ordenou que a Nicarágua adote ações para substituir o título de propriedade comunitária emitido à Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields e realize os atos correspondentes de delimitação, demarcação e saneamento.

Determinou ainda que o Estado se encarregue de proteger as propriedades comunitárias da Comunidade Indígena Crioula Negra de Bluefields e das comunidades Rama e Kriol e concluir o processo de saneamento do território. Além disso, deve adotar, em consenso com as comunidades Rama e Kriol, medidas para garantir a coexistência pacífica dentro do território, dos membros das comunidades e de pessoas fora delas.

Sobre a construção do canal interoceânico, a Corte ordenou que o Estado garanta que quaisquer medidas que possam ser tomadas em relação ao projeto sejam precedidas de um processo de consulta livre, prévia e informada.

Determinou, ainda, a constituição de um fundo em benefício dos membros das comunidades vítimas, para financiar projetos de diferentes tipos.

Participaram da emissão da sentença os juízes Rodrigo Mudrovitsch (Vice-presidente, Brasil); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai); Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).

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