Internacional
Como a Alemanha poderá processar Assad por crimes de guerra
Promotores públicos alemães investigam acusações de que o presidente sírio seria responsável pelo uso de armas químicas contra sua própria população. DW teve acesso a documentos relacionados ao processo pioneiro
Os mísseis soaram diferente naquela noite: dessa vez eles não tinham o impacto explosivo que tantas vezes acompanhava as ofensivas às áreas sob controle oposicionista na Síria.
Em 21 de agosto de 2013, mísseis com ogivas carregadas com o gás sarin, uma arma química, foram lançados no leste de Ghouta, nas cercanias de Damasco. O tempo fresco permitiu que o gás dos nervos penetrasse nos níveis inferiores dos edifícios, à medida que ia se alastrando pelo reduto rebelde.
“Era como um Juízo Final, como se as pessoas fossem formigas dizimadas com inseticida”, conta Eman F., enfermeira formada e mãe de três filhos. “Muitos morreram na estrada, os carros cheios de gente iam parando”, aparentemente na tentativa de fugir.
O agente químico de combate sarin havia realizado seu trabalho letal. Sua presença inodora só se fez sentir depois que já começara a paralisar o sistema respiratório. Na maioria dos casos, a morte chegou por asfixia. Os sobreviventes culparam o regime sírio de Bashar al-Assad pelo ataque.
No início do outubro seguinte, um consórcio formado por três ONGs apresentou à Procuradoria Federal da Alemanha queixa-crime contra desconhecidos pelos aparentes ataques com gás sarin em Ghouta, em 2013, e Khan Shaykhoun, 2017. Sua motivação era clara – e estratégica.
Identificando a cadeia de comando
Em 2002, a Alemanha decretou o princípio da jurisdição universal para crimes internacionais, como os de guerra e genocídio. Desse modo, o país estendia sua jurisdição sobre os “os crimes mais graves, afetando a comunidade internacional como um todo”, mesmo que não fossem cometidos em seu território ou contra seus cidadãos.
Por isso Open Society Justice Initiative, o Arquivo Sírio e o Centro Sírio de Mídia e Liberdade de Expressão levaram sua queixa ao órgão jurídico sediado na cidade alemã de Karlsruhe, onde uma unidade para crimes de guerra lançara em 2011 uma investigação estrutural das atrocidades cometidas na Síria.
A unidade confirmou à DW ter recebido da Procuradoria Federal o requerimento criminal e está investigando as provas apresentadas. Uma característica-chave da queixa é a diversidade do quadro de testemunhas, incluindo militares de alta patente e cientistas do Centro de Estudos Científicos e Pesquisas da Síria (SSRC, na sigla em inglês), responsável por desenvolver o programa de armas químicas do país.
As evidências sugerem que o irmão mais novo do presidente, Maher Assad, considerado por muitos a segunda figura mais importante do país, teria sido o comandante militar que ordenou diretamente o uso de sarin nos bombardeios de agosto de 2013.
No entanto, depoimentos anexados à queixa indicam que operações com armas estratégicas, como o gás dos nervos, só poderiam ser executadas com a aprovação de Bashar al Assad. Steve Kostas, perito legal da equipe de litígio da Open Society Justice Initiative, confirma: “Temos evidências de que [o presidente sírio] esteve envolvido na tomada de decisão [para os ataques com sarin].”
Documentos disponibilizados exclusivamente à DW e à revista Der Spiegel mostram que Maher teria então transmitido a ordem oficial em nível operacional. A partir daí, um grupo de elite do SSRC apelidado Branch 450, “significativamente envolvido no planejamento e execução de ataques com sarin”, teria carregado as ogivas com agentes químicos, e a 155ª Brigada de Mísseis teria lançado os projéteis terra-terra sob supervisão direta do irmão do presidente.
Culpabilidade nos mais altos escalões
Até o momento, os testemunhos descrevendo a cadeia de comando são considerados a prova mais forte de que se dispõe ligando Assad ao emprego de armamento químico na Síria. Mas isso bastará para os promotores alemães abrirem um processo? Segundo especialistas em direito internacional, não são necessárias provas irrefutáveis para um indiciamento desse calibre.
Como crimes de guerra costumam ser cometidos dentro de um sistema de Forças Armadas, o direito internacional reconhece serem as hierarquias de comando a possibilitar tais violações, explica Robert Heinsch, diretor do Fórum de Direito Humanitário Internacional Kalshoven-Gieskes, em Leiden.
“Quem deu ordens a soldados normais, ou a quem quer que esteja encarregado de lançar os ataques, pode ser indiciado pelo ato de ordenar, ou mesmo se não o fez pessoalmente, mas estava ou deveria estar ciente desses ataques. Por causa de sua função como comandante militar, ele pode ser culpabilizado.”