Judiciário
Os fins justificam os meios? A Lei da Ficha Limpa e a detração eleitoral para fins de inelegibilidade
Por meio da ADI 6630, o STF recentemente voltou a discutir a Lei da Ficha Limpa e seus impactos no período de inelegibilidade. Apresentamos a controversa sistemática vigente em uma análise sob a ótica do direito eleitoral
O turbulento ano de 2020, assim como tudo o que lhe foi afeto, carregou consigo elevada dose de imprevisibilidade a todo o momento. Alheia a este contexto e avessa à instabilidade, a democracia não pode se dar ao luxo de parar por um só instante – mesmo em tempos de pandemia –, sob pena de fortalecer ameaças outras. Daí o significado ímpar que passou a permear o último período eleitoral.
Deixemos de lado o elevado índice de abstenções, nunca antes visto desde a redemocratização. Não tratemos, também, de divergências ideológicas ou das novas tendências eleitorais percebidas nas urnas, tampouco de seus eventuais impactos nas eleições gerais de 2022. Estes seriam temas mais caros aos estudiosos da Ciência Política.
Aqui teremos como foco a matéria técnica relativa à Lei da Ficha Limpa e o cálculo da inelegibilidade, a partir da possível aplicação da detração em matéria eleitoral, com destaque à recente ação ajuizada no Supremo Tribunal Federal. Lá se discute a controversa sistemática atual, por meio da qual o sujeito passa a estar inelegível desde a confirmação da condenação criminal por órgão colegiado, de modo a permanecer nesta condição durante a reta final da tramitação do feito perante os Tribunais Superiores. A restrição, então, persiste para além do trânsito em julgado, também pelo cumprimento integral da pena imposta. Ao fim, ainda é necessário submeter-se a mais 8 derradeiros anos de inelegibilidade.
Diante deste cenário, o eventual reconhecimento do instituto da detração representaria a possibilidade de que o tempo de inelegibilidade anterior ao trânsito em julgado (inaugurado pela condenação em segunda instância) seja descontado dos 8 anos após o cumprimento da pena. Na prática, sob esta interpretação, o impedimento passaria a perdurar apenas pelo período fixado na condenação com o acréscimo dos 8 anos legais, como de fato parece ter sido a intenção do legislador complementar.
Já nas vésperas do último recesso forense, o tema foi levado à análise pelo STF por meio da ADI 6.630, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Dentre outros pontos, a sigla sustenta que a norma impugnada não prevê a detração da inelegibilidade cumprida nos dois marcos temporais acima mencionados (antes e depois do trânsito em julgado). Requer, assim, a declaração de inconstitucionalidade, com redução de texto, da expressão “após o cumprimento da pena” contida na parte final da alínea ‘e’, I, do art. 1º da Lei Complementar 64/90, com a redação dada pelo art. 2º da Lei Complementar 135/2010.
Em decisão monocrática da lavra do Min. Kássio Nunes Marques, foi determinada a suspensão do referido trecho legal tão somente aos processos de registro de candidatura das eleições de 2020 ainda pendentes de apreciação, inclusive no âmbito do TSE e do STF. No entendimento do relator, “a ausência da previsão de detração, a que aludem as razões iniciais, faz protrair por prazo indeterminado os efeitos do dispositivo impugnado, em desprestígio ao princípio da proporcionalidade e com sério comprometimento do devido processo legal.”
Como era de se imaginar, a decisão reabriu intensos debates entre juristas, políticos e a sociedade civil, por conta do exacerbado apelo popular próprio de temas ligados ao combate à corrupção. Ao menos entre os estudiosos que se posicionaram favoravelmente à decisão, há o consenso de que o entendimento diminui consideravelmente os danos causados pela Lei da Ficha Limpa e seus infindáveis reflexos sobre uma condenação criminal.
Logo em uma primeira análise do dispositivo questionado, salta aos olhos a imprudente definição de um momento até então desconhecido (como é o período de cumprimento da pena) como marco inicial da referida sanção, uma vez que este intervalo depende diretamente da duração do processo. E, por óbvio, não se pode fixar previamente o lapso temporal a ser experimentado entre a decisão colegiada (momento em que já se inicia a inelegibilidade) e o trânsito em julgado desta (inaugurando-se formalmente o cumprimento da pena), em razão das variadas alternativas recursais garantidas às partes e do tempo incerto para apreciação de tais inconformismos.
E é exatamente esta circunstância que dá origem a um temerário paradoxo jurídico: quanto mais se recorre, maior será o período total de inelegibilidade. Como bem apontado pelo ilustre colega Marcelo Peregrino, a ideia de que “a interposição de recurso pela parte impende em aumento de sua pena”[1], representa, em tudo e por tudo, uma reprovável hipótese de escolha que acaba por mitigar o acesso à Justiça pelo jurisdicionado.
Inclusive, necessário frisar que esta perspectiva perversa não é novidade no âmbito do STF. Ainda quando a Corte debatia alguns dos reflexos da então novel legislação anticorrupção, o ministro Cezar Peluso já havia externado ao Plenário a sua preocupação com os efeitos deletérios e perpétuos de uma norma capaz de transformar uma garantia constitucional (recursos) em uma espécie de agravamento da sanção[2]. À época – é importante que se diga –, o raciocínio foi endossado por alguns dos atuais integrantes do Supremo, tais como os Ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes, os quais devem participar deste novo julgamento envolvendo o tema.
O próprio Min. Fux, atual presidente da Corte, ao se debruçar sobre o mencionado imbróglio, fez consignar em seu voto que o fragmento legal ora suspenso representaria um prolongamento excessivo da sanção, cujo efeito prático poderia redundar na cassação dos direitos políticos do cidadão, dada a ausência de um sistema de detração[3].
Os críticos, por sua vez, consideram ser um equívoco “atenuar” as sanções estabelecidas na Lei da Ficha Limpa, em detrimento dos novos esforços para o combate da corrupção no meio político. Sob o argumento de que a decisão seria uma tentativa clara de esvaziar a lei em contrariedade ao anseio popular, o “Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral” (MCCE) publicou uma nota de repúdio[4]. Inclusive, dias mais tarde, a organização foi admitida ao feito na condição de amicus curiae.
Já a partir de uma análise mais restrita ao aspecto formal e sem adentrar no debate acerca da possibilidade de detração, Rodrigo López Zilio entende que a decisão viola o princípio da anualidade eleitoral e, consequentemente, a segurança jurídica, especialmente “ao dizer que será aplicada para processos de registro de candidatura que ainda não foram apreciados no TSE, admitindo dois regimes jurídicos diferentes numa mesma eleição”[5]. Estes argumentos foram igualmente destacados no recurso assinado pelo Vice-Procurador-Geral Humberto Jacques.
Nessa ordem de ideias, nota-se que a segurança jurídica também foi a pauta central dos recentes comentários lançados pelo Min. Marco Aurélio Mello[6]. Antecipando-se ao julgamento colegiado – e sem qualquer liturgia –, o decano do Supremo veio a público criticar a decisão do colega, sobre a qual afirmou que “o novato inovou muito, encurtou o prazo da inelegibilidade e causou grande perplexidade”. Ainda segundo o Ministro, Nunes Marques “reescreveu a lei”, e por isso está confiante de que “a decisão vai ser revogada”. Dada a veemência das palavras proferidas, a manifestação mais parecia se aproximar de uma verdadeira nota de repúdio, nos moldes daquela já mencionada, só que desta vez assinada por uma caneta mais poderosa.
Em que pese a avaliação convicta do excelentíssimo decano, não parece razoável que se admita a cumulação da inelegibilidade decorrente de uma decisão não definitiva – posto que anterior ao trânsito em julgado – com a suspensão de direitos políticos advinda da condenação definitiva no mesmo processo, acrescidos ainda de outros 8 anos de inelegibilidade após o cumprimento da pena.
A fim de propiciar um dimensionamento adequado do excesso sancionatório vigente, olhemos o caso a partir de uma perspectiva histórica. Desde a sua promulgação, a Constituição Federal já previa a suspensão dos direitos políticos em casos de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos (art. 15, III). Posteriormente, editou-se a LC nº 64/90 (Lei das Inelegibilidades), igualmente a fixar o marco inicial das sanções no respectivo trânsito em julgado da sentença condenatória.
Eis que, movidos pela efervescência da pressão pública e na certeza de estar combatendo a impunidade, buscou-se o agravamento das sanções existentes. E assim chegamos a LC nº 135/10 (a famigerada Lei da Ficha Limpa), responsável por incluir novas hipóteses de inelegibilidade sob a pretensão de “proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.” O resultado, porém, foi a dosagem em demasia.
Passou-se a antecipar a inelegibilidade para momento anterior ao trânsito em julgado (por um período indefinido, repita-se), além de estender a sua incidência por oito anos após o cumprimento da pena. Há de se constatar, pois, a criação de sanções mais gravosas, marcadas pela ampliação dos períodos de inelegibilidade – para antes e depois do trânsito em julgado –, mas sem conceber o devido desconto legal que lhes ajustasse em harmonia. De maneira geral, os novos dispositivos somente elencaram previsões extras, cuja soma resulta no excesso, quando deveriam ser frutos de uma evolução complementar com o quadro normativo anterior.
Por consequência, basta confrontar a redação original da LC nº 64/90 e a atualização trazida pela LC nº 135/10 para que a disparidade sancionatória seja evidenciada às escâncaras, em uma reprovável espécie de perpetuação da limitação de direitos políticos. Dentre tantos outros episódios semelhantes, a atual conjuntura retrata um desequilíbrio legislativo ocasionado pelo impiedoso punitivismo midiático, enredo este típico de temas com forte clamor popular.
Ao realizar este mesmo exercício histórico-comparativo, bem assinalou o Min. Fux que “a extensão da inelegibilidade para além da duração dos efeitos da condenação criminal efetivamente fazia sentido” quando permitida somente nos casos de condenações transitadas em julgado, tornando-se excessiva a partir do momento em que as inelegibilidades passaram a ser admitidas já desde as condenações colegiadas não definitivas[7]. Ora, é exatamente esta desproporcionalidade que se pretende reparar com o reconhecimento da detração em matéria eleitoral.
Logo, o grande problema não parece estar necessariamente atrelado aos 8 derradeiros anos de inelegibilidade por si só, mas sim na ausência de efetivos descontosentre as sanções. A técnica atual carece de um mecanismo de compensação válido – nos moldes da detração admitida no processo penal[8] – que permita o cômputo do tempo de inelegibilidade experimentado pelo sujeito entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado, para fins de aproveitamento em etapa posterior ao cumprimento da pena. Se assim o fosse, estaríamos mais próximos de restabelecer o equilíbrio perdido entre os ditames legal e constitucional.
Aliás, de certa maneira, aí está o grande mérito até então alcançado pela ADI 6.630, a partir da intervenção monocrática do “novato”. Muito embora, como dito, o problema não esteja necessariamente vinculado aos 8 anos finais de inelegibilidade por si só, a suspensão do respectivo trecho acaba por balancear o cálculo de forma equivalente ao instituto da detração. Digna de elogios, portanto, a decisão que admite uma dosagem mais moderada de uma restrição sobre direito deveras valioso ao regime democrático, de modo a fixar um meio-termo entre as inelegibilidades da Constituição Federal e da Lei da Ficha Limpa.
E isso não significa defender um posicionamento leniente, tampouco favorável ao enfraquecimento do combate à corrupção em solo brasileiro. Acontece que esta nobre causa já possui meios próprios de operação, os quais podem e devem ser aprimorados. Trata-se, sim, de lutar por uma atuação sob as balizas legais e constitucionais, guiada sobretudo pela noção de proporcionalidade quanto ao manuseio de institutos próprios do direito eleitoral.
Até porque, em uma visão detida do que representa o regime democrático, prevalece a ideia de que incumbir o Estado da malfadada missão de definir aqueles em quem se pode ou não votar acaba por extrapolar os limites da tutela estatal, notadamente ao “terceirizar” a soberania popular[9]. Portanto, não se mostra plausível – especialmente sob o ponto de vista democrático – que a via eleitoral seja inadvertidamente utilizada como instrumento de combate à corrupção, ainda mais a partir de expressões normativas cujos efeitos se dão em descompasso com os direitos mais básicos de todo o cidadão.
De qualquer maneira, é evidente que questões dessa magnitude não devem ser decididas por um único membro da Corte. A matéria seguirá para apreciação do Plenário e, ao contrário da previsão realizada pelo Min. Marco Aurélio, há motivos para apostar em um julgamento acirrado. Certo é que, dentre os argumentos que podem comprometer as pretensões delineadas na ADI, ganham força aqueles fundados mais na forma do que no mérito, como a suposta violação da anualidade eleitoral e a quebra da isonomia em um mesmo pleito.
Em arremate, faço-me valer da percepção dantes exposta pelo Min. Gilmar Mendes para concluir que, em seus termos práticos, o excerto ora subtraído da norma tende a revelar uma redação “extremamente maquiavélica”[10]. Embora se saiba que o pensador florentino não é o verdadeiro autor da famosa frase comumente a ele atribuída, aproveito o ensejo para me despedir com uma releitura da clássica reflexão em comento: os fins de combate à corrupção justificam a utilização imprópria do meio eleitoral e o vilipêndio de garantias? Ficaremos no aguardo dos próximos capítulos.
REFERÊNCIAS
[1] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. A detração, a condenação criminal e a Lei da Ficha Limpa — a ADI 6.630. Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3t1O0Rc
[2] Supremo Tribunal Federal, Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 30, do Distrito Federal. Relator: Min. Luiz Fux, julgado em 16/02/2012, p. 176. Disponível em: https://bit.ly/3tfwIQL
[3] STF, ADC 30, Op. cit., p. 39-40.
[4] Disponível em: https://bit.ly/3j7Uaus
[5] Entrevista ao jornal “O Globo”, publicada em 29/12/2020. Disponível em: https://glo.bo/3iQRS2O
[6] Entrevista ao blog do jornalista Valdo Cruz, publicada em 21/12/2020. Disponível em: https://glo.bo/3iUfNhZ
[7] STF, ADC 30, Op. cit., p. 39.
[8] Código Penal, art. 42. Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.
[9] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Op. cit.
[10] STF, ADC 30, Op. cit., p. 176.
Autor
- André Luiz Will da Silva – Advogado, membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SC. Pós-graduando em Direito Eleitoral pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Graduado em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Graduado em Administração Pública pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG).