Internacional
QAnon ganha cada vez mais força na Alemanha
O ataque ao Capitólio nos EUA ilustrou o perigo que teorias da conspiração podem representar. Na Alemanha, o movimento tem cada vez mais adeptos – que se mantêm fiéis ao agora ex-presidente americano Donald Trump
A palavra “danke” (obrigado em alemão) aparece escrita com sete As, como que para enfatizar a gratidão. A autora do comentário, uma alemã, está comovida, animada e inspirada pela multidão que se forma em frente ao Capitólio. Dentro de alguns instantes, eles invadiriam a sede do Congresso dos Estados Unidos.
“Eles estão lutando na frente do Capitólio por todos nós! Que pessoas corajosas! Obrigaaaaaaada!” A mensagem é finalizada com três corações vermelhos.
Eram 19h31 na Alemanha, do dia 6 de janeiro de 2021. O post foi publicado no QPatrioten24, um grupo alemão no Telegram que reúne adeptos das teorias da conspiração propagadas pelo movimento QAnon e que a DW acompanha há vários meses na popular plataforma de mensagens. Nele, defensores ardentes do agora ex-presidente americano Donald Trump inundam a tela com mensagens de apoio obstinado.
Eles acreditam que seu líder ideológico venceu a eleição presidencial de 2020 e insistem que essa vitória foi roubada dele. Da perspectiva desses apoiadores, Trump deveria tomar o que é seu por direito em 6 de janeiro, quando o Congresso se reuniria para oficializar os resultados da eleição.
A marcha pró-Trump Stop the Steal (Parem o Roubo) é o momento pelo qual eles estavam esperando.
O que é o QAnon?
O QAnon está centrado na crença infundada de que Trump está lutando contra o chamado Estado profundo, a elite do tráfico de crianças, corporações sombrias e a mídia de fake news. De acordo com a teoria da conspiração, esses são os males contra os quais o agora ex-presidente dos Estados Unidos vem travando guerra – uma guerra que um dia vencerá.
O movimento se baseia em mensagens criptografadas postadas por um usuário descrito como um político ou militar que afirma ter acesso sem precedentes a Trump. Tal indivíduo é conhecido pelo nome de Q, letra que se refere a uma credencial de segurança oferecida pelo Departamento de Energia dos Estados Unidos para obtenção de acesso a informações confidenciais.
No entanto, nenhuma evidência sobre a alegada identidade ou reivindicações de Q jamais foi fornecida.
Extremistas de direita, apoiadores do QAnon e manifestantes contrários ao lockdown tentaram invadir o Reichstag em agosto
Apoiadores do QAnon na Alemanha
“Verdadeiros patriotas, que não permitirão que seu país seja tomado”, disse um membro do QPatrioten24 ao descrever a multidão em frente ao Capitólio em 6 de janeiro.
À medida que avançava o cerco ao prédio do Congresso, membros do grupo do Telegram trocavam imagens e vídeos que circulavam na rede. Alguns deles questionaram se os invasores eram realmente apoiadores de Trump, enquanto outros lamentaram a morte de um dos manifestantes, descrevendo-a como “desproporcional e evitável”.
Na manhã seguinte, a enxurrada de reações deu lugar ao silêncio no grupo. Por volta do meio-dia, uma mensagem de áudio de um dos administradores do QPatrioten24 quebrou o gelo. E ela é longa – 17 minutos de reflexões sobre a noite anterior.
O homem, cuja identidade é conhecida pela DW, fala em alemão com uma voz calma e firme. No grupo, ele se autodenomina Connectis, mas fora de sua nova identidade virtual ele é tido como o diretor-geral de uma imobiliária perto da capital alemã, Berlim.
Com uma voz profunda, ele prossegue, detalhando o próximo “confronto”, a “apoteose” que está prestes a acontecer, e afirmando que a recente eleição dos Estados Unidos foi o “maior roubo eleitoral da história da humanidade”.
Para Connectis, o novo presidente dos EUA, Joe Biden, é um criminoso que nunca poderia ser presidente. Não só Trump “garantirá isso”, mas também “outros patriotas, inclusive nas Forças Armadas”.
Repetidamente, ele fala sobre a “traição” cometida contra Trump, sobre as supostas evidências contra os oponentes de Trump, que agora estão “totalmente concluídas”. Seu monólogo é tão vago quanto desconcertante.
A sigla WWG1WGA adorna o espaço logo abaixo do clipe de áudio de seu discurso. “Where we go one, we go all” (Aonde vamos um, vamos todos) – o mantra do movimento QAnon.
QPatrioten24: um grupo pequeno, mas representativo
Embora esteja à margem da vibrante comunidade alemã QAnon no Telegram, o grupo QPatrioten24 está profundamente enraizado na comunidade conspiratória mais ampla do país.
No momento da publicação desta reportagem, o grupo tinha mais de 2.700 membros, representando assim um dos maiores grupos marginais. Ele continua a atrair novos seguidores, tendo conquistado mais cem membros nos três dias que antecederam a publicação.
Os membros do grupo participam ativamente dos protestos antigoverno na Alemanha, e alguns afirmam que estiveram presentes no dia da tentativa de invasão do prédio do Parlamento alemão em agosto do ano passado. Ao deliberar sobre os protestos, eles pedem que todos “apareçam sem máscaras” e “sem distanciamento social”.
Embora seja difícil avaliar com precisão qual é a composição do grupo, parece haver nele uma proporção quase igual de homens e mulheres. Os membros vêm de todo o espectro econômico – proprietários de pequenas empresas, atores, engenheiros, consultores espirituais e agentes de crédito.
O grupo tem compartilhado conteúdo de mais de 300 grupos adjacentes ao QAnon no Telegram na Alemanha e está conectado a uma comunidade de quase 5 mil outros grupos conspiratórios, extremistas e céticos da covid-19.
Mensagens dentro do grupo têm sido compartilhadas por alguns dos personagens mais influentes do universo das teorias da conspiração e da extrema direita da Alemanha, como a conhecida ex-apresentadora de TV Eva Herman, seguida por mais de 170 mil usuários.
Pouco mais da metade dos membros do QPatrioten24 participa ativamente do grupo no Telegram, postando mensagens que vão desde a negação da pandemia de coronavírus até propaganda antivacina. Às vezes, os membros também expressam extremo antissemitismo, chegando inclusive a fazer pouco caso do Holocausto.
Em certo momento, Connectis compartilhou um artigo afirmando que os sobreviventes do Holocausto receberiam ajuda adicional durante a pandemia: “Mais de 70 anos roubando alemães!”, dizia a legenda. “Isso tem que parar!”
A DW falou por telefone com o homem que se supõe estar por trás do pseudônimo Connectis, e lhe enviou um e-mail para saber mais sobre sua função no grupo do Telegram. No telefonema, ele não confirmou nem negou ser o usuário Connectis – e disse que responderia apenas a perguntas por escrito. Mas ele não respondeu ao subsequente pedido de entrevista da DW enviado por e-mail.
Homens e mulheres estão igualmente representados no grupo QPatrioten24, do Telegram
QAnon cresce na Alemanha
Antes de 2020, o movimento QAnon era amplamente considerado um fenômeno de nicho na Alemanha. Dentro de um ano, porém, o país se tornou o lar da maior comunidade do QAnon fora do mundo de língua inglesa.
A resposta do governo alemão à pandemia, como medidas de confinamento e distanciamento social, fez com que os influenciadores do QAnon e simpatizantes da extrema direita alimentassem o medo e propagassem as teorias de conspiração do movimento em plataformas de mídia social.
Baseado em Dubai, o serviço de mensagens Telegram se tornou particularmente popular entre os apoiadores do QAnon, em grande parte como resultado de sua política leniente em relação a conteúdo extremista.
Em dezembro, a Fundação Amadeu Antonio, com sede em Berlim, descobriu que os grupos e canais alemães do QAnon hospedados no Telegram haviam tido um crescimento significativo durante o primeiro lockdown da pandemia, em março de 2020.
Naquela época, o Qlobal – hoje o maior canal do QAnon em alemão – tinha cerca de 21 mil assinantes. Três meses depois, eram mais de 110 mil usuários. Atualmente, o canal possui mais de 160 mil seguidores, com outros grupos e canais do QAnon refletindo o aumento do interesse.
De acordo com estimativas fornecidas pela Fundação Amadeo Antonio, existem pelo menos 150 mil seguidores do QAnon na Alemanha – e o número aumenta continuamente. No entanto, avaliar o tamanho do movimento é difícil, em grande parte porque as estimativas dependem do envolvimento do público na esfera virtual.
Protestos de defensores fervorosos de teorias da conspiração crescem cada vez mais
Um plano evasivo
No grupo QPatrioten24, as opiniões começaram a se fragmentar após a invasão do Capitólio. Será o fim de Trump? Ou será tudo parte do plano sinistro anunciado por Q? Trata-se de um plano vago que ninguém conhece verdadeiramente, exceto o próprio autoproclamado insider político Q – e ainda assim é sobre isso que todo o movimento é construído.
Alguns usuários já começaram a expressar dúvidas. A frase de que “não há plano algum” começa a se insinuar no grupo. Mas sempre tem alguém pronto para responder.
“Separe o joio do trigo, agora que todos se revelaram: patriota ou traidor. Agora a base da pirâmide foi removida. Tudo está indo conforme o planejado”, escreve um usuário, um dia após o ataque ao Capitólio.
Connectis, que parece ser o principal administrador do grupo, alimenta essa crença com mensagens enigmáticas. À medida que a posse de Biden se aproximava, ele publicou outra mensagem de áudio.
As forças militares reunidas para a posse em Washington, afirma ele, poderiam “prender o suposto vencedor das eleições, Biden, e garantir que tudo corra bem”.
Para aqueles comprometidos com o movimento, não há espaço para falhas – nem a saída de Trump da Casa Branca. “Na minha opinião, não há outra opção”, diz Connectis com convicção.
QAnon: sem espaço para dúvidas
Autoridades lutam para rastrear o QAnon
Em 2019, um documento interno do FBI, a polícia federal americana, obtido pelo canal de notícias americano Yahoo! colocou o QAnon entre uma série de teorias da conspiração com o potencial de incitar extremistas violentos à ação, descrevendo-o como uma ameaça terrorista doméstica. No entanto, o documento estava longe de ser uma determinação oficial.
Na Alemanha, apesar da pressão crescente, apenas algumas autoridades reconheceram os riscos representados pelos partidários do QAnon, como o Escritório para a Proteção da Constituição (BfV), o serviço de inteligência doméstico alemão.
O problema enfrentado pelas autoridades, no entanto, é identificar um movimento que é tão fragmentado e diverso quanto o QAnon – um movimento que atrai extremistas violentos organizados, bem como simpatizantes interessados apenas em acompanhar os desdobramentos a partir do conforto de suas salas de estar.
No grupo QPatrioten24, ambos estão presentes. Às vezes, há apelos por uma ação radical contra o Estado, bem como um ceticismo indiferente sobre a pandemia de covid-19.
“O número potencial de aderentes do QAnon não pode ser quantificado pelo BfV, já que os não extremistas também defendem a teoria, e os adeptos da teoria não desenvolvem um caráter aspiracional, por exemplo, na forma de uma associação de pessoas”, disse à DW um porta-voz do órgão.
Por ora, o BfV estabeleceu uma força-tarefa para avaliar como classificar teorias da conspiração e movimentos de protesto que representem um risco à segurança nacional.
No nível estadual, as autoridades também expressaram preocupações mais amplas sobre como movimentos impulsionados por conspirações poderiam estimular ações semelhantes ao ataque ao Capitólio.
Um porta-voz da Secretaria do Interior da Renânia do Norte-Vestfália, o estado mais populoso da Alemanha, lembrou a tentativa de invadir o prédio do Parlamento alemão no final de agosto de 2020.
O incidente foi considerado um momento emblemático para os extremistas de direita no país, levantando comparações com o incêndio do Reichstag em 1933, que deu origem à Alemanha nazista.
De acordo com as conversas do QPatrioten24, membros do grupo também estiveram presentes na tentativa de invasão do Reichstag em Berlim no ano passado. O conteúdo postado por Connectis sugere que ele também estava no protesto, conforme uma análise realizada pela DW.
Enquanto a Alemanha entra em um ano eleitoral crucial – com seis eleições estaduais e uma eleição geral federal –, as autoridades têm se preocupado com as ações cada vez mais arriscadas iniciadas por grupos conspiratórios, bem como com o efeito que eles podem ter na sociedade.
“Mesmo que, até o momento, ainda não haja nenhuma evidência concreta de efeito copycat, a crescente hostilidade ao governo, especialmente entre os negacionistas do coronavírus, e as contínuas tentativas de extremistas de direita de instrumentalizar protestos para seus próprios fins, acarretam o risco de fomentar a radicalização”, disse o porta-voz da Secretaria do Interior da Renânia do Norte-Vestfália.