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Resistência Civil: como conter o autoritarismo dos “Salvadores da Democracia”
Os últimos dias têm sido desafiadores para as instituições democráticas brasileiras. O presidente Lula intensificou seus ataques ao Banco Central, exigindo uma redução na taxa de juros sem considerar a autonomia da instituição. Além disso, Lula iniciou campanhas para candidatos municipais antes do prazo eleitoral e chamou jornalistas de “cretinos” por responsabilizá-lo pela alta do dólar. No Judiciário, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) assumiram funções legislativas ao definir a quantidade de droga que cada pessoa pode portar para consumo próprio. Em seguida, seis ministros da Corte viajaram para um evento em Lisboa organizado pela faculdade de Gilmar Mendes, o IDP, onde se encontraram com empresários cujas empresas têm ações no tribunal.
Nenhuma dessas iniciativas teve sucesso. Elas foram duramente criticadas ou caíram no vazio. Em comum, essas ações foram protagonizadas por indivíduos que se consideram defensores da democracia e criticavam o ex-presidente Jair Bolsonaro por seu desrespeito às instituições. “Lula, na verdade, resgatou a democracia no Brasil”, disse Gilmar Mendes no início do ano passado. Contudo, são esses autoproclamados salvadores da democracia que mais a maltratam atualmente. Felizmente, a democracia brasileira, com todas as suas imperfeições e virtudes, têm demonstrado resiliência. Se for capaz de resistir a Bolsonaro, é capaz de aguentar Lula e o ativismo do STF.
Carlos Pereira, cientista político da Fundação Getúlio Vargas e coautor do livro *Por que a democracia brasileira não morreu?*, observa que “todo populista, seja de esquerda ou de direita, tem uma grande dificuldade de lidar com restrições. Então, eles sempre tentam driblar as regras do jogo”. Em seus primeiros dois mandatos, Lula enfrentou problemas com as agências reguladoras. Agora, ele entra em conflito com o Banco Central. Seu livro, lançado este ano em parceria com o cientista político Marcus André Melo, analisa as características da democracia brasileira que permitem suportar tentativas autoritárias, seja da esquerda ou da direita.
A resiliência da democracia brasileira não se deve à ação de alguns iluminados, mas principalmente ao vigor da sociedade civil organizada, que inclui a imprensa independente, organizações não governamentais e entidades formadas por empresas privadas. Outra explicação é o controle que os três poderes — Executivos Judiciários e Legislativos — exercem entre si, sob constante vigilância da opinião pública.
Desde o ano passado, Lula tem criticado o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, chamando-o de “infiltrado de Bolsonaro” e sabotador. “Definitivamente, acho que ele tem viés político”, disse o presidente esta semana. Lula deseja uma redução da taxa Selic para aquecer a economia e beneficiar o PT nas eleições municipais. Até o momento, o presidente nomeou quatro dos nove diretores do BC. A diretoria de política monetária foi entregue a Gabriel Galípolo, recomendado por Fernando Haddad e considerado “menino de ouro” por Lula. Na última reunião do Copom, parecia que o presidente conseguiria a redução das taxas de juros desejada.
No entanto, o Copom manteve a taxa de juros em 10,50% ao ano, com todos os nove diretores votando juntos. A ata do Copom trouxe explicações técnicas para a decisão, mostrando que questões individuais não interferiram. Os diretores nomeados por Lula não buscaram agradar ao chefe. “Há muitos incentivos para os diretores do Banco Central indicados por Lula não sucumbirem às pressões do presidente”, diz o economista Maílson da Nóbrega, da Tendência Consultoria. Apoiar uma decisão equivocada de queda de juros poderia prejudicar a reputação deles, tornando-os menos convidados para eventos acadêmicos ou para presidências de bancos.
No Supremo Tribunal Federal, a reação ao ativismo judicial de descriminalizar a posse de maconha veio de todos os lados, até mesmo de dentro do STF. O Senado aprovou uma lei proibindo a posse de qualquer quantidade de entorpecente. O presidente Lula declarou que o “STF não pode se meter em tudo”. Três ministros da Corte criticaram o ativismo judicial. André Mendonça afirmou que descriminalizar a posse de drogas seria “passar por cima do legislador”. Luiz Fux disse: “Nós não somos juízes eleitos, o Brasil não tem governo de juízes”. Edson Fachin pediu “parcimônia, comedimento e compostura” do Judiciário, alertando que “abdicar dos limites é um convite para pular no abismo institucional”.
O evento apelidado de Gilmarpalooza, em Lisboa, atraiu críticas. Doze empresas participantes tinham processos no Supremo. O Fórum de Lisboa precisou até mudar de nome, removendo a palavra “Jurídica” do título. Três ministros do STF recusaram o convite: Kassio Nunes Marques, Cármen Lúcia e Luiz Fux. Internamente, ministros como André Mendonça e Edson Fachin criticaram o encontro. Nas pesquisas de opinião, cerca de metade dos brasileiros diz não confiar no STF e em seus ministros.
A sociedade civil organizada brasileira mostrou sua força recentemente, barrando iniciativas como o leilão do arroz estatal e o PL do Aborto no Congresso. Quando o governo anunciou a importação de grãos após as enchentes no Rio Grande do Sul, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) se posicionou contra a medida, que prejudicaria os produtores nacionais. A ideia foi engavetada. No Congresso, a Frente Parlamentar Evangélica conseguiu a oposição de 66% da população ao PL do Aborto, que propunha uma punição para a mulher estuprada superior à do estuprador.
A capacidade organizativa do povo foi documentada por Alexis de Tocqueville em *Democracia na América* (1835), destacando a habilidade dos americanos de se unir pelo bem comum. Essa tradição de organização foi herdada dos ingleses, que lideraram a campanha pela abolição da escravidão e tráfico negreiro no século XVIII. Nos EUA, movimentos de opinião pública influenciaram legislações como a Lei dos Direitos Civis, assinada pelo presidente Lyndon Johnson.
No Brasil, a sociedade civil tem prosperado apesar de um governo forte e ineficiente. Após as enchentes no Rio Grande do Sul, a sociedade preferiu não esperar pela ajuda estatal, similar ao que ocorreu nos EUA após o furacão Katrina. “É uma boa notícia que o brasileiro esteja se enxergando cada vez mais como o ator principal da preservação da democracia do país”, diz Lucas de Souza Martins, professor de História dos Estados Unidos na Temple University. “Um povo maduro não pode terceirizar a preservação da democracia para o Supremo, para a Presidência ou para o Congresso. A manutenção da democracia passa, acima de tudo, pelo eleitor. É esse o caminho.”