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Judiciário

Crimes contra a previdência social

É comum a imputação de responsabilidade delitiva ao sócio-gerente de uma sociedade simples ou limitada, de forma indiscriminada, por parte dos agentes do fisco. Na verdade, tal conduta é condenada pela jurisprudência do STF, que exige a comprovação da culpa subjetiva

Resumo:

  • Os crimes contra a Previdência Social eram inicialmente regulados pela Lei no 3.807/1960 e posteriormente passaram a ser disciplinados pela Lei no 8.212/1991, sendo posteriormente incorporados ao Código Penal.
  • O art. 168-A do Código Penal tipifica o crime de deixar de repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos contribuintes, com pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa, além de outras condutas relacionadas ao não recolhimento de contribuições devidas.
  • O objeto jurídico protegido é o patrimônio da Previdência Social, sendo o sujeito ativo do crime o responsável tributário que deixa de repassar as contribuições retidas na fonte, com a consumação do delito ocorrendo no momento em que ocorre o não repasse das contribuições.

Os crimes contra Previdência Social estavam inicialmente capitulados no art. 86 da Lei no 3.807, de 26-8-1960, que dispõe sobre Lei Orgânica da Previdência Social. Ao depois, passaram a ser regulados pela Lei no 8.212, de 24-7-1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social e instituiu o Plano de Custeio.

Atualmente, os crimes contra a Previdência Social foram incorporados ao Código Penal, como a seguir veremos.

O art. 95 da Lei no 8.212/91 foi revogado pela Lei no 9.983, de 14-7-2000, que alterou o Decreto-lei no 2.848, de 7-12-1940, Código Penal, introduzindo novos artigos tipificando os crimes contra a Previdência Social, como veremos a seguir.

a)   Exame específico do art. 168-A do CP

 “Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada ao público;

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;

III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.

§ 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

§ 3o É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que:

I – tenha promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, inclusive acessórios; ou

II – o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.”

Breves comentários

caput do art. 168-A, que comina as penas de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, transpôs para o estatuto penal o crime então definido no art. 95, letra d, da Lei no 8.212/91 sem qualquer solução de continuidade. Não tem razão, data venia, a corrente doutrinária que advoga a tese do abolitio criminis, pois o mesmo fato continua tipificado na nova lei com pequenas alterações redacionais, inclusive redução da pena de dois a seis anos de reclusão para dois a cinco anos de reclusão sem, contudo, atingir o núcleo do crime. Nesse sentido é a jurisprudência do STJ (Resp nº 96.836, Resp nº 120.634 e HC nº 5.633) Na mesma linha, a jurisprudência do STF (HC nº 84.021; RTJ 199-01/272).

Dessa forma, haverá ou não a retroatividade da nova lei conforme a pena cominada seja mais branda ou mais grave que aquela prevista no estatuto anterior (art. 95, letras d, e e f, da Lei no 8.212/91).

Objeto jurídico

O bem jurídico protegido é o patrimônio da Previdência Social que, juntamente com a saúde e a assistência social, integra a Seguridade Social (art. 194 da CF).

De fato, os arts. 196, 201 e 203 da CF delineiam os direitos concernentes à saúde, à previdência social e à assistência social, respectivamente. Por isso, é possível afirmar que a Previdência Social no Brasil evoluiu ou tende a evoluir para o sistema de seguridade social, ainda que mantendo parte de sua fonte de custeio nas contribuições sociais, porém, deixando patenteada a diversidade da base de seu financiamento (inciso VI do parágrafo único do art. 194 da CF).

Sujeito ativo

É o responsável tributário, isto é, a pessoa que, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorre de expressa disposição de lei (art. 121, parágrafo único, II, c.c. art. 128, do CTN). É a pessoa que retém na fonte as contribuições devidas por trabalhadores, empregados ou não, para oportuno recolhimento aos cofres da Previdência Social.

Sujeito passivo

De regra, é a Previdência Social que deixa de receber o repasse das contribuições previdenciárias retidas na fonte. A vítima do crime pode, também, ser a pessoa que teve a contribuição descontada e não repassada para a Previdência. Como se sabe, a aposentadoria do empregado passou de tempo de filiação para o tempo de contribuição à Previdência Social, a partir da EC no 20/98 (art. 201, § 7o, I, da CF).

Tipo objetivo

O elemento nuclear do crime é “deixar de repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos contribuintes no prazo legal ou convencional”. Sem o prévio recolhimento, ou seja, desconto na fonte por ocasião de pagamento de salários, honorários etc., não há que se cogitar de apropriação indébita. Somente o não repasse da importância retida no prazo legal ou convencional é que caracteriza o crime.

A jurisprudência do STJ tem interpretado o crime do art. 168-A do CP como sendo  um crime omissivo puro não se exigindo necessariamente um resultado naturalístico. Contudo, admite a dificuldade financeira a impedir o repasse do tributo à previdência social como causa supralegal de exclusão de culpabilidade e inexigibilidade de conduta diversa, porém, demandando exame caso a caso para que o julgador verifique a sua plausibilidade de acordo com os fatos  concretos revelados nos autos, não bastando referência a meros indícios de insolvência da sociedade (REsp no 113735/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe de 29-3-2010).

Tipo subjetivo

Sem o dolo específico, isto é, a vontade livre e consciente de não repassar à Previdência Social a importância que recebeu para esse fim, no prazo legal ou convencional é que fica caracterizado o crime, pois é a partir de então que fica comprovada a intenção do sujeito ativo de passar a usufruir da importância não repassada, como se fosse um bem próprio. Nesse sentido, é a lição de Celso Delmanto, Roberto Delmanto e outros[1] baseada na doutrina clássica. Entretanto, a jurisprudência do STF evoluiu no sentido de que “basta a demonstração do dolo genérico, sendo dispensável um especial fim de agir, conhecido como animus rem sibi habendi (a intenção de ter a coisa para si)” (AP no 516/DF, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 6-12-2010).

Outrossim, a Terceira Seção do STJ pacificou o entendimento acerca da necessidade de individualização da conduta no crime de apropriação indébita, não bastando que a pessoa apenas figure no contrato social como diretor ou cotista. Para que essa pessoa seja denunciada por crime de apropriação indébita previdenciária é preciso que o Ministério Público individualize a conduta do acusado, pois o fato de simplesmente alguém ser sócio ou diretor de uma sociedade empresarial não faz presumir sua responsabilidade na situação tipificada na legislação penal (EREsp – CE  687594; Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura;  DJe de 14-04-2010).

Consumação

Tratando-se de crime material em que a conduta “deixar de repassar” não comporta fragmentação, o crime ocorre no momento em que o agente deixar de repassar à Previdência Social a contribuição social retida, momento esse definido em lei ou convenção. Não há possibilidade de crime em sua modalidade tentada.

Hugo de Brito Machado critica com veemência a posição jurisprudencial que admite o crime de apropriação  indébita sem dolo específico, porque considerar crime a simples omissão de recolher o tributo no prazo legal seria o mesmo que sancionar a prisão por dívida. São suas as palavras:

“Se as normas que dizem ser crime o não recolhimento de tributos nos prazos legais criam tipo novo, diverso da apropriação indébita, são inconstitucionais, porque afrontam a proibição de prisão por dívida. Se apenas explicitam que esse não recolhimento configura tipo do art. 168 do Código Penal, sua aplicação somente há de se dar quando presentes todos os elementos daquele tipo, entre os quais o dolo específico, a vontade consciente de fazer próprio o dinheiro do fisco.” [2]

Com razão o ilustrado autor. Se o crime do art. 168-A do CP não exige dolo específico não se pode sustentar que se trata de apropriação indébita que na forma do art. 168 do CP que exige aquela vontade livre e consciente de fazer próprio algo que é de outrem. Assim, trata-se de um caso de prisão por dívida fora das hipóteses excepcionais do inciso LXVII, do art. 5º da CF. Por isso, viola claramente o disposto no art. 7º do Pacto de San José da Costa Rica incorporado ao nosso direito pelo Decreto nº 678 de 6-11-1992, in verbis:

“Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplmento de obrigação alimentar.”

b) Exame do § 1º, inciso I

Ҥ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público”.

Esse inciso limita-se a reproduzir o que estava prescrito na letra d do art. 95 da Lei no 8.212/91, acrescentando como elemento objetivo do crime o não repasse das importâncias descontadas de terceiros. Ao cominar a mesma pena estipulada para o caput promove uma equiparação de condutas, na verdade diferentes. No caput a  conduta tipificada consiste em não repasse das contribuições recolhidas dos contribuintes, ao passo que a do inciso I, do § 1º consiste no não repasse da contribuição previdenciária descontada na fonte pagadora, ou seja, retida na fonte. Uma coisa é receber e outra coisa é reter.

Na primeira hipótese pode haver, em tese, apropriação indébita, na segunda, não. Outrossim, há uma sutil distinção: enquanto o caput refere-se a prazo legal ou convencional, o inciso sob exame refere-se exclusivamente a prazo legal, o que afasta o não recolhimento no prazo convencional. Vale dizer, ausente definição legal de prazo de recolhimento, o crime não ocorrerá. Em princípio, entende-se por prazo legal aquele estipulado em lei em sentido estrito. Todavia, se a própria lei instituidora da contribuição remeter ao Regulamento a fixação do prazo de recolhimento ou repasse da contribuição, tem-se que estamos diante de delegação válida, pois essa matéria não está inserida no campo de reserva legal, de conformidade com o art. 97 do CTN.

Na prática, é comum a imputação de responsabilidade delitiva ao sócio-gerente de uma sociedade simples ou limitada, de forma indiscriminada, por parte dos agentes do fisco. Na verdade, tal conduta é condenada pela jurisprudência do STF que exige a comprovação da culpa subjetiva: “5. A mera participação no quadro societário como sócio-gerente não pode significar a automática, ou mecânica, responsabilização criminal, porquanto não se pode presumir a responsabilidade criminal daquele que se acha no contrato social como sócio-gerente, devido apenas a essa condição, pois tal increpação mecânica ou linear acarretaria a aplicação da inadmissível figura de responsabilidade penal objetiva” (Ap. 516/DF, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de 6-12-2010).

c) Exame do § 1º, inciso II

Ҥ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

II – recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços.”

Reproduz de certa forma o que estava disposto na letra e do art. 95 da Lei no 8.212/91, limitando-se a alteração da denominação “Seguridade Social”, que estava na lei anterior, para “Previdência Social”, que do ponto de vista técnico é o mais correto. A Seguridade Social, como já vimos, tem um campo de abrangência maior que a Previdência Social, que se insere naquela.

Cumpre observar que essa hipótese do inciso II nem de longe pode configurar apropriação indébita ou figura a ela assemelhada, pelo que a equiparação às penas cominadas no caput é ilegítima. Trata-se de figura equiparada atípica. É que nos chamados tributos indiretos, como é o caso da contribuição previdenciária, o respectivo encargo tributário é considerado na fixação do preço dos produtos ou dos serviços, tanto quanto a matéria-prima empregada, o valor da mão de obra, inclusive, a margem de lucro do empresário. Assim, a venda do produto ou serviço com a percepção efetiva do preço respectivo não significa que o vendedor tenha recebido o valor do tributo incidente na operação de venda ou da contribuição social devida, computada previamente na formação daquele preço. Por isso, a tributação por dentro, ao contrário de tributação por fora vigente nos Estados Unidos da América ou no Japão, por exemplo, dá margem à sonegação fiscal. Essa técnica de tributação por dentro torna nebulosa a norma tributária, não permitindo ao consumidor saber o preço efetivo do produto ou do serviço antes da tributação, contrariando o princípio de transparência tributária que está inserido no § 5o do art. 150 da CF. 

d) Exame do § 1º, inciso III

 “§ 1o Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

III – pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.”

Corresponde ao que estava prescrito na letra f do art. 95 da Lei no 8.212/91 abrangendo pela expressão “benefício devido a segurado” os diferentes benefícios enumerados na lei antiga que continha, ainda, a expressão “ou outro benefício devido a segurado”. Houve, assim, um aperfeiçoamento redacional. A hipótese é de difícil ocorrência. Pode-se visualizar o exemplo do benefício previdenciário do salário-família que cabe ao empregador pagar ao segurado mensalmente junto com o salário mediante compensação por ocasião do recolhimento das contribuições previdenciárias. Ocorre que pelas legislações trabalhista e previdenciária o pagamento mensal do salário precede a data de recolhimento das contribuições previdenciárias, donde a dificuldade de ocorrência da hipótese tipificada.

Os três incisos do § 1o cominam as mesmas penas do caput – reclusão de dois a cinco anos e multa – para as hipóteses de não repassar contribuição ou outra importância destinada à Previdência Social (inciso I); não recolher as contribuições que tenham integrado despesas contábeis ou custos de produtos ou serviços (inciso II); e deixar de pagar o benefício devido a segurado quando a Previdência social já houver reembolsado as respectivas cotas ou valores (inciso III). Trata-se, na verdade, de hipóteses diferentes, sendo que a do inciso II sequer pode ter as mesmas penas previstas para a hipótese do caput, conforme retroexaminado.

Examinaremos os §§ 2º e 3º d art. 168-A do CP no próximo artigo. 


[1]Código Penal comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 386 

[2] Crimes contra ordem tributária. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 408.

Sobre o autor

Imagem do autor Kiyoshi Harada

Kiyoshi Harada

Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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