Internacional
Serviço alemão leva aos pobres comida que iria para o lixo
Mesmo na rica Alemanha, cada vez mais gente depende da comida distribuída por bancos alimentares. Além de ajudar os mais necessitados, essas entidades beneficentes evitam o desperdício
A inspiração para o banco de alimentos na Alemanha veio dos Estados Unidos. Um membro de um grupo de mulheres de Berlim leu um artigo sobre voluntários em Nova York que distribuíam mantimentos descartados para moradores de rua. “E então pensamos: ‘OK, podemos fazer isso também'”, disse Sabine Werth à DW. “Queríamos dar um lugar à mesa aos que não podem pagar.”
Juntamente com outros membros de uma iniciativa de mulheres de Berlim, ela fundou o primeiro Tafel, como os bancos de alimentos são chamados na Alemanha, sendo o nome uma das palavras alemãs para “mesa”.
Isso foi há 30 anos, em 22 de fevereiro de 1993. O banco de alimentos original continua sendo o maior do país e desde então se tornou uma associação sem fins lucrativos. E a ideia se espalhou rapidamente: hoje existem 936 bancos de alimentos Tafel em toda a Alemanha.
Dependendo da quantidade de público que atingem, seus organizadores vão a supermercados, varejistas locais de alimentos e padarias várias vezes por semana, ou mesmo diariamente, para reunir restos de alimentos ainda comestíveis, evitando desperdício e apoiando pessoas atingidas pela pobreza.
Às vezes, grandes redes de supermercados também entregam seus produtos excedentes aos bancos de alimentos à noite, uma ou duas vezes por semana.
Não somente sem-tetos
Para poder usufruir dos bancos de alimentos, as pessoas precisam comprovar sua necessidade, por exemplo, com um documento da previdência social, antes de poderem retirar coisas como frutas, frios e pão.
“Seguimos o princípio clássico de Robin Hood. Tiramos de onde há muito e damos para onde é necessário. Mas fazemos isso legalmente”, disse Werth, com um sorriso.
O banco de alimentos atende a uma variedade muito maior de pessoas do que apenas sem-tetos. Ele é um alívio bem-vindo a muitos pais e mães solteiros, aposentados com poucos recursos e refugiados. Para essas pessoas, é um alívio economizar em comida e poder, assim, pagar outras coisas necessárias, como material escolar ou roupas.
Pobreza na Alemanha
A organização que coordena os bancos de alimentos na Alemanha estima que 2 milhões de pessoas os visitaram no ano passado – um aumento acentuado, cerca de 50%, em comparação com o ano anterior. Apesar de a Alemanha ser um dos países mais ricos do mundo, 13,8 milhões de pessoas foram afetadas ou ameaçadas pela pobreza em 2022.
Em regra, a pobreza na Alemanha se refere à pobreza relativa e não absoluta. As pessoas não enfrentam fome imediata ou passam frio. Mas, mesmo assim, a pobreza na Alemanha ainda significa falta de participação na sociedade, crianças que ficam dias sem almoço, sem viagens nas férias e têm um nível mais baixo de educação.
Os bancos de alimentos começaram como forma de economizar em alimentos e aliviar dificuldades, mas agora se tornaram um medidor de pobreza − ou, como disse à DW o presidente da organização nacional, Jochen Brühl, “um sismógrafo para situações e desenvolvimentos sociais.” Segundo ele, quando o primeiro Tafel foi inaugurado, em 1993, a pobreza ainda não era um tema amplamente discutido na sociedade alemã. Ele afirma que o entendimento geral na época era o de que a pobreza não existia no país: quem queria trabalhar, trabalhava.
“Felizmente, esse sentimento mudou drasticamente nos últimos 30 anos”, disse Sabine Werth. “Não há partido político, nenhum grupo parlamentar, ninguém na cena política que diga que não há pobreza na Alemanha.”
Brühl diz que isso se deve em parte à existência de bancos de alimentos em quase todas as cidades, tornando a pobreza muito tangível.
“Comida é política”
Uma visita a um dos muitos bancos de alimentos na Alemanha dá uma rápida ideia disso. Em Eitorf, um vilarejo perto de Bonn, no oeste da Alemanha, Paul Hüsson faz um giro pelo banco de alimentos que administra com 56 voluntários. Com um toque de evidente orgulho, conduz ao pátio onde os produtos são distribuídos às segundas e terças-feiras.
Ele abre um pequeno depósito onde se empilham sacos de massas, pacotes de farinha e latas de vegetais. Não demora muito e Hüsson se torna político. Ele sustenta que a ajuda social é muito baixa e que o bilhete único mensal de transporte público de 9 euros (cerca de R$ 50), um projeto piloto em toda a Alemanha de junho a agosto de 2022, foi uma bênção para quem tem pouco dinheiro.
Os bancos de alimentos frequentemente intervêm em debates sociopolíticos – e isso é intencional. “Se estamos genuinamente envolvidos com essas questões, isso automaticamente nos torna políticos”, disse Brühl. “Não no sentido de ser filiado a algum partido em particular. Mas temos influência no nível sociopolítico porque erguemos um espelho para a sociedade e mostramos o que obviamente não está funcionando em alguns lugares.” Ou, como Sabine Werth colocou sucintamente na porta do Tafel em Berlim: “‘Comida é política”.
Hüsson explicou que ele próprio tem muito a aprender sobre a complexidade da pobreza. Atualmente, metade dos clientes de seu banco de alimentos são crianças. “Isso corta fundo”, disse ele, apontando para o coração.
Longe dos braços do Estado
Desde que foram criados, os bancos de alimentos são alvos de críticas, com alguns dizendo que eles facilitam demais as coisas para o Estado e as pessoas necessitadas. O que fica claro nas conversas com voluntários e líderes do banco de alimentos, no entanto, é que os usuários expressamente não querem fazer parte do sistema de bem-estar social do governo.
Eles enfatizam que é errado os serviços de assistência social enviarem pessoas para bancos de alimentos quando elas dizem que seus rendimentos não são suficientes. “Estamos caindo cada vez mais em uma situação em que alguns estão nos cobrando nosso sistema de bem-estar. Mas não queremos isso e nos opomos veementemente a isso”, disse Brühl. Em Berlim, Sabine Werth diz que o banco de alimentos não aceita nenhum apoio financeiro do Estado por esse motivo, a fim de manter sua independência.
Qual o futuro dos bancos de alimentos?
Os últimos três anos foram extremamente desafiadores para os bancos de alimentos na Alemanha. A inflação, a guerra na Ucrânia e a pandemia de covid-19 causaram uma tensão considerável, com um aumento de 50% nos beneficiários do serviço. “Muitas das instituições estão no limite”, observa Brühl. “Mesmo assim, elas continuam o trabalho.”
Desde sua criação, há 30 anos, os bancos de alimentos refletem sobre seu desenvolvimento – daquele primeiro local em Berlim para agora centenas espalhadas por toda a Alemanha, assim como seu papel no ativismo sociopolítico.
Sabine Werth prefere não fazer previsões para as próximas três décadas. “Nunca pensei nessas dimensões”, disse ela. “Trinta anos atrás, eu nunca pensei que estaríamos onde estamos agora. O trabalho do banco de alimentos está cheio de novas surpresas a cada dia.”
Jochen Brühl acredita que o futuro dos bancos de alimentos está garantido. “Acho que eles vão se reinventando conforme a necessidade”, diz, porque eles sempre reagem ao que está acontecendo na sociedade, e não o contrário.
Paul Hüsson foca em questões práticas: Ele está tentando encontrar novas dependências, já que as atuais estão lentamente se tornando muito pequenas. Isso mostra que os bancos de alimentos poderão ainda ser necessários daqui a 30 anos, mesmo na rica Alemanha.