Internacional
Como o tango chegou à Finlândia – para ficar
Quem pensa que o apaixonado gênero nascido no submundo portenho é exclusividade do sangue latino, engana-se. Há décadas ele é quase música nacional para os “frios” finlandeses – como prova o festival Tangomarkkinat
Nas noites de verão da Finlândia, em que o sol nunca se põe por completo, uma vez por ano cerca de 100 mil peregrinam até Seinäjoki para o festival Tangomarkkinat. Durante cinco dias de julho, as ruas da cidade se transformam num gigantesco salão de dança: casais idosos e jovens, profissionais e amadores, volteam ao som queixoso do bandoneon. É a hora do tango, a hora da paixão.
A febre portenha já grassa no país nórdico há mais de 100 anos. A crer no premiado cineasta finlandês Ari Kaurismäki, sequer foram os argentinos os criadores do tango, mas sim camponeses de seu país, para espantar os lobos. E apenas décadas mais tarde marinheiros teriam então levado a música da Finlândia para a América do sul.
Por mais popular que a teoria seja no país nórdico, a verdade é que o tango nasceu em Buenos Aires. No fim do século 19, o bairro portuário de La Boca era um cadinho de migrantes de todo o mundo, que iam tentar a sorte na metrópole na margem sul do Rio de la Plata. O tango teria sido um presente deles a sua nova pátria, combinando o folclore e os instrumentos de sua terra natal num som novo.
“Um pensamento triste que se pode dançar”
Um dos grandes nomes dessa arte, o compositor Enrique Santos Discépolo (1901-1951), disse certa vez: “O tango é um pensamento triste que se pode dançar.” Mas ele é muito mais do que uma dança, ao cantar a eterna derrota do ser humano pela vida, a traição do coração, a solidão e o desejo de morrer. Corazón, amor y sangre: era a tríade da alma de imigrante procurando ficar pé num mundo novo e estranho.
Nos primórdios, a elite argentina se envergonhava do tão obsceno tango, vindo das sarjetas da cidade. Pois lá onde os recém-chegados viam frustrados seus sonhos de riqueza, muitos buscavam o submundo do crime, se entregavam ao álcool, ao jogo de azar e à prostituição.
Em 1904 a polícia portenha alertava contra uma dança que “com seus gestos indecentes incita uma concorrência de elementos que no fim sempre acabam lançando mão da faca”. Demorou bastante até o tango se tornar socialmente aceitável na Europa: na Alemanha, o imperador Guilherme 2º proibiu seus oficiais de dançá-lo fardados; o papa o incluiu no Índex da Igreja Católica.
E, ainda em 1913, o embaixador da Argentina em Paris anunciava: “O tango de Buenos Aires é uma dança reservada apenas às casas de má fama e bares do pior tipo. Ele não é nunca dançado nos salões da boa sociedade. Para os ouvidos argentinos, o tango está associado a ideias deploráveis.”
Tango finlandês: depressão em tom menor
A advertência chegou tarde demais: depois de conquistar a sociedade parisiense, a tangomania ganhou mundo. Na Finlândia, consta que o primeiro contato foi através de um casal de dançarinos dinamarqueses, no Hotel Börs de Helsinque.
Nas décadas 20 e 30, o novo gênero musical se alastrou pelo círculo polar ártico – embora do repertório das orquestras constassem principalmente tangos da Alemanha, com seu ritmo “martelado”. E a dança era ainda quase exclusividade da sociedade urbana: no campo, os pares permaneciam fiéis a suas valsas, polcas e à nativa jenkka.
O verdadeiro nascimento do tango finlandês teve que esperar até a Segunda Guerra Mundial: durante as pausas entre os combates, o músico Toivo Kärki compôs no front peças como Siks’ oon mä suruinen (Por que estou tão triste) – embora tomando como base musical os romances russos e as marchas alemãs.
Depois da guerra, os sons melancólicos importados de além-mar permaneceram populares, pois também refletiam a tendência à depressão, tão difundida entre os finlandeses, pela qual são em grande parte responsáveis os longos meses de escuridão.
“A gente só é feliz quando está infeliz”, afirmava em 2014 Mauri Antero Numminen à revista alemã Der Spiegel, numa entrevista intitulada Sem tango não há finlandeses. Por isso, acrescentava o compositor, “o tango finlandês só é autêntico em tom menor”. Embora, ao contrário da contraparte argentina, o palco de suas letras não sejam o submundo e seus bares decadentes, mas sim o campo e a natureza.
Fama mundial – na Finlândia
Em 1955, com sua história de amor inalcançável, o tango Satumaa (Terra de fadas), de Unto Mononen, conquistou os corações dos finlandeses, ao ponto de se tornar o hino nacional inoficial. E Olavi Virta (1915-1972) está para a Finlândia como Carlos Gardel para a Argentina: rei não coroado do tango, encarnação da lenda viva do garoto que galga fama mundial.
Nos anos 50 encontravam-se por toda a Finlândia salões de dança, em cada lugarejo o clube esportivo local mantinha um palco próprio no qual se apresentavam estrelas da música popular – inclusive do tango. E mesmo na década seguinte, quando a música anglófona tomou conta das paradas, o ritmo argentino não cedeu campo.
Assim, em 1963 dividiam o primeiro lugar entre as mais vendidas All my loving, dos Beatles, e o tango Tähdet meren yllä (As estrelas sobre o mar), na voz de Reijo Taipale. Daí em diante, o tango nunca deixou a Finlândia: a moda pode ter amainado um pouco, havia menos composições novas, mas nos salões de dança ele continuou bem vivo.
Resultado é que hoje a Finlândia é considerada a segunda maior nação tanguera. Mas, alerta: tango não é igual a tango. Além dos ousados caminhos musicais traçados pelo nuevo tango na Argentina a partir de fins dos anos 60 – tendo em Astor Piazzolla (1921-1992) seu expoente máximo –, segundo especialistas na dança, a variante finlandesa é menos acrobática, a postura do par mais frontal e relaxada, e portanto mais fácil de aprender.
Transcorrendo de 5 a 9 de julho em 2023, o Tangomarkkinat de Seinäjoki se realizou pela primeira vez em 1985, e há muito é um dos maiores festivais do país. Além de concursos de composição e de canto, multidões de candidatos dão o melhor de si pelo título de rei ou a rainha da dança. Transmitido pela TV em todo o país, seus vencedores se tornam superstars da noite para o dia – pelo menos na Finlândia.