Internacional
O crime do nazismo contra as crianças da “Vergonha Negra”
A partir de 1937 foram esterilizadas compulsoriamenrte centenas de filhos de alemãs com soldados das colônias francesas. Uma história que começa com o Tratado de Versalhes e desemboca no desvario racista dos nazistas
Josef Kaiser tinha 16 anos de idade em 1937, quando dois homens da Gestapo o agarraram e levaram ao Hospital Municipal de Ludwigshafen. Lá ele foi esterilizado contra a vontade. Sua irmã teve o mesmo destino, assim como centenas de jovens cujo único defeito era serem filhos de uma alemã com um soldado das colônias francesas.
Essa brutal ingerência era o clímax de uma dinâmica iniciada 17 anos antes, com a ocupação aliada na Renânia, imposta à Alemanha pelo Tratado de Versalhes, após a derrota na Primeira Guerra Mundial. Dos 100 mil soldados enviados em janeiro de 1920 pela França para a região, cerca de um quinto provinha dos territórios coloniais. Como o pai de Josef, natural de Madagascar.
No clima político inflamado da República de Weimar, sua presença logo gerou tensões. Após a perda de suas próprias colônias, os alemães percebiam essa imposição como uma monstruosa humilhação.
“A Vergonha Negra”
Com entusiástica participação de organizações estatais e civis, iniciou-se uma campanha de propaganda racista, sob o título “A Vergonha Negra”. Em panfletos e artigos, os soldados coloniais eram apresentados como “feras selvagens”, que se lançavam sobre a população alemã, estuprando e assassinando.
Não só círculos nacionalistas ou conservadores avançavam essa campanha: racismo e eugenia estavam profundamente arraigados na sociedade alemã. Políticos social-democratas, como o presidente do Reich Friedrich Ebert ou o ministro do Exterior Adolf Köster, tachavam a mobilização de tropas francesas “da mais baixa camada cultural” como um “crime espiritual” contra o povo alemão.
A estratégia política contava que esse racismo também fosse comunicável no estrangeiro, para ao mesmo tempo desacreditar as estipulações do Tratado de Versalhes: com base em preconceitos comuns, pretendia-se restabelecer a solidariedade internacional com a Alemanha.
Respaldados pelo material de propaganda do Ministério do Exterior, publicaram-se por todo o mundo artigos difamadores sobre os soldados coloniais. Como o do deputado trabalhista britânico Edmund Dene Morel, acusando a França de soltar contra a população alemã “negros selvagens” e “bárbaros primitivos”, cuja “incontrolável bestialidade” já resultara em numerosos estupros. Mas, embora a propaganda tenha persistido por bastante tempo, o pretendido “sucesso” de política externa não se concretizou.
Da difamação às esterilizações forçadas
Apesar dos intensos esforços de difamação, houve numerosas relações amorosas entre soldados coloniais e alemãs. Para os nacionalistas, isso era uma afronta, já que um de seus mantras principais era a “violação da mulher alemã”.
Na campanha de agitação, o corpo feminino simbolizava o “corpo do povo”, a meta era manter ambos “puros”. A propaganda oficial não tardou a reagir: a conduta das mulheres foi condenada como “vergonha branca”. A partir daí, os frutos dessas relações passaram a ser chamados simplesmente de “bastardos da Renânia”.
Estes cresceram com a vivência da exclusão: sua mera existência e a cor escura de sua pele permaneceram para os nacionalistas e revanchistas uma lembrança constante da derrota bélica, e de sua impotência diante das determinações do Tratado de Versalhes.
Já em 1923 as autoridades da República de Weimar começaram com o cadastramento sistemático das crianças. Em 1927, um funcionário governamental requeria a seus superiores no Ministério da Saúde que estudassem a possibilidade de esterilização “através de uma intervenção totalmente indolor”. A solicitação foi rejeitada: a legislação impossibilitava medidas compulsórias, até pelo fato de, enquanto filhos de alemãs, as crianças também serem integrantes do Reich.
Tratava-se apenas de um adiamento, contudo: com a tomada de poder pelos nacional-socialistas, o cadastramento dos menores foi ampliado. Alguns foram medidos e fotografados para a pérfida ideologia racial nazista. Em 1937, uma ordem secreta de Adolf Hitler fundou a “Comissão 3” da Gestapo, que acabou por organizar a esterilização ilegal dos jovens. Estão documentados 436 casos, mas o número real deve ser bem mais alto.
Crime sem castigo
Em 1947, dois anos após o fim do domínio nazista, o cruel episódio foi objeto de um processo. Os réus eram três médicos responsáveis, todos membros da Associação Médica Nacional-Socialista (NSDÄB), acusados de lesões corporais intencionais com consequente perda da fertilidade.
Durante o julgamento, nenhum deles mostrou consciência de ter agido errado. Como defesa, alegaram simplesmente ter agido “por ordem do Führer”. Não é de espantar que a persecução criminal tenha sido primeiro suspensa, e mais tarde definitivamente encerrada.
Os três acusados encontaram sem problema seu caminho na sociedade alemã do pós-guerra, um deles chegou a ser eleito, poucos anos mais tarde, presidente da Câmara dos Médicos do estado do Sarre.
Para suas vítimas, ficou até o fim da vida a sensação de serem uma indesejada mancha de vergonha. “Eu não tive juventude e, por causa dessa operação, também nenhum futuro mais”, desabafou certa vez Josef Kaiser.