Nacional
Quem acredita no Lula evangélico?
Por Roberto Tomé
Talvez Lula esteja conseguindo convencer uma parte menos atenta do eleitorado evangélico com seu discurso contra a “putaria”, mas, como diria um bom pastor, Deus está vendo.
Não é segredo: na tentativa de conter a perda de popularidade, o governo Lula contratou o marqueteiro Sidônio Palmeira, que trabalhou em sua campanha em 2022. Os dois temas que mais preocupavam o governo, como registrado pela mídia na época, eram o preço dos alimentos e a relação do presidente com o eleitorado evangélico.
Com a alta dos preços dos alimentos, o governo chegou a considerar um leilão de arroz estatal para baixar os preços artificialmente, tentando conter o descontentamento popular. Mas foi na relação com o eleitorado evangélico que Lula fez um esforço mais visível, ajustando seu discurso para se alinhar com os valores desse grupo.
Lula passou semanas inserindo as palavras “Deus” e “milagre” em todos os discursos. Na última semana, o Evangelho apareceu de outra forma no discurso do presidente. Sem ser perguntado, ele declarou, durante um evento em homenagem ao Dia do Cinema Brasileiro, que não faz parte da turma da “putaria”.
“Eu sou da turma em que artista, cinema e novela não são para ensinar putaria. É para ensinar cultura, é para contar história, é para narrar, e não para dizer que queremos ensinar às crianças coisas erradas. Só queremos fazer aquilo que se chama arte. Arte. Quem não quiser entender o que é arte, dane-se. Porque queremos muita arte, muita cultura e muita participação das pessoas”, disse o presidente, recebendo aplausos de uma plateia que vaiaria as mesmas palavras se ditas por outra pessoa.
Esse é o mesmo Lula que, em janeiro de 2018, quando tentava viabilizar sua candidatura presidencial para evitar a prisão, disse o seguinte após assistir a um desempenho em que dois homens se beijavam:
“Vocês viram a performance do beijo aqui, né? Vocês viram. Tem gente que pode ter ficado horrorizada com aquela performance do beijo. Eu achei inusitado. E se preparem, que estou com 72 [anos], energia de 30 e tesão de 20. Não se descuidem.”
Em outro discurso na semana passada, Lula deu outra lição de moral, ao sugerir que uma jovem pare de ter filhos e comece a estudar: “Aquela moça tem 25 anos, ela tem três filhos. Eu falei para ela: ‘Minha filha, a primeira coisa que você tem que fazer é parar de ter filho”.
Esse é um conselho que Lula tem repetido para mães há bastante tempo, em outros discursos públicos. E, do ponto de vista estratégico, falar indiretamente sobre questões morais, sem mencionar Deus diretamente, é muito mais eficiente.
É possível que o trecho sobre a “putaria” no cinema alcance grupos de religiosos menos informados, que ficarão satisfeitos ao ouvir o presidente reclamar diretamente de algo que eles também desaprovam. Talvez essa visão sobre a arte esteja mais próxima do que Lula realmente pensa. Mas, nesse caso, ele teria mentido durante toda sua carreira política para agradar outros grupos.
O Lula “evangélico” se diz pessoalmente “contra o aborto”, mas pondera: “Como o aborto é uma realidade, precisamos tratá-lo como uma questão de saúde pública”.
“Eu acho uma insanidade querer punir uma mulher vítima de estupro com uma pena maior que a de um criminoso que comete o estupro. Tenho certeza que o que já existe na lei garante que agimos de forma civilizada nesses casos, tratando o estuprador com rigor e as vítimas com respeito”, acrescentaram. Mas, dias antes, seu governo não se opôs a impor urgência na votação na Câmara dos Deputados sobre um projeto de lei que restringiria o tempo para aborto legal.
Lula também ajusta o discurso sobre a saidinha de presos em datas comemorativas. Após vetar de forma tímida o projeto de lei que extinguiu as saidinhas — o Congresso derrubou seu veto e impôs à extinção —, o presidente encontrou uma forma “evangélica” de dizer que vetou o PL com convicção (o que não é verdade), em nome da “família”.
“Como é possível, numa sociedade democrática, em que a base é a família… E se o Estado prendeu o cidadão, não é apenas para castigá-lo, é para recuperá-lo… E na hora que o cidadão sai, para ver a sua família, que é uma das fontes de recuperação dele, é proibido?”, questionou em entrevista à rádio Meio, de Teresina.
Os governistas comemoraram nos últimos dias uma pesquisa Datafolha que sugere que a perda progressiva de popularidade do presidente foi estancada. Na análise mais otimista para os petistas, a modulação do discurso de Lula nos temas mais sensíveis estaria funcionando. É cedo para dizer, pois ele pode ter simplesmente atingido o piso da popularidade — e o fato é que hoje o presidente tem a maior rejeição de seus três mandatos.
Pode ser que Lula esteja conseguindo convencer alguma parte do eleitorado evangélico com sua conversão retórica, especialmente os menos atentos, mas, como diria um bom pastor, Deus está vendo tudo.