Educação & Cultura
Autoavaliação docente: incentivo ao aprimoramento constante
Antes de se preparar para o próximo semestre, veja essas dicas para revisitar suas práticas de forma reflexiva e planejar o restante do ano
Planejar, aplicar, avaliar, refletir e planejar de novo. O trabalho dos professores é sempre um processo para entender o que funciona e o que não dá tão certo dentro da sala de aula. “E o foco central disso é garantir o direito dos estudantes de aprenderem”, afirma Edileuza Fernandes, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).
Nesse planejar e replanejar, os professores passam constantemente pela autoavaliação. Bem-feita, ela fornece boas pistas do que é preciso aprimorar. Edileuza lembra que todo profissional deve se autoavaliar, mas que, na Educação, isso se torna ainda mais essencial, já que essa reflexão sobre as próprias práticas permite que alterações sejam feitas a tempo de promover uma melhor atuação em sala de aula, em benefício dos estudantes.
Para Priscila Almeida, educadora e formadora do time NOVA ESCOLA, é necessário que o professor “se entenda como alguém que precisa de aperfeiçoamento e que é capaz de aprender” para que consiga realizar essa autoavaliação. “Se isso não acontece, o trabalho dele acaba ficando em descompasso com o que o estudante precisa”, analisa.
Entender-se como parte de um processo e passível de erros é um bom primeiro passo para mergulhar de cabeça na autoavaliação. Isso também garante que o professor não coloque sobre si uma cobrança excessiva. “A gente não avalia a figura da pessoa, mas o trabalho, a atividade docente”, comenta Edileuza.
Ao final de um semestre, a autoavaliação serve como um importante instrumento para planejar o restante do ano letivo, levando em consideração tudo o que já aconteceu. No ano atípico em que estamos, isso se torna ainda mais essencial. Depois de quase dois anos de ensino remoto ou híbrido por conta da pandemia de Covid-19, 2022 marca o retorno presencial em grande parte das escolas brasileiras e o termo que tem guiado o trabalho é recomposição das aprendizagens.
Para realizar essa recomposição, os docentes tiveram que testar novas metodologias, priorizar habilidades e realizar diversas mudanças. Nesse sentido, a autoavaliação ajuda a entender o que tem dado certo e o que ainda pode melhorar. “Depois desses seis meses, preciso observar se eu vou precisar fazer uma recuperação em determinado assunto, o que devo aprofundar ou solidificar. Neste momento, a autoavaliação é muito válida porque você consegue enxergar, de fato, se essa recomposição de aprendizagens está caminhando dentro da estrutura do currículo”, afirma Ricardo Quirino, professor de educação básica II de Geografia na rede municipal de Caraguatatuba (SP).
Autoavaliação na prática
Uma docente bastante adepta da autoavaliação é Marcela Saramela, professora do 3º ano do Ensino Fundamental na Escola Municipal Jael Da Silva Barradas, em Boa Vista (RR). Ela conta que, no meio do ano, costuma refletir sobre o semestre que passou para replanejar seu trabalho. Neste ano de recomposição de aprendizagens, o foco tem sido a alfabetização e algumas habilidades de Matemática que os alunos ainda não conseguiram alcançar.
Para Marcela, a autoavaliação é um processo que passa por diversos momentos: ela revê os planejamentos, analisa as avaliações dos estudantes, conversa com as famílias, troca experiências com os pares da rede de ensino e faz perguntas para si mesma a fim de refletir sobre suas estratégias e entender como pode modificá-las para garantir que os alunos aprendam.
Edileuza aconselha começar pela análise das avaliações realizadas ao longo do período, já que o desempenho dos estudantes é um dos maiores indicativos dos aspectos nos quais o professor pode melhorar. “Se eu percebo que, na turma, um número expressivo de estudantes não estão alcançando os objetivos de aprendizagem definidos para aquele bimestre ou semestre, então isso é um sinalizador de que eu preciso repensar o meu trabalho”, analisa. A especialista orienta que as avaliações aplicadas aos estudantes sejam mais formativas e não aconteçam apenas no final do bimestre, para que tenham função diagnóstica, sobretudo neste momento de recomposição de aprendizagens.
Além de analisar o desempenho dos alunos, é importante também conversar com eles para ouvir suas opiniões a respeito das aulas, o que também pode oferecer evidências ao professor. “Às vezes, eles trazem um olhar que a gente não percebeu na hora em que estava desenvolvendo a estratégia. Por isso, essa escuta ativa é tão importante”, comenta Priscila.
Depois de coletar evidências, é hora do professor refletir sobre a própria prática. “O trabalho do professor é intencional e conta com um planejamento feito no início do ano letivo. Na autoavaliação, é recomendável retomá-lo”, aconselha Edileuza. Diante disso, perguntas podem servir como guia para a autoavaliação. Confira algumas sugestões dos professores e especialistas entrevistados:
- Meu trabalho conseguiu alcançar os objetivos propostos no início do período?
- Eu estou garantindo os direitos de aprendizagem?
- Os alunos estão progredindo nas habilidades propostas?
- Eu consegui cumprir as habilidades essenciais?
- Quais habilidades não foram devidamente assimiladas pelos estudantes?
- Eu consegui contribuir para que os estudantes tivessem mais autonomia?
- Quais estratégias deram bons resultados? De que forma eu posso replicá-las em outros conteúdos?
- Quais estratégias garantiram o engajamento dos estudantes?
- Em quais aspectos eu posso melhorar? (vale avaliar abordagens, seleção e organização de conteúdos, sequência didática e contextualização dos temas)
- As metodologias utilizadas estão atendendo ao perfil dos estudantes?
- Com quem eu posso dialogar sobre essas reflexões? (vale procurar o coordenador pedagógico ou os colegas professores e trocar experiências)
- Quais estratégias eu posso acrescentar ou testar?
Depois dessa reflexão, é importante documentar a autoavaliação e, para isso, existem diversas opções. Algumas redes de ensino trabalham com modelos prontos, como as rubricas de autoavaliação. Se não houver um tipo de registro oficial, o professor pode optar por anotar no diário, no computador, no caderno de planejamento ou fazer um relatório, por exemplo. “O importante é registrar”, diz Edileuza. A NOVA ESCOLA elaborou um modelo que pode auxiliar o professor nesse processo – que pode tanto ser utilizado digitalmente, quanto impresso para preenchimento e anotações. Confira abaixo:
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Mudando a rota, mas sempre buscando a aprendizagem
Na prática, o processo da autoavaliação costuma render bons frutos. Depois de entender quais são os pontos de fraqueza e o que tem funcionado bem, o professor precisa recalcular a rota, sempre tentando traçar novas estratégias. “Não adianta só fazer a autoavaliação e constatar. É preciso identificar o que deve ser melhorado”, afirma Edileuza, que orienta que os professores busquem ajuda com pares ou gestão da escola para replanejar, se necessário.
Logo nos primeiros meses deste ano, a professora Marcela diagnosticou que precisaria mudar as estratégias de leitura com suas turmas de 3o ano. Inicialmente, estava trabalhando com os alunos os textos do livro didático. Em um processo de autoavaliação, percebeu que eles eram muito complexos para a sua turma, por causa da defasagem dos últimos anos de ensino remoto. Ela começou, então, a trabalhar com mini livros. Os alunos levavam os livrinhos para casa e, no outro dia, contavam sobre eles, cada um à sua maneira e nível de aprendizagem: alguns liam, enquanto outros descreviam imagens, por exemplo.
“Isso despertou neles o interesse para melhorar na leitura, porque todo dia sabiam que eles iriam ler aquele livrinho. Também fez com que aqueles que estavam com dificuldade não ficassem envergonhados, não tivessem medo de aprender. Foi uma estratégia que surgiu em um processo de autoavaliação e deu resultado”, relata Marcela.
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Professor não está sozinho
Neste momento de replanejamento após a autoavaliação, é muito importante o professor ter em mente que ele não está sozinho. Por vezes, o processo de refletir sobre as próprias práticas pode gerar uma auto cobrança ou uma sensação de fracasso, mas a ideia não é essa. “O professor planeja com seus colegas de área e com a coordenação pedagógica. Por isso, ele não deve se responsabilizar sozinho pelas fragilidades da atuação dele; ele precisa contar com uma rede de apoio. Temos que romper a ideia de que o professor tem que ficar na solidão fazendo auto reflexões e sofrendo com conquistas que não teve. Se, na escola, o trabalho é coletivo, a autoavaliação também tem que ser”, defende Edileuza.
Ricardo acrescenta que o professor precisa de um incentivo para realizar a autoavaliação, que muitas vezes vem da coordenação pedagógica. “Não é comum se autoavaliar por conta própria”, comenta. Ele defende que os pares se juntem para discutir no início do processo. “É interessante juntar todos e pensar quais itens serão avaliados e construir uma rubrica em conjunto. Aí cabe ao coordenador, enquanto gestor pedagógico da escola, propor essas reflexões”, comenta.
É o que tem feito Keli Patricia Luca, coordenadora pedagógica na Escola Municipal de Ensino Infantil Romeu Fiorelli, em São Caetano do Sul (SP). Ao longo dos 19 anos em que atuou como professora, ela sempre percebeu a importância da autoavaliação em seu trabalho. Agora, tenta passar isso também para os professores que coordena.
A prática é frequente, ao longo do semestre, e também acontece em fechamentos de ciclos. Durante os momentos semanais de HTPC, Keli promove essa troca entre pares, sempre focando as formações nos temas de maior necessidade dos docentes. Além disso, ajuda ativamente os professores no processo de autoavaliação com relatos reflexivos. Nesse caso, ela não somente propõe uma estratégia de autoavaliação, mas também a executa junta com os colegas.
Funciona assim: primeiro, ela e o professor planejam uma atividade, a executam com os estudantes e fazem registros dela em ação, como fotos e vídeos. Depois, eles revisitam esses registros de forma reflexiva. Um dos dois escreve um relato autoavaliativo, enquanto o outro se encarrega de dar uma devolutiva a este texto, pontuando “o que funcionou bem, o que poderia ser mudado em uma próxima proposta e, ainda, o que poderia vir na sequência, dando prosseguimento aos interesses das crianças, para que continuem aprendendo”, conta Keli. “Essa parceria com a coordenação auxilia no processo de autoavaliação”, garante.
Para ela, é importante que os coordenadores incentivem a autoavaliação e procurem orientar o processo para que faça sentido para os professores que, por sua vez, devem encontrar um ponto de apoio na gestão . “É preciso buscar um intenso espaço de troca, porque quando a gente fala em autoavaliação, parece ser uma coisa isolada, quando na verdade, envolve os profissionais responsáveis pelo pedagógico na escola de forma integrada”, afirma.
“Aqui na rede de Caraguatatuba, a gente quer criar uma cultura em que a autoavaliação corriqueira e formativa, que não tenha esse peso de uma avaliação institucional”, conta Ricardo. Segundo ele, não é preciso tanta profundidade, com registros e perguntas elaboradas, mas revisitar a prática deve se tornar um costume. “A autoavaliação pode estar ali no cotidiano. É importante tirar do papel e levar para a prática, para o dia a dia da escola.”
Indicações de livros para aperfeiçoar a prática
Essas referências podem ajudar os docentes a irem além da autoavaliação. Uma boa dica é debater essas leituras com os pares dentro da escola.
Planejamento Para a Compreensão: Alinhando Currículo, Avaliação e Ensino por Meio da Prática do Planejamento Reverso – Grant Wiggins e Jay McTighe, Editora Penso
Dica de Ricardo Quirino: “Esse livro traz vários indicativos de autoavaliação que podem ser usados para a construção de uma rubrica”.
Aprendizagem Visível Para Professores: Como Maximizar o Impacto da Aprendizagem – John Hattie, Editora Penso
Dica de Ricardo Quirino: “Esse é outro livro excelente para refletir sobre o processo de autoavaliação”.
Educação Infantil: Saberes e Fazeres da Formação de Professores – Luciana Esmeralda Ostetto, Papirus Editora
Dica de Keli Patricia Luca: “O processo de formação continuada é essencial e, quando acontece no cotidiano da Educação Infantil, pode envolver todas as partes (educadores, famílias e crianças) que constroem coletivamente um sentido. Este livro discute questões do dia a dia que ampliam nosso olhar através da reflexão sobre nossas práticas”.
A Escola Com Que Sempre Sonhei Sem Imaginar Que Pudesse Existir – Rubem Alves, Papirus Editora
Dica de Marcela Saramela: “Muitas vezes, os professores ficam engessados em só seguir o planejamento e têm resistência a essa mudança de rota. Esse livro é muito inspirador nessa questão”.
Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa – Paulo Freire, Editora Paz & Terra
Dica de Edileuza Fernandes: “Traz muitos saberes, inclusive há um capítulo sobre reflexão crítica sobre a prática. É um livro bem acessível”.
Pensamento Sistêmico: o Novo Paradigma da Ciência – Maria José Esteves De Vasconcellos, Papirus Editora
Dica de Priscila Almeida: “Quando dizemos que o professor precisa se enxergar no processo, isso tem a ver com pensamento sistêmico, que é olhar o todo”.
Ensinar a Viver: Manifesto Para Mudar a Educação – Edgar Morin, Editora Sulina
Dica de Priscila Almeida: “Esse livro, apesar de não falar especificamente de autoavaliação, é fundamental para qualquer situação. Para viver bem, precisamos refletir diariamente”.
A Quinta Disciplina: a Arte e Prática da Organização Que Aprende – Peter Senge, Editora Best Seller
Dica de Priscila Almeida: “Não apenas da escola, esse livro fala de disciplinas que são imprescindíveis para uma organização aprender e evoluir”.