Internacional
Revolução dos Cravos deu fim a regime com ligações no Brasil
Salazarismo influenciou movimentos políticos no Brasil e o usou o país como um exemplo do “bom colonialismo” português. Mesmo após fim da ditadura, Portugal permaneceu em silêncio sobre passado colonial
Em 25 de abril de1974, a Revolução dos Cravos derrubava em Portugal o regime conhecido como Estado Novo. Iniciado em 1933, o regime, também chamado de salazarismo, possuía grande ligações com o Brasil, influenciando até movimentos políticos na antiga colônia. Hoje, 50 anos após o fim da ditadura portuguesa, o tema é alvo de fortes discussões em um momento no qual amplos setores da sociedade pressionam para que Portugal revisite seu passado.
O Estado Novo português é com frequência comparada com o período homônimo brasileiro, sob o comando de Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945, incluindo a arquitetura de ambos na época. Segundo o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Francisco Carlos Palomanes Martinho, a característica fundamental em comum dos dois governos é o corporativismo.
“São regimes com pendor autoritário e antiliberal, que contavam com um modelo de interesses a partir do Estado. Havia uma estrutura verticalizada com grande controle dos sindicatos”, afirma. Por outro lado, o professor lembra que, no caso do português, o papel da Igreja Católica, um dos pilares do salazarismo, foi bem mais importante que no regime de Vargas.
Neste contexto, ganhou força o movimento integralista brasileiro, comandado por Plínio Salgado, que foi retomado por setores políticos brasileiros nos últimos anos. O professor de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná Gilberto Grassi Calil aponta que o salazarismo e o integralismo brasileiro faziam parte do mesmo campo ideológico do fascismo internacional ascendente nas décadas de 1920 e 1930.
Com o rompimento entre os integralistas e Vargas e a fracassada “intentona integralista” de maio de 1938, Salgado se exilou em Portugal e reforçou seus laços com o salazarismo, proferindo conferências e colaborando com a imprensa vinculada ao regime e à Igreja Católica, aponta Calil.
“A identificação de Salgado com o salazarismo se deu pela camada ideológica. Vale destacar a profunda vinculação entre a Igreja Católica e a ditadura salazarista e o aprofundamento dos vínculos de Salgado com diversos membros da posição católica”, pontua o professor.
Outra influência retomada na política brasileira recentemente é o lema “Deus, Pátria e Família”, usado pelo salazarismo a partir dos anos 1930, e propagado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo Calil, “é um lema tipicamente fascista”, que conta com “forte apelo emocional”. O professor destaca que “cada um de seus termos interpela seus adeptos a um combate em defesa de valores assumidos como inegociáveis”.
Exílio no Brasil após o fim do regime
António Salazar deixou o comando de Portugal em 1968, após sofrer um acidente doméstico que o incapacitou, vindo a morrer em 1970. O ditador foi substituído por Marcelo Caetano, que liderou o regime até 1974, quando a revolução comandada por militares e com amplo apoio popular deu fim ao salazarismo.
Naquela época, uma série de figuras relevantes do antigo regime, incluindo o próprio Caetano, rumou para um exílio no Brasil. Na visão de Martinho, que é autor de uma biografia sobre o líder português, uma das razões foi a língua, e o fato de se tratar de um país em que muitos poderiam seguir uma vida acadêmica ativa. “Foi um cenário de melhores empregos, e no qual foi possível seguir trabalhando”, aponta.
O professor conta que a vida de Caetano no Brasil ficou longe do ostracismo. Ele deu aulas de Direito na Universidade Gama Filho até a sua morte, em 1980, e era bem-visto por partes da comunidade portuguesa no país.
Apoio às independências
A questão colonial foi uma das mais relevantes nos anos finais do regime, e colocou o Brasil em campo oposto a Portugal. O salazarismo apostou na manutenção de suas posses em outros continentes, que ganharam o status de “territórios ultramarinos”. O resultado foi um maior isolamento de Portugal internacionalmente, e as chamadas guerras coloniais na África.
Até então, o Brasil costumava apoiar a postura portuguesa. Por sua vez, segundo Martinho, nos anos 1970, o governo brasileiro percebeu que havia grande rechaço aos interesses do país no continente africano devido à sua posição. Neste cenário, o Brasil reconheceu a independência da Guiné-Bissau em 1974, o que “foi visto como uma ingerência que incomodou Lisboa”.
Depois, o país foi o primeiro a reconhecer Angola como independente, em novembro de 1975, causando ainda mais insatisfação. Martinho aponta que o movimento brasileiro ofereceu ao país grande acesso ao novo Estado independente, especialmente para as empresas de construção civil e à Petrobrás nos anos seguintes.
Silêncio sobre passado colonial
A postura salazarista em relação às colônias sempre se apoiou em uma visão de que Portugal não foi um colonizador tão ruim em comparação com outras países. Em 1940, o regime realizou a Exposição do Mundo Português em Lisboa, na qual o Brasil era o convidado especial. Segundo Martinho, havia a intenção de apresentar o “bom colonialismo”, especialmente naquele que à época já era considerado o “país do futuro”.
Nesta época, as visões do escritor brasileiro Gilberto Freyre foram amplamente exploradas pelo salazarismo. O professor do Departamento de História do King’s College de Londres Francisco Bethencourt aponta que Salazar se apoiou nas visões do sociólogo, e o convidou para visitar as colônias portuguesas em 1950, do que resultaram vários livros.
“O lusotropicalismo, que tinha sido rejeitado nos anos 1930 e 1940, passou a ser integrado na política salazarista por conta da onda descolonizadora em uma série de países”, afirma. “A imagem que o regime de Salazar pretendia projetar era da excepcionalidade portuguesa e da ausência de colônias, que seriam territórios ultramarinos harmoniosos”, pontua Bethencourt.
Neste cenário, diferente de países como Reino Unido e Holanda, onde movimentos recordando os crimes do passado colonial emergiram nos últimos anos, em Portugal, o reconhecimento da brutalidade do período é menor. Para Bethencourt, o problema é a ausência de políticas de memória em Portugal nos últimos 50 anos, após a Revolução dos Cravos. “Houve uma espécie de pacto de silêncio não só sobre o passado colonial”, avalia.
Um dos grandes pontos de discussão são monumentos em exaltação ao período colonial, que recentemente foram derrubados em uma série de países. Em Portugal, um exemplo é o caso dos brasões do jardim da Praça do Império em Lisboa, legado do período salazarista. Na representação, constam as antigas colônias portuguesas. A prefeitura tentou acabar com a referência, o que gerou uma série de protestos, especialmente da extrema-direita, que acabou vencendo a disputa.
“O resultado foi transformar os jardins num empedrado anacrônico com os brasões das antigas colônias, um insulto aos novos países independentes”, aponta Bethencourt.
Por sua vez, nesta semana, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, sugeriu que o país considere pagar reparações por crimes cometidos durante o período colonial, em uma mudança brusca na visão tradicional do governo português.
“Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, disse.
Quando essa reparação virá ainda é uma incógnita. Após as declarações de Rebelo de Sousa, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, pediu “ações concretas” por parte de Portugal. “Nossa equipe já está em contato com o governo português para dialogar sobre como pensar essas ações e a partir daqui quais passos serão tomados”, destacou.